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sábado, 27 de agosto de 2011

O espelho de bronze


1
            Mergulhado em um fascínio singular, Renan Lemos observava com os olhos afogados naquele sentimento aquela suíte. Seus pés pareciam flutuar sobre o felpudo tapete daquele quarto de hotel. O aspecto antiquado do ambiente lhe trazia um saudosismo de uma época que sequer viveu. Uma música soava com delicadeza ao fundo, talvez viesse de um sistema central de som, no entanto sua origem foi uma coisa que permaneceu identificável durante sua estadia naquele local. A música deslizava seus tons e semitons em uma cadência agradável, uma música antiga cantada por uma voz feminina que ele divagou ser Carmen Miranda. Ao fundo, uma lareira com um grande quadrado preto onde um dia abrigara chamas. Um atiçador de ferro jazia reclinado sobre a parede junto à lareira. Sobre uma pequena bancada com detalhes esculpidos acima dela, uma fotografia de um belo jardim.
            Um antigo relógio de pêndulo vencia uma batalha desigual contra o tempo insistindo em funcionar. O pêndulo dançava em um ritmo monótono e hipnotizante, tiquetaqueando uma canção imaginária que atiçava lembranças aleatórias. Uma poltrona jazia defronte a uma estante repleta de livros ao lado de uma velha escrivaninha, havia antigas coleções perfeitamente enfileiradas por aquelas prateleiras de linóleo. Contudo, a motivação que trouxera Renan aquele local estava junto à janela coberto por um pano branco.
            Um espelho suportado por um pedestal de bronze, na qual sua extremidade superior traçava uma parábola dando a vaga forma de um portal dimensional, a borda nada mais nada menos, traçava uma trajetória elíptica ao redor daquele espelho. Renan olhava para aquele objeto coberto e hesitou em se encaminhar até lá e encara-lo. A luz do sol das 16h penetrava pela janela lançando flechas luminosas ao tapete. Ainda claudicante, ele recuou.
            - Não, isso é loucura. – Rosnou em meio a sua incerteza.

2
            Tudo começou quando Marcos dos Santos, diante do balcão do bar do Ricardo, virou 4 doses de 51 de uma só vez. Sua expressão era pálida ao mesmo tempo em que era pesarosa. Suas mãos trêmulas faziam com que parte da cachaça entornasse pela superfície de mármore do balcão. A cada virada de copo, ele o aterrissava bruscamente pedindo outra. Seu olhar era terrificante e parecia que vislumbrava uma situação insólita na qual não poderia ser descrita. A TV do bar estava sendo assistida por uma plateia fantasma, do outro lado do salão, próximo à calçada, Renan Lemos e seu primo, Davi Azevedo, observava atônito a estranha atitude de Marcos.
            Marcos pagara pelas 4 doses e permanecera hesitante ainda diante do balcão. A palidez em sua tez era algo que ficaria por horas, ofegava como se há instantes, correra por sua vida. Suspirava fundo e finalmente decidira que deixaria o bar.
            - Ei Marcos! – Disse Renan assim que viu o colega deixando o bar.
            Marcos o olhou por cima dos ombros e o viu gesticulando para que se aproximasse.
            Mediante a dúvida entre ir para casa e ficar para contar o seu caso, Marcos assentira que mais do que tudo, precisava conversar com alguém e por para fora aquela moléstia invisível e corrosiva. Cedera aos chamados de Renan e se aproximou.
            A mesa suportava um cinzeiro com 4 guimbas de cigarros esmagadas dentro de seu interior de porcelana. Quatro garrafas vazias de Brahma jaziam na extremidade juntas a parede ladrilhada. No centro, uma camisinha com uma garrafa já passada da metade além dos copos de Renan e Davi.
            Marcos puxou uma cadeira e se sentou desajeitadamente, as garrafas vazias oscilaram tilintando e o colarinho que quase transbordava o copo de Renan cedeu escorrendo até a superfície plástica da mesa.
            - O que aconteceu, cara? Parece que viu um fantasma.
            Marcos suspirou exalando seu hálito de cachaça, concentrou-se por um instante e canalizou seu olhar em um ponto fixo.
            - Vocês conheciam o Eltinho, não conheciam? – Ele disse.
            Renan e seu primo menearam a cabeça numa afirmativa.
            - Pô caras, cheguei a pouco de seu funeral.
            - Que isso cara!? – exclamou Renan num tom sobressaltado – O Eltinho morreu?
            - Sim – replicou ele – morrera ontem à tarde.
            - E como foi isso?
            A face de Marcos se contorceu em um esgar vago, porém capaz de lhe enrugar determinadas áreas da face.
            - Foi uma merda – respondeu – ele pulou na frente de um trem.
            - Ah tá de sacanagem!
            - A família está arrasada.
            Davi rompeu o seu silêncio dizendo:
            - Soube que ele estava meio pirado. Andava dizendo que a morte estava lhe perseguindo, que podia sentir que iria morrer em breve, esse tipo de coisas.
            Marcos assentiu enquanto Renan permanecia perplexo.
            - Mas como pode? Eu estive com Eltinho há quase 2 meses. Como isso pôde ter acontecido?
            - Essa é a parte mais insólita da história. – Respondera Marcos com a expressão sombria.

