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sexta-feira, 4 de março de 2011

O Primeiro Segredo ( de Ana )

O filho à frente; atrás, sua mãe. Desciam os dois pela escada de madeira que levava do mezanino até a sala de estar. O barulho dos pés estacando no chão, os rangidos sôfregos do pinho e o som cada vez mais fugidio das vozes a se afastar do seu aposento no segundo andar da casa eram seus olhos. Difícil não ter como ver; ainda mais difícil é fazer da diversidade infinita dos sons sua bússola. Foram anos aprimorando forçosamente os ouvidos de cego. São os melhores entre todos, com efeito, mas a custa de muita dor e desengano; os primeiros anos da cegueira são um florete enterrado na alma.

Estava de costas para a porta entreaberta de sua biblioteca agora inútil. Tão inútil quanto fedorenta e mofada. Ninguém mais lia seus livros. Ana, a mulher, não tinha o hábito; seus filhos, Érico e Manoel, tampouco. A cada dia que passava, sentia a vida microbiótica passear e fazer lar entre as páginas de sua vida. Estranhava os odores a cada dia mais incisivos, conquanto soubesse que, além da audição, todos os outros sentidos despertaram da letargia quando o pictórico morreu por detrás do glaucoma. Com o olfato passa o mesmo. O sujo fedia mais; o limpo ficara a cada dia mais odorífico.

Os livros que no passado viviam sendo folheados agora se resignavam, escorados pelos outros livros, escorando-os também; permaneciam como no dia em que o oftalmologista recomendou-lhe que cessasse a leitura . Cada um fazendo o peso necessário para igualar a força que vinha do peso dos outros livros justapostos. Não há nada mais aconchegante que uma biblioteca; não há nada mais meu que minha biblioteca. Passava as mãos sobre as obras; Vinha-lhe à mente que tudo que lera transformara-se na nuca lipídica e abaulada de seu tio Facundo ou numa rodovia feita só de quebra-molas; assim, acariciando os exemplares empilhados nas estantes e sem retirá-los de seus espaços exíguos, bolinando-os, apalpando-os, roçando a palma de sua mão direita nas capas, sentia como se encoxilhava a superfície dos enredos ali aprisionados. Doía-lhe que de tudo que pôde sorver das frases, períodos, parágrafos, epígrafes, preâmbulos, prólogos, epílogos e capítulos só lhe restara o exoesqueleto, a casca - Pelo menos ainda tenho mãos.

Costumava passar horas tentando rebocar da memória a textura dos invólucros, quais deles eram em alto relevo, quais erodiram quase por completo, quais amassaram; se naquela prateleira estavam os tomos de sua enciclopédia, se na outra os russos, acolá os modernistas. Se não podia inventar seu próprio braile quando dedilhava suavemente a revestidura, criava em sua mente um novo mapa em três dimensões, onde toda senda dava num livro. Se Madame Bovary virara o homem-barata, já não fazia diferença; quem se importaria com seus silogismos no breu; se esse é fino, deve ter cem páginas; se tem cem páginas e as mesmas esfarelam em minhas mãos, deve ser “O Relato de um Náufrago”. Uma página parcialmente rasgada, uma orelha, a textura das folhas traziam à baila estórias aleatoriamente, ensejando o batismo do objeto-livro, mesmo que dentro dele houvesse um romance distinto: quem se importa? Ninguém os lê nem sabe que os quero ler novamente. Quem há de entender que preciso conversar com meus livros outra vez? Preciso saber quem são eles, quem são seus vizinhos na estante, se se sentem bem com o bolor que não para de ficar mais impertinente às minhas narinas.

Pela janela do segundo andar, tudo é inteligível; ausculta tudo através do mínimo som que entra pelas orelhas; o mundo ganhara, além de um cego, um mexeriqueiro: já desceram as escadas; atravessaram a sala; agora, o quintal; Érico abre o portão e Ana o segue; Ana pede que Érico venha ver seu pai mais vezes, que demova Manoel da ideia de viver na Austrália; Érico está em silêncio; deve estar olhando para chão por sentir-se atalhado – se não, deve estar assentindo com a cabeça; Érico se afasta do portão da casa, contorna o carro e lhe abre a porta fechada; fecha-a novamente; pega alguma coisa no porta-luvas – logo, não contornou o carro coisíssima nenhuma -, fecha-o e dá a coisa a Ana; Ana parece choramingar e, num átimo, já não está mais a cobrar nada do filho; Érico caminha em torno do carro; Ana vai atrás e se debruça na janela do motorista; Ana diz a Érico que quer despedir a empregada, Tudo está um caos, sobretudo a biblioteca, Parece que ninguém quer mexer nela, meu filho, já é a terceira empregada, droga; Érico diz que está na hora de vender a tralha toda do velho, Ele não vai voltar a enxergar, mãe; Ana o admoesta, Seu pai agora escuta tudo, tome cuidado, Fale baixo, Você sabe muito bem que se ele souber que estamos pensando em vender seus livros ele enlouquece, Você estará longe na hora da confusão, eu que tenho que agüentá-lo; Érico diz que está bem, que se ele gosta tanto, que se explodam o cheiro de mofo e a zona, que se ficasse cego, também não quereria que vendessem seu carro, que entendia seu pai; Ana afastou-se do carro; Érico ligou o motor; a partir daí tudo virou um vórtice sonoro de metal, combustão e rudez; o carro movimentou-se e o som roufenho foi se amainando; quando o sinal fechou, Érico e seu carro viraram a esquina sumindo da vista de Ana, que desdobrou um papel, Deve ter sido isso que Érico lhe deu ; Ana fechou o portão vagarosamente e voltou a casa.

