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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A bastarda


Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, 1937. Época difícil para a lavoura de uma pequena comunidade isolada às margens do rio Guandu. As fortes chuvas castigaram as plantações por duas semanas levando tudo literalmente por água abaixo e, como se todo castigo fosse pouco, a maioria dos homens estavam em idades avançadas. Fato que dificultava as tentativas de recomeço. Logo, não tiveram outras escolhas a não ser obrigarem as crianças a labutarem desde cedo na tentativa de ao menos tirar o mínimo sustento da terra.
Numa noite parcialmente nublada onde a lua era uma foice amarelada no céu. No dia 17 de janeiro precisamente. Em um quarto de um casebre iluminado por um lampião a querosene, Francisca dava luz a uma criança.
-Uma menina. –Disse a parteira.
Um grupo de pessoas aguardavam ansiosas ao lado de fora do casebre. Ansiedade que fora triplicada quando a parteira surgira diante deles segurando o lampião que delineava sua face enrugada e bronzeada em sombras obscuras. A expressão dela era severa.
-É uma menina. – Anunciou.
Houve cochichos entre o grupo de pessoas. O marido de Francisca, Adílio, não conseguiu conter a sua frustração ao ouvir aquela anunciação. Adentrou no escuro casebre indo ao encontro de sua esposa enquanto as pessoas cochichavam o quão azarado era aquele casal.
Francisca amamentava a criança enquanto Adílio a olhava desconsolado. O cricri dos grilos e o coaxar dos anfíbios se intrometiam naquele silêncio mórbido.
-Não deve desperdiçar o leite com ela, mulher. Meninas não conseguem ajudar na lavoura e já temos muitos velhos que não conseguirão dar conta do serviço.
Francisca arregalou os olhos, pois para ela, seu marido não teria coragem de cometer tal ato, contudo, o semblante dele exprimia convicção.
Com a decadência da lavoura daquela comunidade a beira do rio Guandu, os moradores convencionaram que filha mulher só seria prejudicial naquele momento de crise, pois a colheita era escassa, uma menina não resistiria aos duros trabalhos braçais que aquelas adversidades exigiam, logo era mais vantajoso ter um filho homem sob esses aspectos.
- É melhor do que vê-la morrer de fome – rosnou Adílio contemporizando – pela manhã resolveremos isso. Agora descanse que a tarde teremos muito trabalho a fazer, creio que virá mais chuvas durante esse mês.

O dia amanhecera nebuloso. Havia uma tímida névoa cobrindo os campos. As folhas das árvores estavam úmidas pelo orvalho da madrugada.
Maria bebera um copo de leite antes de se dirigir a casa de Adílio e Francisca. Caminhara por entre as brumas do campo enlameando a sua surrada e humilde sandália. Adílio a esperava na porta de seu casebre com sua filha embalada em um esquálido pano marrom. Havia um cigarro de palha no canto de sua boca. Ao avistar Maria se aproximando, ele precipitou-se para a pequena varandinha.
-Minha mãe disse que conversou ontem com o senhor.
Adílio meneou afirmativamente a cabeça sem tirar a expressão severa do rosto.
- Afogue essa pobre alma no rio para que as próximas possam ter a mesma sorte que você teve, Maria. –Ele entregou o bebê a jovem maltrapida menina que estava diante de si – Espero você daqui a pouco lá na horta.
Maria segurava o bebê às margens do Guandu. Em sua inocente mente de 12 anos de idade, não houvera questionamentos para o que ela estava prestes a fazer. Questionamentos que surgiriam anos depois. Para aquela gente, a morte não era uma coisa pior que a fome. A água estava gelada naquela manhã. Maria fitou a indefesa criança antes de deixá-la cair no rio.

Damião encontrava-se sobre uma enorme rocha que desafiava o rio. Fazia os últimos preparativos para arremessar sua tarrafa no Guandu quando avistou algo estranho sendo levado pela correnteza. Sua visão já não mais era aguçada como há 7 anos, apesar disso, o velho pescador pôde notar algo hediondo naquele momento.