3
            Encontrei Eltinho há 2 semanas no bar do Zeca Macaco, estava mal, podre de bêbado e ainda disposto a prosseguir com aquilo até que caísse desmaiado. Nunca o vi bebendo daquele jeito, ainda mais ele que sempre demonstrara uma segurança sobre seus atos... Aquela cena me chamou a atenção, a ponto que deixei de seguir o meu rumo para me aproximar.
            “E aí, Eltinho, quanto tempo hein!”
            Ele limitou-se a menear a cabeça em um cumprimento. Puxei uma cadeira e antes de me ajeitar, o ouvi dizer:
            “Vou morrer, Marcos.”
            A princípio não o levei a sério, afinal todos vamos morrer um dia e havia tantas garrafas sob a mesa, que qualquer coisa que ele dissesse, não poderia ser considerada. Todavia existia um brilho estranho em seus olhos, um brilho fosco é verdade, porém um brilho que parecia vislumbrar com certo horror uma cena a alguns quilômetros.
            “Por que está dizendo isso?”
            Ele apontou para uma porta de vidro fumê localizada a nossa esquerda sem no entanto, olha-la diretamente. Parecia que a coisa que mais o assustava estivesse diante daquela porta. Levei o olhar até onde seu dedo apontava e não vi nada além de nossas imagens refletidas de maneira disforme.
            “Eu posso me ver morto todas as vezes que me deparo com um espelho. Eles me mostram que estão para acontecer.”
            Sinceramente, não sei por que não ri daquela cena, talvez por no fundo , ter acreditado. Foi muito estranho, o arrepio tomando conta de mim e o frio na espinha pressionando minha bexiga.
            “Está falando sério?”
            Ele virou o último gole daquele copo de cerveja sem precisar me responder. Sem palavras, apenas observei o tráfego de veículos na estrada a frente do bar do Zeca Macaco. Estaria ele assolado por uma funesta premonição? Li em algum lugar que as pessoas, às vezes são predispostas a certas vidências, há quem diga que a alma pressente que irá partir, por isso antes de morrer, certas pessoas falam com seus entes como se estivessem se despedindo, como se soubessem. Porém, Eltinho estava bastante mordaz naquela ideia de espelho, não podia ser algo subjetivo, era alguma coisa concreta como aquela mesa de bar e as inúmeras garrafas vazias.
            “E desde quando você vem tendo essas visões?”
            “Desde que entrei naquele quarto.”
            “Quarto? Que quarto?”
            “No velho hotel Endorama, quarto 217. Lá há um espelho de bronze, um espelho que parece mostrar como vamos morrer, a maneira de nossa morte, é horrível. Assim que olhei aquela coisa... Meu corpo todo...”
            Meu queixo pendeu ante a história dele, o velho Zeca limpava o balcão do bar com um pano úmido enquanto outro cidadão se aproximava e pedia uma dose de cachaça. Os olhos de Eltinho se enchiam de lágrimas e sua voz se esvaía em uma oscilação fonética. A embriaguez e o iniciante pranto tornavam suas palavras quase indecifráveis.
            “Eu posso sentir a morte em meu encalço, cara. Posso sentir seu gélido suspiro em minha nuca e posso sentir a sua abstrata presença se concretizando à medida que os dias vão se passando.”
            Agitei-me mediante aquele desespero. Era a situação que jamais havia me deparado; é possível confortar uma pessoa quando esta perde um familiar, pois, por mais que ela esteja devastada, há toda uma vida a percorrer. Porém, quando se sabe que a morte é iminente, nenhum orador é capaz de reverter a situação, pois ela é o fim de tudo, camaradas.
            “E quando vai acontecer... Digo, você sabe quando isso vai acontecer, o dia, a hora?”
            Eltinho meneou a cabeça negativamente, chorava como uma criança.
            “Está próximo, tudo que sei é que está próximo, posso sentir.”
            Ele, não sei se proposital ou involuntariamente, olhou para a porta de vidro fumê a nossa esquerda. O horror em seus olhos ficou tão evidenciado que faíscas poderiam cair daquelas superfícies gelatinosas.


4
            A perplexidade era uma intrusa nas expressões de Renan Lemos e Davi Azevedo. As bocas vagamente abertas servindo como campo de refúgio de moscas e as respirações quase nulas, denotavam o quanto seus alicerces não estavam fixados em terras firmes. Havia um pântano de incertezas que os dragavam para as intrépidas profundezas da incoerência humana.
            - E ele realmente se matou? – Perguntou Renan rompendo as correntes do silêncio.
            - Sim – respondeu Marcos – no funeral as pessoas estavam dizendo que ele nos últimos dias parecia que fugia de alguma coisa, e há quem dizia que antes de se jogar na frente do trem, ele havia gritado entre uma gargalhada insana “Você não vai me pegar! Não conseguiu me pegar!”
            - Meu Deus! – Rosnou Renan aturdido.
            Marcos suspirou novamente exalando seu hálito de 51.
            - No fim, eu sempre quis acreditar que toda aquela história não passava de uma histeria, porém, essa conjectura não se configurou.
            - Mas isso não significa que esse tal espelho possa existir – dizia Davi – realmente pode ter sido uma histeria ou até mesmo, esquizofrenia.
            - Eu fui até aquele hotel. – disse Marcos em tom severo – Fica na beira de uma estrada que cruza a Rio-Santos, é algo no meio do nada, praticamente só existe aquela espelunca em quilômetros. Um senhor estranho com um olho de cada cor me atendeu, acredito que o esquerdo, de cor azul, seja de vidro – ele passou a estudar as mãos com seus dedos entrecruzados, porém sua voz não perdia a intensidade e o vigor da descrição – Aquele lugar fede a mofo, porém era bem arrumado com os corredores cobertos por um papel de parede vermelho.
            Renan se inclinava para frente possesso pela insólita história. Seu primo, desfeito do sobressalto inicial, mantinha-se sempre cético com relação as palavras que saiam da boca de Marcos portando agora uma feição resignada.
            - Hesitei em abrir o quarto 217. Uma atmosfera insana se formou e quando menos percebi já estava no interior da suíte como se alguma coisa tivesse me transportado para aquele local. O espelho estava lá, coberto por um longo pano branco, com sua silhueta cilíndrica exibindo-se com certa descrição.