Ao adentrar a sala, sentou-se no sofá e ali ficou. Ligou o televisor, pôs o volume bem baixo e começou a tricotar. Uma hora se passara desde a saída de Érico. Subiu para ver como estava seu marido.

“Algum problema, Érico?”

“Não... Mas venha cá, meu amor”.

Ana, que havia entreaberto a porta da biblioteca, acabou por entrar e sentou-se à mesa junto a seu marido. Ele estava ereto na cadeira, como sempre; as mãos espalmadas sobre o escrínio; sob uma delas um texto escrito a lápis. Ana levantou a mão esquerda de Érico, puxou suavemente a folha de papel ofício rabiscada; Érico, impávido, não se opôs. A caligrafia de Érico ainda continuava bela e esguia, mas as linhas entrecortavam-se, confundindo a leitora.

“Eu preciso morrer para ver se consigo ler novamente. Se continuar sem ler, comerei meus livros pra ver se um ácaro, lá do meu estômago, me conta alguma estória da qual já esqueci”.

Ana sorriu indecisa depois de ter lido a confissão em silêncio; Érico também, depois que ela dobrou o papel e aspergiu das narinas o ar e o muco; assim sorria.

“Ana, sabe a parede da porta? Pegue algum livro na estante e leia alguma coisa pra mim”.

“Pego”, e depois de franzir a testar e titubear um pouco, foi até os livros e trouxe consigo um exemplar de uma coleção de três tomos.

“A Origem das Espécies. Não é um dos seus preferidos, não é? Lembro bem de você falando de Darwin quando ainda ia para a Igreja. Você parou de ir à Igreja, mas nunca acreditou que a gente viesse do macaco”.

“Darwin nunca disse isso, embora eu tenha certeza que ele quisesse. Só não conseguiu provar; morreu antes”.

Ana sorriu estridente. Chegou a olvidar o quanto a cegueira de seu Homem lhe irritava.

No primeiro folhear descuidado - aquele que só um não- leitor faz, como um menino que chuta uma bola pela primeira vez - um papel amarelado desprendeu-se do abraço das páginas e voou ao sabor do austro gelado que entrava pela janela aberta, caindo no chão. Ana olhou para Érico, e era como se ele tivesse programado aquilo; as mãos ainda estavam sobre sua mesa; a expressão, intacta. A cegueira não lhe impediu de sentir que sua mulher logo descobriria que havia planejado aquele momento. Tencionou explicar a situação, mas não pôde esquivar-se do desejo de saborear a reação da mulher, através de sua voz.

“O que é isso, Érico?”, e nada respondeu. “Será que alguém pôs algum bilhete, ou sei lá o quê, dentro de um dos livros que você vivia comprando no sebo?”.

Agachou-se; o bilhete voara até a parede da porta, sob uma das estantes; ajoelhou-se e esticou o braço direito para coletar o papelzinho. Enfim pegou-o.

“É um texto meu”, falou Érico, placidamente eufórico.

“Sério? Você nunca deu pra escrever... Bom, pelo menos você me disse”.

Ana, leitora enferrujada, começou a ler. As letras pequeninas lhe embaralhavam a compreensão mais que o texto de Érico. Não havia nada empolado ou prolixo. Era um relato de um dia vivido no longínquo ano de mil novecentos e oitenta e sete.

Assim que percebeu que sua mulher começara a leitura, Érico lhe pediu que lesse à voz alta. Ana assustou-se, pois se sentira, por toda a vida, tolhida da literatura pela a obsessão de ler do marido. Como contar a ele que achei o máximo os livros que leu e releu quando ainda não tinha cabelos brancos, quando ainda vivia a se divertir com os amiguinhos da escola, pensava, tola, pois Érico tornara-se paulatinamente mais misantropo enquanto via seus queridos afastando-se do seu legado, que era o quê e do quê tinha lido.