Damião deixou a tarrafa sobre a rocha e cautelosamente fora até a coisa à deriva no Guandu. Naquele ponto a correnteza não era forte, mas qualquer descuido poderia ser fatal. Lentamente ele se aproximava daquele pedaço de estopa marrom presa em um galho que despencara de uma árvore marginal do Guandu. A água batia no peito de Damião. Ao tomar aquele pedaço esquálido de tecido em mãos, o pescador pôde confirmar o que de longe seus olhos haviam suspeitado. Uma criança! Uma criança que por um milagre divino não se afogara e não morrera de hipotermia ou de outra maneira mais provável que a própria sobrevivência.
-Santa Maria Mãe de Deus!

Se acha que essa criança teve uma vida digna sob os cuidados de um pescador que a tratou com sua autêntica filha, engana-se. O ato misericordioso de Damião paulatinamente havia se tornado um fardo cujo ele não gostaria de carregar sobre seus ombros.  A menina dera muito trabalho quando era bebê, porém daria mais com o passar dos anos e já dava naquela primavera de 1949. Damião jamais tivera uma esposa e jamais imaginara que Deus colocaria mais uma boca além da sua para ser sustentada em sua vida. Numa ensolarada tarde de quinta, os dois comiam as últimas gramas de feijão que havia na dispensa do casebre de madeira de um único cômodo em que moravam. Os tempos permaneciam difíceis, principalmente para o pescado, e Damião passara a ter bastantes concorrentes nas feiras em que vendia seus peixes. Diante daquele silêncio, a menina feliz pela refeição o surpreendeu com um questionamento que poderia emocionar qualquer pessoa...
-Posso te chamar de pai?
... Exceto Damião.
-Não, já disse que não sou o seu pai. Te encontrei boiando no rio.
A menina se estremeceu com as rudes palavras de Damião. Embora soubesse o seu passado, aquela rejeição de uma figura cujo ela via uma paternidade, fizera seus sofridos olhos marejarem.
-Depois do almoço, lave os pratos e vá regar a horta. – Ordenou Damião antes de se levantar da pequena mesa de madeira e sair para só voltar à noite.
Como já não bastasse uma vida sofrida desde o seu nascimento, a jovem rejeitada também tivera que conviver com um homem violento. Por inúmeras vezes sentira o peso das mãos dele contra seu frágil corpo. Mãos que fediam a entranhas de peixe. Quando o cheiro de pinga emanava daquele homem, ela temia.
Em dias de feira, Damião sempre tomava suas pingas para tirar um pouco do peso do mundo de suas costas. Todavia, quando a venda não era boa nem na semana santa, ele bebia para esquecer. Esquecer de seu fracasso e esquecer de uma intrusa em sua vida que ele tinha de alimentar.  Voltava para casa quando a estrela d’alva já despontava no céu. Cambaleando pelas ruas ora de barro ora de paralelepípedos. Carregando uma pequena carrocinha com o pescado não vendido simbolizando o seu fracasso.
A menina o aguardava ansiosa. Por poucas vezes, Damião lhe trazia doces e outras guloseimas. Certo dia, após o natal de 45, ele a presenteara com uma boneca de trapos. Apesar de toda aquela simplicidade, fora o maior presente que já recebera. Aquela boneca feita a trapos, com um rude pano vermelho formando um vestidinho. Com dois botões que formavam os olhos. E, com sua boca formada por um pequeno retalho interpretando um sorriso. Aquela bonequinha lhe trouxera uma dignidade diante de tantos maus tratos. Porém, aquele 28 de dezembro de 1945 fora apenas um extraordinário fato em sua vida. Damião jamais estivera com aquele humor desde então. Contudo, ela sempre o aguardava com olhos esperançosos.
Ao fitar o homem que salvara a sua vida chegar cambaleando pela embriaguez, ela temeu. E seu temor fora totalmente justificado, pois naquele dia Damião a espancou como se ela fosse a grande culpada por todos os revéis que ocorriam em sua vida. A menina ficara 4 dias sem poder andar e Damião chegou a imaginar que ela jamais tornaria a andar depois daquilo. Ficara com o corpo repleto de equimoses. A jovem maltrapida sequer teve forças para comer durante aqueles dias.