5
            Diante do espelho coberto, Renan Lemos titubeava em descobri-lo. Desde que soubera da história de Eltinho, não conseguira dormir; o caso o perturbava tanto que ficaria louco se não botasse um fim naquilo de uma vez por todas. A música a cada segundo ganhava tons mais sombrios, talvez o ambiente antiquado e perturbador influenciasse a situação transformando-a num suspense apavorante. A conversa que tivera com Marcos no bar do Ricardo ainda lhe era vívida como um vislumbre de um sonho bom.
            E você olhou o tal espelho?
            Não, não tive coragem... Sei lá, não sei se estou pronto para ver como irei morrer, mesmo que seja daqui a 50 anos.
            Renan também não tinha certeza se queria ver como iria morrer, no entanto, passou a dar ouvidos a voz da razão que clamava num tom desesperador. Isso é ridículo, é apenas um espelho!
            - Fala sério – ele disse – é apenas um espelho velho.
            Tomado por uma súbita avidez em sacramentar aquela dúvida, Renan puxou a tolha branca que envolvia o espelho. Assim que seus olhos se fixaram naquele objeto de bronze, o horror absoluto tomou conta de sua alma.
            Ele se sentia em um turbilhão que fazia seus pensamentos embaralharem numa confusão farfalhante. Uma escuridão parecia preencher as lacunas de sua subconsciência, a única coisa que lhe ficava claro em meio a tantas coisas que se amontoavam querendo passar por um buraco de agulha, era um pensamento: Oh meu Deus, é verdade! Renan se viu morto naquele espelho, pior, a imagem refletida era a de um Renan Lemos ainda jovem, talvez com 28 anos, ou talvez com 27 – sua idade, caído sobre uma poça de sangue com o olhar fitando os céus, mergulhado em sua própria desolação.
            - Baleado? – ele se perguntou no auge daquele turbilhão de terror – Quem me mataria?
            Tudo ficara escuro.
            A luz do sol do fim da tarde não mais se fazia presente no quarto 217 quando Renan abriu os olhos. Caído sobre o felpudo tapete que cobria o chão daquela suíte, ele passou a divagar curtas possibilidades sobre o que lhe fizera desmaiar. A cruel verdade não tardou em surgir como um rápido e aterrador ataque aéreo. Ele ia morrer; o espelho de bronze lhe mostrara.
            Levou a mão até a base do nariz massageando aquele local com o polegar e o indicador enquanto fechava seus olhos com força.
            - Deus, por que eu vim para este lugar? – Ele se perguntava em um claro tom de arrependimento. Arqueou a cabeça a fim de visualizar a sua imagem refletida naquele espelho suportado por uma borda em forma cilíndrica e elíptica de bronze. Lá estava seu corpo, caído sobre uma poça de sangue com uma bala alojada em seu peito. Suspirou fundo e deixou que a cabeça caísse sobre o tapete.
            Todavia, o fato de ter ciência que sua morte seria iminente, não significaria que teria que ceder a loucura do desespero definhando em uma autodestruição como Eltinho fizera. Se tratando de um assassinato, Renan enxergava aquele fato como uma possibilidade de justamente evitar o que o espelho lhe propunha. Sobre a cama, reclinado sobre a cabeceira, ele conjecturava quem tencionaria mata-lo.
            Pagou a curta hospedagem ao estranho velho do olho de vidro. O homem sequer fizera menção de emitir alguma pergunta, sua expressão resignada dizia que inúmeros hóspedes já entraram no quarto 217 sem ao mínimo passarem a noite naquele local.  Renan o olhou, ameaçou dizer algo a respeito, porém manteve-se calado. Antes de puxar a maçaneta da porta do pequeno rol de entrada do hotel, pôde ver a sua imagem morta e ensanguentada refletida naquele vidro.

6
            Não era nada agradável caminhar em meio a uma multidão de pessoas cuja qualquer uma era um suspeito em potencial. A cada movimento brusco, seus olhos se arregalaram em perplexidade. Renan estava se cagando de medo, um clássico e agravado sintoma de síndrome do pânico. Alguém quer me matar, Alguém deseja acabar comigo, por quê? Por alguém desejaria me matar?

7
            Vanessa Ribeiro estava perturbada. O silêncio do namorado sobre o sofá de sua sala a fazia imaginar hipóteses sobre o que ele estaria pensando. O namoro já estava naquela fase da desgastante rotina de trepar, assistir TV, trepar, dormir, trepar. Há 3 meses não faziam um programa diferente. Vanessa sentia falta de um passeio sobre o céu estrelado ornado pela lua cheia, sentia falta de ser amada. Em sua cabeça havia dúvidas se ele ainda a amasse, talvez Leonardo Brito, um amigo da faculdade, pudesse lhe proporcionar algo diferente, talvez uma pequena traição, ou quem sabe, um novo namorado. Essa era a necessidade de se sentir desejada que corroía o seu carma.
            A azulada luz da TV delineava a soturna e taciturna expressão de Renan. Embora seus olhos estivessem vidrados no filme, não existia um brilho sequer de interesse.
            - O que está havendo, Renan? – Ela perguntou.
            - Hã? – Respondeu ele voltando para a realidade.
            - Não dissera nada desde que chegara, aconteceu alguma coisa?
            - Não, só estou cansado. Ando me estressando demais no trabalho.
            Vanessa fingira que acreditara, sabia que o namorado estava mentindo, porém, não fez muito caso da situação. Dera de ombros e assistira ao filme como se Renan fosse algo inanimado ao seu lado.
            Ele deixou a casa da namorada por volta das 22h45. Como a distância até a sua residência não era longa, fizera o percurso a pé e se arrependera.

8
            As ruas estavam vazias, uma tímida chuva de verão ameaçava a cair com as nuvens fotografando a Terra lá de cima. Meticuloso, Renan calculava cada passo que dava sob o céu ameaçador. Os mínimos ruídos que surgiam em suas costas lhe faziam se postar em imediato alerta. Seu coração palpitava forte, a sensação de que em algum lugar alguém o estaria observando era crescente. As luzes dos postes bruxuleavam, algumas se apagavam justamente no momento em que ele passava. Um súbito vento gélido soprou do noroeste fazendo uma garrafa mineral vazia rolar da calçada à sarjeta justificando assim a cálida noite.
            Renan não tinha certeza, mas sentia uma presença atravessando a rua em suas costas. Um vulto que saíra do lado direito ao esquerdo. Volveu-se de imediato girando sobre os calcanhares, não vira nada além de sombras e o relampejar do céu ao horizonte. No entanto, por mais que seus olhos fitassem apenas a desértica noite, a sensação de que alguém estaria o espreitando sob o auspício da escuridão era tão vívido quanto o medo que sentia.
            - Eu sei que está ai! – ele gritou caminhando para trás. – Eu sei o que quer fazer!
            Os cachorros ladravam em respostas aos seus gritos. De sua posição, pôde perceber que algumas luzes se acendiam nas casas e que algumas silhuetas ovais – cabeças – se faziam presente nas janelas. Aquilo era bom, anuiu, pois lhe daria tempo para fugir e assim ele fez. Correu sem sequer olhar para trás, correu até que os calcanhares batessem na nuca, até que os pulmões doessem em seu peito, até que seu coração clamasse por misericórdia.

9
            Renan observava por de trás das cortinas de sua sala, o portão de sua casa. Pegara uma cadeira para que pudesse subir lhe dando assim um ângulo para visualizar a rua por sobre o muro. Não havia nada.
            Com a certeza de que fora perseguido, Renan Lemos olhava para a porta do quartinho de ferramentas que se situava entre o banheiro e a cozinha. O interior daquele cômodo era poeirento e cheirava a óleo queimado, ferramentas jaziam penduradas em ganchos fixados nas paredes, uma bicicleta Caloi 10 estava abandonada em uma dessas paredes com os dois pneus arriados. Todavia, o que mais o interessava, era um pequeno criado mudo localizado ao fundo, próximo a uma janela basculante. Um móvel cor mogno com 4 gavetas largas, uma delas, trancada a cadeado.

            Desde que tomara conhecimento que aquele objeto ainda estava em sua residência, Renan prometera que jamais o usaria. Porém as circunstâncias eram outras. Uma realidade iminente vislumbrava dentro de um paradoxo onírico, em um espelho empoeirado sobre a tal cabeceira, sua imagem morta o avisava que aquele objeto lhe seria de extrema necessidade. Quis o destino que ele destrancasse aquela gaveta, a abrisse e pegasse o velho .38 herdado de seu pai.
            Sentado sobre o sofá da sala de estar, ele acariciava o revólver com os olhos acessos e doentios. Fitando a porta da casa e sua expressão em nenhum momento deixava os traços severos e perturbadores. Seus lábios murmuravam uma litania repetitiva e enfadonha.
            - Ouse entrar e eu juro que meterei uma bala em sua cabeça, é só abrir a maldita porta.
            As horas se passaram e Renan mal percebera. Dera-se conta que havia amanhecido quando a luz do sol das 10h atingiu a sua sala levando o rubor a sua face estagnada. Não fora trabalhar naquele dia e nos outros que se sucederam. Uma obcecada prudência tinha dominado a alma dele. Cada movimento em falso era capaz de lhe fazer apontar o .38 de imediato para o local. Em um dado instante, quase abrira fogo contra um grupo de 3 crianças que pularam o muro de sua casa atrás de uma pipa agarrada no pé de goiaba em seu quintal. Seu coração acelerado, o rosto suado, os olhos impávidos e cintilantes, o indicador direito quase puxando o gatilho para trás.
            Em um isolamento social, Renan cederia à loucura se não deixasse aquele claustro pessoal. O telefone tocava e não era atendido, o computador seque era ligado, o instinto de autopreservação gritava para que saísse e vivesse (morresse). Estava há semanas dentro de casa e a sua imagem morta permanecia acessa todas as vezes que se olhava no espelho. Assentiu que se quisesse pegar o seu assassino teria de enfrenta-lo. Se trancar só pioraria as coisas lhe fazendo sucumbir como Eltinho sucumbiu.

10
Após conferir o celular, dezenas de chamadas não atendidas se acumulavam no display de seu aparelho. Sete eram de Vanessa.
- Talvez devesse vê-la. – Ele admitiu.
Encarando um quadro com alfinetes fixando linhas coloridas em fotografias de pessoas que conhecia, Renan concordou que precisava de uma válvula de escape. O tal quadro se assemelhava a um mapa de investigação policial, típicos dos filmes de Hollywood. Diversas anotações estavam por sob as fotos naquele quadro, anotações por possíveis motivos que pudessem leva-los a querer mata-lo. Nada que pudesse levantar uma grande suspeita, era algo que aconteceria no dia a dia, como um assalto, não seria nada premeditado.
Assim aquela obsessão concretizada naquele quadro de isopor repleto de um emaranhado de linhas, alfinetes, papéis e fotos, ficou para trás quando ele decidira sair.
A luz do sol o machucava, o tempo que passara recluso, mesmo que não muito longo, fazia-o estranhar o ambiente. As ruas estavam bastantes movimentadas, os carros passavam apressados numa corrida feroz por alguns minutos a mais em suas vidas.  Em meio aquele pequeno mar de pessoas, Renan pensava. Você está ai, em algum lugar dessas ruas, vou pega-lo e você nem imagina. Sua mão acariciava o .38 sob sua blusa quase que por instinto, aquele gesto passou a ser um coisa tão natural como cagar e mijar. Seus olhos buscavam qualquer movimento brusco, no entanto, por mais que estivesse em constante alerta, Renan sentia-se impotente, pois olhos o espreitavam e não estavam longe.
            A cautela o fizera levar um tempo acima do que costumava fazer para ir à casa de Vanessa. Quando o portão da casa dela se abriu, a expressão da jovem se acendeu num dual brilho de alívio e sobressalto.
            - Meu Deus, Renan! Onde esteve esse tempo todo? Estava muito preocupada!
            Os olhos dela fitavam estarrecidos a face devastada de Renan, as olheiras acentuadas e a barba cobrindo toda a extensão do rosto. Ele visivelmente estava mais magro, olhando o namorado naquela condição, Vanessa poderia dizer que voltara de uma temporada no inferno.
            Inquieto ante o portão da casa de Vanessa, ele praticamente a conduziu para dentro.
            - Vamos entrar Vanessa, lá dentro eu lhe explico.
            Vanessa assentiu mesmo sem entender o que acontecia. Deixou que Renan quase a empurrasse para dentro. Notou que antes de fechar o portão, ele conferia o movimento da rua como se constasse se não houvesse deixado algo para trás ou como se verificasse se alguém estaria lhe seguindo.