Você, amigo leitor, deve estar imaginando no como essa desventurada jovem sofrera em tão curto período de tempo. Todavia, a vida havia lhe preparado uma surpresa nada agradável. Em 1952, a menina deixara de ser menina tornando-se uma mocinha. Foram mudanças difíceis de serem assimiladas. Pêlos em certas partes do corpo, crescimento de outras e a apavorante menstruarão. Em sua funesta inocência, ela assentira que aquele sangramento seria oriundo de uma das sessões de espancamentos que Damião havia lhe proporcionado. Porém, aquilo vinha todos os meses e o seu tutor, digamos assim, a explicou à sua maneira. Não obstante, de longe essas mudanças foram seu maior problema.
Damião jamais fora um homem atraente em sua juventude nas fazendas do interior de Minas Gerais. Tampouco seria agora quando atingira uma idade considerável e as rugas tomavam conta de sua face. Não lembrava a última vez que tivera uma mulher ao seu lado. A última talvez tivesse sido uma meretriz barata de beira de estrada. Contudo, apesar da idade, ainda existia um fogo mesmo que tímido em seu interior. E a moça se tornara mulher, mesmo que forçada aquilo. Mesmo não compreendendo o porquê. Só compreendia que aquilo teria que ter um fim. Custasse o que custasse aquilo teria que ter um fim.
Em 1953, Damião viajara para Minas a fim de visitar um primo doente. Teria que vê-lo uma última vez, afinal aquele primo seria consumido por completo por uma doença que muitos até então desconheciam. Foram as melhores duas semanas que ela passara naquele casebre. Contudo, a vida não estava disposta a lhe dar trégua. Sentada na rede acariciando a sua surrada bonequinha de trapos, pôde ver Damião surgindo ao fundo da estradinha de barro.
A moça fitou aquele homem carregando uma maleta com resignação. À medida que ele se aproximava, um sentimento iracundo ia atormentando-a. Um sentimento que ela jamais sentira antes. Olhando aquele homem se aproximando, todos os maus tratos surgiam-lhe em uma clarividência. Aquelas duas semanas fizeram a jovem mulher a assentir que aquilo nunca deveria ter ocorrido. E ela, decididamente estava disposta a mudanças.
Damião parou diante dele e a fitou com olhos ardentes. Ela tentou dar de ombros, mas aquele olhar libidinoso intimidava qualquer possibilidade de ignorar tal situação. Ficara nervosa e sem perceber, retesava a boneca de trapos estrangulando-a. Damião estendeu a mão para acariciá-la. Não uma carícia fraternal, absolutamente não. Era uma carícia maliciosa que uma pessoa faz quando transborda em ardor.
-Sentiu a minha falta?
Ela não respondeu, apenas abaixou a cabeça desviando os olhos dele dos seus.
-Eu sei que sentiu. – Insistia ele audaciosamente.
A moça pôde sentir um singelo cheiro de pinga exalando do hálito de Damião. Embora ele não aparentasse nenhum sinal de embriaguez, o pouco que bebera seria o suficiente para transformar a vida dela num inferno.
A moça não reprimiu seu ímpeto repugnante para com Damião, e num movimento brusco, tirou a mão que lhe acariciava de seu rosto.
Damião irritou-se. A mão que antes acariciava agora agredia. Esbofeteou a face dela com um potente tapa que estalou fazendo o rosto dela corar e seus emaranhados cabelos chacoalharem.
-Ingrata! Se eu soubesse deixava os peixes comerem você! Se eu soubesse eu afogava você!
Ela o olhou com os olhos estreitados. Encarava-o febrilmente. Damião não gostava daquele olhar. Ela sabia que ele não estava gostando, porém o afrontava. Os punhos do pescador se fecharam, as veias do antebraço ficaram sobressaltadas e os nós dos dedos esbranquiçados.
-Não me olhe desse jeito se não quer que eu arranque esses olhos!
Ela ignorou aquela frase imperativa num ato desafiador.