11
            Vanessa não encontrava palavras para expressar o que sentia quando Renan lhe contara que alguém queria mata-lo. A coisa que mais se aproximou, foi um “Meu Deus!” em diminuto murmúrio aturdido.  Ela o encarava como se o silêncio pudesse resolver toda a situação, Renan mantinha-se sério com os nós dos dedos entrelaçados, seus olhos pareciam ausentes. A mesinha de vidro localizado no centro da sala, refletia a imagem assassinada dele. Naquele momento tal coisa não mais o amedrontava, talvez fitar-se morto sobre a poça de seu próprio sangue tivesse se tornado algo comum como contemplar um álbum de fotografias.
            - Mas o que você fez para alguém querer te matar? – Ela perguntou rompendo o congelamento que o sobressalto lhe causara. Dizia em um tom cauteloso e aveludado para que seus pais não ouvissem aquela história.
            - Eu não fiz nada, Vanessa – ele respondia no mesmo tom de voz – você me conhece e sabe que não me meto em merdas.
            - Mas por quê? – ela perguntava mesmo sabendo que ele não tinha respostas – Como sabe que alguém quer mata-lo?
            Renan gesticulava a cabeça numa negativa, em seguida, limitou-se a responder:
            - Eu simplesmente sei Vanessa, tudo o que posso te dizer de uma maneira bem lúcida é que simplesmente sei.
            Vanessa mantinha sua expressão horrorizada na face. Seus lábios tremiam como se estivesse sentindo bastante frio, em meio aquele horror que a pegara desprevenida, sua cabeça matutava uma resolução para o caso.
            - Por que não vai à polícia? – Perguntou por fim.
            - Eu não tenho provas, sem provas não conseguirei nada além de um boletim de ocorrência.
            A face de Vanessa se assombrou em um desânimo aterrador. Renan percebera a desolação no semblante dela.
            - Não se preocupe tanto – ele contemporizava – tudo estará resolvido em breve, tudo voltará ao normal, Vanessa, eu lhe prometo.
            Vanessa reclinou-se sobre o encosto do sofá, seus olhos ficavam distantes e a princípio, ela não sabia se aquela cena poderia ser real, no entanto, loucura jamais fora algo a ser considerado.

12
            A noite daquele sábado estival era inspiradora para os amantes. Uma lua luxuriante brilhava em um esplendoroso amarelo, as estrelas eram vívidos pontos luminosos ornando a vastidão negra dos céus, uma agradável brisa fazia os balões que as crianças seguravam pelos parques dançarem em uma valsa invisível. Sem dúvidas, era uma noite capaz de inspirar os poetas, assim como era, em contrapartida, uma noite propícia para assassinatos.
            Ao sair da residência de Vanessa, Renan decidira não voltar para casa naquela noite. Precisava contemplar um pouco o céu estrelado e precisava sentir a agradável brisa noturna do verão. Crianças corriam pela pracinha enquanto seus pais jogavam conversar fora sob a luz dos refletores. Lemos, sentado em um dos bancos daquela praça cercada por arbustos espinhosos, observava com certo desdém a felicidade alheia. O terreno da praça se localizava em uma pequena depressão. Duas quadras existiam na extremidade norte enquanto o playground ficava na extremidade sul. No meio termo entre a quadra e o playground, uma pequena rampa de skate servia de diversão para adolescentes praticarem suas manobras. Renan estava próximo a essa rampa, os olhos que o observavam de algum lugar, ainda podiam ser sentidos. Seria a tal materialização da morte? Uma curiosa criança parou a alguns metros dele e passou a encara-lo em uma fascinação inocente. Renan encarou aquela criança curiosa que não arredava o pé de sua frente, timidamente, os lábios dela foram emitindo um sorriso como se zombasse da situação de Renan. O homem por sua vez, estendeu a mão direita à frente como o indicador apontado e o polegar enriste. A mão agora era um revólver imaginário e Renan Lemos atirou contra o guri que se rasgou a sorrir. Subitamente, a mãe daquele pequeno guri de 3 para 4 anos, o pegou puxando-o para que saísse dali. Por um momento, os olhos daquela mulher bateram nele e brilharam em um certo temor. Ela o via como uma ameaça.
            As horas passaram depressa. Renan mal percebera.
            A lua estava no centro do céu e sua grandiosidade luxuriante havia se modificado para um brilho fosco do tamanho de uma bola de pingue-pongue. Diante da agora desértica praça, Renan acariciava o .38 sob sua blusa, seus lábios murmuravam novamente uma litania muda.
            - Venha me pegar, venha me pegar.
            Sua postura desafiava a própria sorte, os olhos doentios pela obsessão percorriam as órbitas espreitando cada canto daquela praça. Renan não havia percebido, mas em um ponto da pracinha, um dos 12 refletores que iluminava o local havia se apagado levando sombras ao lugar que seu fulgor alcançava. Os espinhosos arbustos localizados a sua direita de súbito começaram a se mover de maneira brusca como se algum animal ou algum assassino ali estivesse. Em pleno alerta, Renan Lemos se levantou sacando o velho revólver. Naquele exato momento, mais dois refletores se apagaram, fazendo com que a extremidade das quadras ficassem parcialmente as sombras.
            Com os dedos ávidos apertando o .38, com o polegar direito puxando o cão do revólver para trás, Renan estava a ponto de disparar às cegas. A iluminação que ia se esmorecendo já era perceptível a ele, estaria algo de sobrenatural acontecendo? Renan não considerava essa hipótese, pois para sua imaginação, o seu iminente assassino estava próximo, diante dele por de trás dos arbustos.
            - Apareça, esse jogo de gato e rato já acabou!
            Mais da metade dos refletores da praça já havia se apagado, sombras contornavam a feição pávida de Renan, seus olhos estavam acessos, os arbustos espinhosos continuavam se movendo fazendo um som farfalhante.
            - Eu disse para aparecer! – Gritou.
            Todas as luzes se apagaram, a escuridão se tornou dominante, com ela viera à incerteza e a angústia de que algo estava ali, a lua do tamanho de uma bola de pingue-pongue testemunhava o arbusto se movendo com um vigor maior, testemunhava os galhos se partindo de maneira abrupta, testemunhava Renan puxando o gatilho do .38.
            Um estampido gemeu no meio da escuridão.
           
13
O cano do .38 ainda fumegava e Renan no meio da escuridão forçava a vista tentando visualizar o seu possível agressor. Todavia, com seus olhos adaptados ao negrume, ele nada via além das silhuetas rasteiras dos arbustos e bancos de praça.
- Desgraçado! – Ele rosnou girando o corpo tentando localizar a presença do assassino. Seus pés giravam sobre o chão de cascalho e brita e ele permanecia não o localizando. No entanto, a presença assassina e perturbadora insistia em luzir como um anúncio em néon.
- Apareça covarde! – Ele gritou.
Um movimento rude fora executado em suas costas, ele virou-se de imediato com o .38 prestes a disparar novamente, no entanto, nada estava lá. O coração de Renan palpitava, o suor descia de seus cabelos e a ameaça insistia em movimentar-se em suas costas numa ação zombeteira e tão rápida, que apenas um vulto se fazia perceptível. O medo lhe dominava, pois ali, ele percebera que não estava caçando o seu iminente algoz, e sim que era caçado por ele.
Em passadas desesperadas para trás, Renan pisara em falso em uma depressão. Na verdade a depressão se tratava de uma estradinha feita de brita e cascalhos de pedras que cortava a praça.
Caído, Renan passou a tatear em desespero buscando o .38 que escapara durante a queda. Se a situação já era desesperadora, se agravara no momento em que a arma escapara de seus dedos.
A presença se concretizara novamente em suas costas e agora, havia 666 razões para Renan Lemos pensar que chegara o momento de sua morte, no entanto, ele não desistiria tão fácil, por mais que estivesse à mercê, esperando apenas o fim, o momento derradeiro.
A desesperada situação fizera com que sua visão se aguçasse na escuridão. O .38 estava próximo, junto ao meio fio da estradinha. Um pequeno alento explodiu dando uma esperança a Renan, sua visão panorâmica notava a silhueta ameaçadora aguardando o momento exato para assassina-lo. Renan esticou o braço direito e seus dedos se fecharam contra o revólver. A silhueta ameaçadora permanecia imóvel em suas costas. O que ela tencionava? Por que permitia que ele se insinuasse até a arma? Não importava. Era a sua oportunidade. Com o revólver alocado perfeitamente em sua mão direita agora, Renan rolou para o lado como um herói nos filmes de ações, o seu giro lépido sobre a brita, permitiu que ficasse de barriga para cima com a parte superior do corpo levemente arqueada e com o cano do .38 devidamente apontado para a silhueta.
Três disparos que nada acertaram. O que fez Renan divagar numa constatação quase que inoportuna, que só lhe restavam duas balas. Levantou-se de imediato olhando ao redor, percebia que as luzas das casas que avizinhavam a praça se acendiam, os estampidos ribombaram explosivos. Renan constatava agora duas coisas mais oportunas para o momento; a primeira, e a mais importante, era que não podia com aquele assassino, pelo menos num ambiente escuro como aquela praça, a segunda, era que seus disparos chamaram bastante atenção, algum vizinho decerto ligara para a polícia e as coisas ficariam piores.
Renan correu em uma fuga alucinada.

14
O peito doía enquanto arfava num ritmo insano de uma flauta de fole. O suor descia de seu rosto e suas axilas formavam duas meias luas escuras em sua blusa. Arqueado e apoiado sobre o muro do quintal de sua casa, Renan tomava todo o ar que podia; da praça a sua casa, foram 20 minutos de uma corrida desenfreada por sua vida. Olhou para o portão que sempre dormia destrancado e assentiu que aquela noite seria uma ótima oportunidade para quebrar aquele tabu. Porém, ao bater a mão no bolso de sua calça, Renan Lemos percebeu que suas chaves ficaram para trás.
- Que ótimo. – Ironizou ele percebendo que havia as perdidos no momento em que caíra na praça.
Pior do que tê-las perdido numa situação crítica, era ter que arrombar a porta de casa para entrar tarde da noite. Porém para a horrenda surpresa dele, a maçaneta da porta completou o giro e a mesma se abriu emitindo um lúgubre rangido em suas dobradiças.
Sobressaltado, Renan relutou em entrar, pois tinha certeza que havia trancado a porta antes de ir para a casa de Vanessa. Diante daquela incerteza aterradora, o pensamento cruel e resoluto de que seu assassino havia pegado as chaves e chegado antes dele.
Decidindo se fugiria ou se entraria, Renan percebera que além de suas chaves, seu celular também havia ficado para trás. Aquilo não era bom, pois se a polícia verificasse a praça onde efetuara os disparos, provavelmente encontrariam o aparelho e consequentemente os levariam até ele. No entanto, era algo que podia ser pensado depois; a prioridade do momento era decidir se ele poria um fim naquilo tudo ou se voltaria para casa de sua namorada. Pusera na cabeça que não poderia passar o resto de sua (curta) vida (segundo o espelho de bronze) fugindo como um rato. Sacou o .38 com um virtuoso brilho no olhar, encostou o cano em sua testa enquanto seus olhos se fechavam e seus lábios emitiam uma prece muda. Só lhe restavam duas balas, duas miseráveis balas.
Renan cautelosamente abriu a porta e passou esgueirando-se entre a quina e o batente de ferro. Sua casa estava escura, porém, mesmo que a escuridão favorecesse o seu perseguidor, ele assentiu que se as luzes fossem acessas, perderia a única vantagem que teria – o elemento surpresa. - Assim que cruzou a soleira da porta, Renan Lemos escutou um pequeno barulho vindo do cômodo que ele improvisara numa central de investigação. Correu para trás do longo sofá da sala e imaginou que o invasor noturno verificava o seu quadro contento as fotos das pessoas que ele suspeitava.
Lá de dentro soou uma voz sibilante, aguda e indecifrável, talvez a tensão não o deixasse compreender o que o invasor havia dito. Seu coração batia tão forte e acelerado, que era possível ouvi-lo chocando contra seu peito. Passos foram dados, o invasor deixava o quarto se encaminhando a sala. Renan erguia-se claudicante por sobre o sofá, apoiando o cano do .38 sobre ele. Daquela posição, podia vê-lo muito bem. A silhueta humana ao lado da silhueta inanimada de sua estante, seu dedo estava no gatilho e o invasor estava bem no foco da pequena alça de mira no cano do revólver.
Uma clarividência de sua infância surgiu iluminando toda aquela cena sombria e crucial. Uma clarividência de garrafas de vidros enfileiradas sobre um tronco caído. Troco que se exibia com inúmeros furos sobre a sua superfície morta e ressecada. No outro patamar, Renan Lemos com 9 anos, ao lado pai, com sua pequena mão direita clamando o apoio da esquerda para que pudesse manter ereto o então enorme revólver calibre .38.
- Mantenha-o firme. – Dizia seu pai.
Renan levantara a mão esquerda apoiando-a sob a direita, o .38 ficou mais bem apoiado, não mais tremia tanto.
- Isso! – Incentivava seu pai.
            Paulatinamente, Renan ia se acostumando a segurar a arma. Ela que antes tremia como se emitisse espasmos nervosos, agora estava firme.
            - Foque as garrafas – disse seu pai – imagine que você está num túnel onde no fim, só há aquelas garrafas. Esqueça tudo, esqueça que estou aqui e quando você só visualizar o alvo, puxe o gatilho.
            Renan se concentrou, cadenciou sua respiração e a voz de seu pai se esmorecia conforme ele adentrava naquele túnel imaginário, assim como também esmorecia o canto dos pássaros, a luz do sol que era filtrada pelas árvores dos bosques. Tudo se esvaiu, no fim, só restou aquelas garrafas de cervejas velhas. O guri puxou o gatilho e uma delas se espatifou.
            De volta a sua sala escura, Renan só observava o alvo, as palavras de seu pai ainda podiam ser ouvidas como se uma dobra do tempo o levasse ao passado. Seu coração desacelerou numa frieza absoluta. O invasor não o via, e mesmo se o visse agora, seria tarde demais.
            É só puxar o gatilho, Renan.
            Renan não pestanejou em obedecer aquele pensamento. Puxou o gatilho e o cano do .38 emitiu uma baforada de fogo naquele negrume. A silhueta fora arremessada para trás emitindo um gemido agudo, chocou-se contra a estante da sala antes de cair lentamente.
            Só havia mais uma bala agora.
            Renan pôs-se de pé e caminhou em direção do invasor com o revólver ainda apontado e disposto a vomitar o seu último e letal projétil de chumbo. Bastava um movimento brusco e ele o faria, bastava um único piado e era o tiro de misericórdia. Todavia, a silhueta não se movera.
            - Eu disse que ia te pegar, seu desgraçado! – Ele dizia com um sorriso vincando o rosto.
            Renan postou-se diante do interruptor e para o seu terror supremo, ele acendeu a luz da sala.
           