Damião precipitou-se para socá-la, porém, ela sequer piscou, ao contrário, seus olhos desafiadoramente se arregalaram quando o punho dele se aproximava de seu rosto.
A mão dele parou a centímetros do rosto dela. Damião sentiu-se incapacitado de agredi-la ante aquele olhar. Recolheu o seu braço e praguejou antes de entrar no casebre e sair sem destino.
Já era noite e ela estava decidida. Damião chegaria a qualquer momento impregnando todo o lugar com o forte aroma de pinga.  Seria a última vez que ele sentiria aquele cheiro naquela casinha de madeira. A moça havia preparado uma pequena trouxa contendo seus poucos pertences. Esperava o retorno de Damião para se despedir. Lamentava não saber ler e escrever, pois não mais gostaria de estar frente a frente com aquele sujeito. Um simples bilhete resolveria a questão. Em sua trouxa, a sua velha boneca de trapos e uma revista cujo achara boiando nas margens do Guandu.  A revista que ela pusera para secar durante dois dias lhe mostrou que havia um grande mundo além das margens daquele rio. Aquilo tivera uma leve influência em sua decisão. A moça já havia assimilado um espírito indomado e desbravador.
Damião finalmente chegara e como era esperado, bêbado e violento.
-O que significa essa trouxa? – Perguntou ele com a voz trêmula pela embriaguez.
-Estou indo embora. – Respondeu ela sem a convicção que demonstrara mais cedo.
Damião jamais pensara ouvir algo tão deveras absurdo e assombroso vindo da boca dela.
-Ora, mas não fale asneiras, sua ingrata!
Ela não respondeu. Abaixou a cabeça enquanto ouvia os insultos de Damião. Poderia se sentir desejada, porém não era o caso. Sabia que o que Damião desejava estava entre as suas pernas, ela poderia ser funestamente inocente, contudo sabia que não poderia viver como um objeto sexual de um velho repugnante como Damião.
-Estou indo. –Ela murmurou.
Todavia, a vida havia de dificultar como sempre dificultou.
Damião agarrou o braço dela com força apertando até que seus dedos ficassem marcados.
-Me solte! – Ela gritou tentando se desvencilhar de suas repugnantes garras.
Damião a atingiu com as costas de sua mão jogando-a no chão. Ela caiu junto à cama, e naquela perspectiva, seus olhos puderam visualizar uma coisa sob a cama que mudaria a vida de todos.

Desde que saíra de Minas Gerais em 1929, Damião perambulou por muitos lugares antes de se estabelecer às margens do rio Guandu. Passara por inúmeras dificuldades inclusive a fome. Tivera que se desfazer de muitos pertences, alguns de grande valor financeiro e sentimental, tal como um colar foleado a ouro que fora herança de sua mãe e um par de alianças também foleadas a ouro que ele teoricamente deveria usar em seu casamento. Porém, existia uma coisa que Damião seria incapaz de se desfazer não sabendo por que cargas d’águas. Uma coisa que ele preferiria ceder um braço para mantê-la em seus domínios. Uma carabina que ao longo de sua vida desde a sua fabricação, só fora utilizada umas 3 ou 4 vezes.

Ela olhava para a carabina como olhos vítreos. Damião a pisava e a insultava.
-Eu vou te matar sua ingrata!
Ela esticou o braço levando-o para baixo da cama. Tencionava pegar aquela arma e por um momento, duvidou que fosse conseguir.
Damião estava bêbado demais para assimilar a intenção daquela moça que ele agredia. Só iria descobrir da pior maneira possível.
Ela alcançou a carabina e puxou-a um pouco para perto de si com a ponta dos dedos. A arma já estava numa posição onde ela poderia agarrá-la. E assim o fez. Damião pisou em sua cabeça e ela bateu com a testa no chão, contudo, esta ação fora suficiente para que perdesse o equilíbrio que já não era dos melhores. Ele se irritara demais ao cair e é claro, culparia aquela moça cujo salvara há 16 anos. O pescador se levantaria e a espancaria até quase matá-la. Porém, a vida colocaria seu destino nas mãos dela.
Quando Damião perdera o equilíbrio e caíra de costas no chão, ela aquiescera que era o momento ideal para reagir. Agarrou a carabina com firmeza e puxou-a de sob a cama pondo-se lepidamente de pé.
Com bastantes dificuldades em se levantar, Damião fazia movimentos bruscos tentando pôr-se de pé. Não obstante, ficou paralisado ao ver a carabina apontada para ele. Por um momento, seu bronzeado tom de pele se empalideceu. Aquele olhar desafiador estava de volta no semblante dela.
Embora a expressão de Damião denotasse um pavor ante a mira da carabina, suas palavras eram a antítese de todo aquele semblante.
-Você não teria coragem – rosnou ele – sequer saberia como atirar.
Ela desviou a mira dele por um curto instante e disparou provando-o que de fato sabia como atirar. O tiro causou um imenso buraco na parede de madeira do casebre em que viviam. Por pouco não havia destruído o pequeno altar com a imagem de Santo Expedito e algumas velas já bastante consumidas.
Damião se assombrou com o disparo. O cano da carabina ainda fumegava quando ela novamente apontou-a para ele. Todavia, o velho pescador dera de ombros e aos poucos fora se levantando sem nenhum temor mesmo sob a mira da arma.
A voz dele subitamente se tornou fria e sóbria. Disse:
-Se quiser pode atirar a vontade, mas jamais se esqueça daqueles que a jogaram no rio. Se quiser me amaldiçoar tem todo o direito, mas amaldiçoe aqueles que jogaram você fora como um saco de lixo.
A moça sentiu aquelas palavras como sentiria um potente soco nas costelas que já recebera em ocasiões anteriores. Ela aquiesceu que todo aquele sofrimento começou quando a descartaram de sua família biológica há 16 anos. Detestava admitir, mas Damião tinha razão. Amaldiçoe aqueles que jogaram você fora como um saco de lixo. Amaldiçoe aqueles que jogaram você fora como um saco de lixo. Amaldiçoe aqueles que jogaram você fora como um saco de lixo. Amaldiçoe...
A carabina parecia que ficava pesada nas mãos dela. Diante de toda aquela situação, ela sentia-se confusa. A arma pendia para baixo tirando Damião da alça de mira. O olhar dela aos poucos ia ficando ausente.
-Você deveria ter o mínimo de gratidão. Eu salvei a sua vida. Eu te alimentei. Eu te Vesti. – Damião falava como se realmente fosse um pai para ela. Pai que ele nunca fizera questão de ser.
Os dedos dela se afrouxaram e a carabina estaria a instante de cair de suas mãos. Será que apesar de tudo, eu ainda devo a ele? Ela se perguntava. Eu ainda devo a ele? Jogaram você fora como um saco de lixo.
Damião precipitou-se avidamente em direção da moça.
Os dedos que antes estavam frouxos e hesitantes ganharam confiança e se apertaram na carabina. Os olhos que estavam ausentes ganharam vidas novamente. Tudo acontecia tão lento e tão rápido num sinuoso paradoxo.
Damião agarrou a extremidade da arma e não encontraria dificuldades para tomá-la. Contudo, um estampido rimbombou naquele casebre às margens do rio Guandu.
Damião tinha os olhos arregalados. Seus lábios tremiam como se ele estivesse sentindo muito frio. A mão direita ainda segurava a extremidade da carabina. A mão esquerda se ergueu diante de seus olhos. Mão que estava manchada de sangue. Manchada com seu próprio sangue.
 Os olhos dela estavam aterrorizados. O corpo dela estava trêmulo como se também estivesse sentindo muito frio. Ela havia puxado o gatilho. Não por maldade. Puxara o gatilho por puro medo. Puxara o gatilho num gesto de auto-reflexo.
Lentamente, Damião ia esmorecendo-se diante dela. O sangue já escorria pelos cantos de seus lábios. Tentara dizer algo, porém sua voz não passou de um ruído esganiçado. Caíra de joelhos e abraçara as pernas dela. Encostara sua cabeça na altura do ventre da moça como uma criança buscando proteção nos braços da mãe, e naquela posição permaneceu até seu último suspiro.