15
- Oh meu Deus! – explodiu um grito no meio da noite – Por quê? O que você fazia aqui?
            Ajoelhado, perante o corpo ensanguentado da namorada, Renan não se continha, estava arrasado e ao mesmo tempo enlouquecido, envolto por um frenesi que roubava a sua alma.
            - O que você estava fazendo aqui, Vanessa? – Ele perguntava desconsolado.
            Vanessa emitia sons indecifráveis e gorgolejantes, o sangue escorria pelos cantos de seus lábios, sua blusa ganhara um círculo rubro, Renan a atingira bem no coração.
            - Aguente firme, Vanessa, eu vou ligar para uma ambulância, mas por Deus, por que você teve que vir? Eu disse que ia resolver tudo.
            A cada segundo que se passava, os olhos dela iam perdendo o brilho da vida. Renan percebera isso e percebera também que de nada adiantaria uma ambulância, o fim dela era iminente. Segurando a mão direita dela e acariciando o seu rosto, ele prestava uma última homenagem à namorada; o mínimo que poderia fazer, era ficar ao lado dela em seus últimos momentos de vida.
            - Não me deixe, Vanessa, por favor, eu sinto muito, eu te amo. – Implorava ele, por um curto segundo, seus olhos se voltaram para a mão esquerda dela, lá, levemente despojada pelo tapete da sala, próximo aos dedos em forma de garras apontados para o teto, seu molho de chaves e seu celular. Vanessa emitiu um sorriso vago e enfraquecido; no momento de sua morte, percebera que seu namorado lhe retribuía um amor que ela já duvidava, um sentimento que se esmorecia após vários anos de um relacionamento frio e resignado. Partira com a certeza de que Renan de fato a amava e com a certeza de que não era só um objeto sexual.
            Ela gorgolejou algo parecido com “Eu também te amo.”
            O corpo de Vanessa relaxou em um último e longo suspiro e fez Renan perceber que a alma dela havia ido para sempre. Ele a abraçou enterrando o rosto sem vida dela contra seu peito.
            O pequeno impacto que Vanessa causara quando se chocou contra a estante, fizera um pequena portinha de vidro, localizada na parte inferior do móvel junto à base, se mover desprendendo-se do imã que a mantinha fechada. A portinha ficou em um ângulo que possibilitava refletir a imagem de Renan explodindo um pranto mudo dos pulmões abraçado com o corpo morto de sua namorada, isso ao olhar de uma pessoa além deles, pois ao olhar de Renan, a imagem que se refletia naquela portinha era a mesma que se refletiu no espelho de bronze naquele hotel, agora com sua face coberta pela barba que tomava seu rosto.
            Um pequeno grupo de pessoas se aglomerou defronte à casa de Renan. Olhos aturdidos e expressões empalidecidas no meio da noite. Os gritos entrecortados chegavam violentos aos ouvidos daquela gente causando uma imediata sensação de mal estar.
            - O que está acontecendo? – Perguntou uma senhora vestida em sua camisola florida.
            - Eu não sei, mas tenho certeza que ouvi um tiro. – Respondeu um senhor sem camisa com uma imensa barriga protuberante por cima do seu short.
            - Meu Deus! – Replicou a senhora.
            Os olhos se voltaram para a casa em uma lúgubre solenidade.
            Observando sua imagem morta refletida por aquela portinha de vidro de sua estante, Renan emitiu um odioso brilho em seu olhar. A imagem que antes lhe assombrava, agora o irritava. Pegou o .38 despojado ao lado do corpo de Vanessa e apontou para a portinha como se ela fosse a grande culpada por tudo até então.
            -Por quê? – ele berrou – Por que teve de metê-la nisso? Ela não tinha nada a ver!
            A portinha continuava refletindo a funesta imagem de Renan morto como se tripudiasse de todo o desespero alheio.
            - É isso que você quer, não é? – ele dizia enquanto o .38 tremia em sua mão. Seu indicador estava prestes a puxar o gatilho novamente, um pensamento lhe veio de súbito. Se eu atirar nessa imagem, se eu atirar naquele espelho, será que... – Sim – disse se levantando – aquele espelho desgraçado!