Naquela noite de 14 de outubro de 1953, caíra uma chuva torrencial com pingos grossos e gélidos. Alguns granizos ameaçaram a cair do céu, porém foram reles ameaças. Sob aquela implacável tormenta, ela cavava. Estava ensopada e imunda. Seus cabelos eram um emaranhado de lama. Seus olhos estavam vermelhos. Ela chorava. Matara o homem que lhe dera abrigo, comida e vestimentas. Matara o homem que poderia ter a deixado morrer afogada e não o fez. Acima de tudo, matara sua única família, mesmo que Damião jamais admitisse isso, era sua única família.
A lua surgia por entre as nuvens quando ela jogara a última pá de terra no túmulo de Damião. Ajoelhou para rezar, mas ele jamais a ensinara a rezar. Apenas entrelaçou os dedos e manteve-se em 5 minutos de total silêncio. Caminhara sem destino, não levava mais a trouxa de roupas, levava apenas a carabina. Estava confusa. Em tão pouca idade, experimentara todos os sentimentos, desde os quase prazerosos até os mais mórbidos. Em toda sua confusão mental, apenas uma frase era clara. Amaldiçoe aqueles que jogaram você no rio como um saco de lixo.

O 15 de outubro amanhecera sob um tímido sol primaveril. Maria já não era mais aquela adolescente daquele pobre comunidade às margens do rio Guandu. Era uma mulher pouco servil e doentia. Isolava-se dentro da capelinha do vilarejo onde há 7 anos desde a morte do padre Carlos não era rezada uma missa. Maria passava 8 horas do dia lá dentro. Não conseguia dormir. Por mais incrível que possa parecer, a fé lhe trouxera desconforto e perturbações. A dor da culpa.

-Eu nasci aqui!? – Murmurou uma jovem moça.
De alguma maneira, ela assentira que aquele vilarejo era a sua “terra natal”. Caminhara sem se importar com o que iriam pensar de vê-la com uma carabina em mãos. Embora o lugar aparentasse ser uma cidadezinha fantasma; todos estariam labutando na lavoura e só retornariam ao cair do crepúsculo. Olhando para cada casebre do local, ela imaginou no como seria diferente se tivesse a oportunidade de viver ali. Ao passar defronte a capelinha, pôde escutar um murmúrio vindo de lá e a moça decidiu entrar.
Maria fazia suas fervorosas preces quando a portinha da capela rangeu em suas já enferrujadas dobradiças. O sol da primavera iluminou a escuridão e a brisa apagou a vela localizada no altar onde o padre Carlos consagrava o vinho em sangue e o pão em carne. Maria olhou por cima dos ombros em direção a entrada da capelinha. Seus olhos se arregalaram num ambíguo misto de perplexidade e contemplação. Diante de seus olhos, uma figura não tão alta e não tão pequena segurando uma arma que fazia um conta-senso devido à sua altura (arma que não assustava Maria). Sua silhueta era delineada pelos raios do sol primaveril. Quando os olhos de Maria se adaptaram a iluminação vinda de fora, pôde visualizar melhor aquela moça esquálida com traços já marcando seu rosto desde nova.
A moça olhava Maria com olhos resignados. Ameaçou dar um passo a frente, mas hesitou. Havia um odor acre impregnado na capelinha. Aquela mulher a olhava como se ela a estivesse esperando por muito tempo. Houve um curto período de estagnação. Maria que estava de joelhos pôs-se de pé. A moça não mais hesitou e entrou na capelinha.
Os lábios de Maria estavam trêmulos e a cada passo que aquela figura avança em sua direção, sua pele ia empalidecendo. Seus olhos iam marejando-se. A cada centímetro que aquela moça armada com uma carabina crescia em seu campo de visão, cada vez mais Maria poderia observar o quanto ela havia sofrido naquela vida devido às cicatrizes e as equimoses em seu rosto, braços e pernas.  Maria caiu de joelhos aos prantos diante daquela moça. Sua cabeça se inclinou até os pés sujos de lama dela. Agarrou os tornozelos da esquálida mulher e a cena se assemelhou a Maria Madalena lavando os pés de Jesus com suas lágrimas e enxugando-os com os cabelos.
A moça observava aquela cena num misto de perplexidade e resignação. De alguma forma assentiu que aquela mulher chorando a seus pés havia participado diretamente da mudança de sua vida.
-Me perdoe pelo o que fiz – dizia Maria com a voz trêmula pelo choro. – eu não tinha noção... Nossa senhora me mostrou como uma vida é valiosa e eu... Deus do céu, você não sabe o quanto eu esperei para pedir perdão por tudo que fiz a vocês.
As mãos de Maria iam subindo pelas pernas daquela moça armada.
-Não consigo dormir mais... Todas as vezes que eu fecho os meus olhos eu as escuto chorar. Eu não sabia o que eu estava fazendo. Se você me perdoar eu terei um pouco de conforto. Perdoe-me, não me mate!
As mãos dela já acariciavam o ventre da moça mesmo com a carabina estacionada naquela altura.
-Não me mate, por favor, não posso morrer com essa culpa na alma. Não entrarei no reino do céu se não tiver o perdão das almas daquelas crianças. Você vai ser mãe, posso perceber acariciando a sua barriga. Eu não quero cair no fogo do inferno.
Pela primeira vez em sua vida, aquela moça maltratada pela vida sentira pena de outrem. Antes só conhecia a auto piedade, porém agora havia uma nova coisa que a fez estremecer-se.
-Foram os velhos que me obrigaram a fazer aquilo. Eram tempos difíceis – Maria se abraçou ao ventre da moça que tivera que levantar a carabina para que ela completasse o abraço – eu posso ouvir o coraçãozinho dele batendo. É um presente de Deus para você. Vai ser uma boa mãe.
A grávida armada se afastou de Maria abruptamente. Naquele momento sua vida teria de seguir por outra perspectiva. Por mais que ela não fizesse ideia de como uma criança nascia, sabia das dificuldades que era alimentá-la.
Ao vê-la tomar uma meia distância de si, Maria imaginou que ela iria atirar.
-Oh não, por favor, aqui é a casa de Deus!
Maria se inclinou para frente num gesto de assalamaleico. E naquela posição permaneceu esperando ouvir o estampido da carabina que poria fim a sua doentia vida. Porém, o que ela escutara fora a portinha da capelinha rangendo em suas enferrujadas dobradiças novamente.
Maria agradecia aos céus por estar viva. No entanto, se pudesse adivinhar o futuro, pediria para que aquela moça apertasse o gatilho num benevolente ato misericordioso. Maria passou o resto da vida em busca de paz de espirito e em busca do perdão das almas que ela mandara para o limbo. Porém, os pesadelos jamais cessaram. Sucumbiu a loucura e definhou até morrer 15 anos depois.
Os moradores daquela pequena comunidade à beira do rio jamais tomaram conhecimento daquela visita que surgiu como um espectro vingativo. A vida deles manteve-se na ordinária monotonia do local. Os tempos não eram tão difíceis e nenhuma outra menina recém-nascida fora jogada ao Guandu por eles.

A moça desistira de explorar o convidativo e colorido mundo além das margens do rio. Voltara ao velho casebre onde passara boa parte de sua vida. A gravidez lhe fora um grande empecilho. Não compreendia o porquê. Porém a vida já havia lhe provado que ela não tinha que compreender. Tinha que aceitar e resistir.
Da mesma maneira que ela sobrevivera quando a jogaram no Guandu, só Deus sabia como ela conseguira dar a luz aquela criança sozinha e isolada. A dor fora algo que ela jamais gostaria de experimentar novamente e jamais tornou a experimentar. Instintivamente ela o amamentou, porém sabia que o leite não duraria para sempre. Como iria alimentá-lo? Como iria vesti-lo? Diante daquele dilema, ela não se viu com muitas escolhas e compreendeu o espírito da coisa.
Ela tinha sua criança embalada em um esquálido tecido marrom. A criança chorava e ela a aninava. O sol refletia-se nas águas do rio, era uma linda manhã de fim de outono. A criança parara de chorar e a moça a entregou para que o Guandu selasse o destino dela assim como selou o seu.