16
            Restava uma última bala. Um último tiro para o espelho e quase tudo estaria resolvido.
            As roupas estavam manchadas pelo sangue de Vanessa e a madrugada caíra tão repentinamente que em algumas horas a aurora tomaria os céus. Sob essa perspectiva, Renan caminhava pela escura e deserta estrada que levava até aquele hotel no meio do nada. Uma van o deixara nas proximidades até que ele pudesse tomar o resto do rumo a pé. De algum lugar do matagal que flanqueava a estrada, olhos pareciam espreita-los, porém ele não estava se importando dessa vez, talvez tais olhares auspiciosos, no fundo, poderiam ser apenas uma sensação causada pelo medo.  A imagem de Vanessa morrendo em seus braços o perturbava, um vislumbre terrificante. As figuras de seus vizinhos o observando deixando a sua casa, os olhos deles apavorados ante a sua expressão hediondamente impávida.
            Sua mão direita insistia em segura o velho .38. A qualquer momento a velha ameaça poderia surgir a fim de efetivar a previsão do espelho de bronze. Renan torcia para que tal figura não surgisse, pois ansiava dar o último disparo contra aquela coisa insólita e horrenda, mesmo que ele pudesse ser quebrado de outra forma, Lemos fazia questão de dar a ele o mesmo fim que Vanessa tivera.
            Calculava que em 30 minutos chegaria ao tal hotel. Porém, seus planos começavam a ruir quando uma sirene soou no limiar daquela estrada deserta. Renan a ignorou a princípio, sequer olhou por cima dos ombros para se certificar se era uma viatura, não precisava, pois sabia que se tratava de uma.
            Para desventura de Renan, o veículo da polícia desacelerava à medida que se aproximava. As bruxuleantes luzes azul e vermelha da sirene iam delineando o asfalto irregular da estrada. Um brisa soprou chacoalhando o matagal que flanqueava a pista.
            A viatura parou e Renan ouviu as duas portas da Blazer se abrindo.
            - Ei você, pare e vire-se devagar! – Imperou uma voz.
            Renan ignorou a tal ordem, porém ouviu as armas dos policiais sendo destravadas, prontas para atirar, assentiu que não poderia morrer antes de destruir o espelho, porém se fosse preso, o objeto continuaria lá. Então, a primeira coisa a ser feita, segundo os seus coerentes pensamentos soprados do subconsciente, era se virar obedecendo as ordens dos policiais.
            Renan lentamente fora girando sobre os calcanhares bem no exato momento em que o policial já escancarava a boca para repetir a ordem.
            O farol da blazer da polícia delineava a silhueta dos policiais, ambos com as pernas afastadas formando 2 vês invertidos. O topo das boinas brilhavam num ambíguo azul e vermelho com suas reluzentes e ameaçadoras pistolas apontadas para ele.
            - Puta merda, ele está armado! – Bramiu um dos policiais.
            Renan desceu os olhos para o revólver como se tivesse esquecido que ele estivesse ali.  
            Os olhos dos policiais se estreitaram em um alerta incisivo, o da direita estava calmo ante a situação, pois a sua frente, era apenas um cidadão armado e aparentemente perturbado. Já estivera e ocasiões bem mais críticas e sempre conseguira contorna-las. Contava-se nos dedos as vezes que precisou puxar o gatilho tanto de sua pistola quanto de seu fuzil, e não seria um sujeito desorientado que matara a namorada por alguma razão, que o faria fazer naquele momento.
            Todavia, o policial da esquerda estava trêmulo e ansioso, não pela inexperiência, pois já tinha 7 anos de corporação, mas sim, pela situação. Na cabeça daquele policial, nenhuma situação poderia ser mais crítica do que um sujeito alucinado e histérico com uma arma em mãos. Não tinha boas recordações desse tipo de cena. Clarividências dolorosas cutucavam velhas feridas. Seus dedos estavam ávidos sobre aquela pistola e uma gota de suor descia pelo seu rosto. Seus pensamentos eram decisivos. Não vai acontecer de novo, não vai acontecer de novo.
            - Largue a arma bem devagar! – Imperou o policial da direita.
            Renan encarava-os enquanto conjecturava uma saída. Não podia ser preso, porém se não acatasse as ordens seria baleado. Mergulhado nesse dilema crucial, seu corpo e sua mente se prontificaram a ficar num estado catatônico. Imobilizado, Lemos apenas ouvia as carregadas ordens dos policias.
            - Largue a arma!
            Pensamentos vagavam em sua cabeça, Renan conjecturava uma saída, acima de tudo, pensava em destruir o espelho.
            - Largue a arma!
            - Eu não posso. – Respondeu Renan.
            Os policiais se entreolharam atônitos. A situação se complicava.
            - Escute cara, não estamos para brincadeiras, eu vou contar até 5 e você, bem devagar, irá colocar a suar arma no asfalto e em seguida irá se deitar com as duas mãos na cabeça, fui claro?
            - Vocês têm que entender – replicava Renan – eu preciso ir a um hotel, depois disso, eu juro a vocês...
            - Um! – Latiu incisivo o policial da direita.
            - Têm que me deixar ir.
            - Dois!
            - Três!
            - Merda!
            - Quatro!
            No último segundo, Renan pôde ver as mãos dos policiais se apertando contra as pistolas. Deus! Eles vão atirar se eu não obedecer, porém, se o espelho não for destruído, morrerei da mesma forma.
            - Cinco. Largue a arma agora!
            Renan fizera um movimento brusco. Não se sabia se ele tencionava atirar nos policiais ou se iria se desfazer do .38. Contudo, o que se evidenciou naquela cena, fora o movimento descabido de cautela de Renan. Tal movimento se configurou para o policial da esquerda, como um gesto claro e manifesto de reação. Sem pestanejar, puxara o gatilho e pusera uma bala no peito de Renan Lemos.
            Renan caíra para trás com os olhos abertos e sem vida fitando o escuro céu daquela madrugada. Permaneciam vidrados lhe dando um hediondo aspecto de peixe morto. Um dos policias entrou na Blazer, pegou o rádio e informara estridente:
            - Suspeito baleado! Suspeito baleado!
            O corpo de Renan estava estirado com os braços e pernas abertas formando um pentagrama no asfalto, os dedos das mãos dobrados com o .38 ao lado da direita. A imagem de Renan Lemos era a mesma que o espelho de bronze projetara dias atrás.

17
            No quarto 217, o velho recepcionista olhava para o espelho de bronze com um malicioso sorriso na face. Seu vítreo olho verde e seu vívido olho castanho claro, fitava com certo fascínio a horrenda imagem que era refletida naquela superfície. Decerto o reflexo não mais o incomodava e tampouco o assustava. O sorriso malicioso do velho se arreganhou como as pernas de uma prostituta, revelando uma fileira de dentes irregulares e amarelados. Emanava uma gargalhada carregada que oscilava pela tosse seca. O velho pegou o pano branco sobre o tapete e cobriu o espelho de bronze.