“Pensei que só eu havia amado esse dia”, disse Ana, olhando para a janela. “Quer dizer que você gostava mesmo dos meus primos de Minas, né? Que ironia! Jurava, contava pra todos, pra mamãe inclusive, que você se sentia mal na companhia deles. Por essa eu não esperava... Mas...”, e Ana, gargalhando, continuou, “eu me lembro; você sempre dizia o contrário. Lembra da briga que tivemos quando eu surtei ao ouvir de você, mais uma vez, que era besteira minha, que você gostava da capialzada?”

“Lembro-me bem”, respondeu Érico, petrificado,“mas eu sabia que era culpa minha, em parte. Quando voltamos de Minas, nós estávamos no carro, descendo a serra de Petrópolis, eu te disse que havia adorado seu primo Mourão. Nunca tinha visto uma pessoa tão da roça como ele. Pronto: você cismou que eu odiava as viagens, suas primas, andar pelo cafezal... até da sua mãe você achava que eu gostava menos quando viajamos juntos pra lá.”

“Você gostava mesmo, Érico?”, perguntou-lhe, com os olhos enternecidos.

“Eu adorava. Só costumava ficar quieto, pois pensava que todos já soubessem que os visitava a contragosto, ora. Você também não ficaria?”

Ana se calou. Um pouco envergonhada, desviou o olhar dos óculos escuros do marido; esquecera-se, como sempre esquecia, desde quando a cegueira ainda era deveras parcial, que Érico não lhe via, tampouco seu constrangimento. Há algum tempo vinha alimentando a teoria de Manoel. Seu filho mais novo cria que seu pai desenvolvera um sexto sentido; não entendia como um cego podia ser tão autômato e sagaz. Ficaram todos os de casa com medo das revelações e da sabedoria que nem Érico sabia que lhe atribuíam. Não havia sabedoria qualquer, somente os outros sentidos puderam libertar-se enfim do jugo da visão.

Sem precisar que lhe pedisse Érico, Ana pôs-se até a estante da janela que dava para o pátio interno da casa. Érico sentiu o ar em movimento expelido contra seu rosto, a despeito do vento que subitamente parara de soprar: Ana pusera-se de pé açodadamente na direção de algum livro que acabara de divisar, feito um furacão.

Não exatamente. Foi como uma corrida que se dá quando se chega à praia, quando só se deseja uma única meta, que é estar submerso na confluência onde se produz a espuma branca do litoral que assoma espremida pela areia pálida e o horizonte de azuis indefinidos: quem já desembestou numa correria infantil para cair de maneira cambaleante no mar sabe que não se delimita o pedacinho de água no qual se vá jogar o corpo; simplesmente se vai, com objetivo definido, mas sem alvo para mirar e acertar, como se a areia lhe empurrasse para que o mar decida onde se dará o banho. Não é o banhista quem delibera sobre onde saciará seu desejo de água salgada; nem as bandeiras vermelhas do Corpo de Bombeiros são capazes de deter a força motriz da areia e o canto-da-sereia do mar.

Como se um ímã indeciso a houvesse atraído, Ana trafegou sobre os tacos corridos e tomou para si um livro qualquer; não porque assim o quisesse, mas devido ao aparvalhado caminhar sem destinatário correto. Tonta, usou o livro espesso e pesado que acabara de retirar da estante como pêndulo; jogou-se na cadeira, assustada, como se sentisse a Terra claudicar em sua órbita sob seus pés.

“Mas, o que é isso?”, perguntou Érico, confuso, buscando na sua escuridão privada as mãos de sua mulher. ”O que foi, Ana, está sentindo bem?”

“Estou”, secamente. E estava de verdade. Mesmo que lhe faltasse direção àquele momento, Ana sentiu-se livre, como se toda a biblioteca fosse a cadeira da qual acabara de se levantar para nela sentar-se novamente, munida de um livro. Refestelada, logo se recompôs, faminta por outra surpresa de Érico.

“Veja”, e apontou a capa do livro que pegara a Érico, como se não houvesse mais cego no recinto, “esse você ganhou do Pacheco, se lembra? Aquele de lá da Cidade, do trabalho...”

“Claro”, exultou Érico, levantando as sobrancelhas como se fosse abrir os olhos, “são as crônicas de João do Rio. Ele sempre me dizia que trabalhávamos onde não deveria haver prédio nem escritório, só um morro cheio de gente pobre”.

“Sei... O Castelo”.

Novamente, um papel desprendeu-se das páginas emboloradas e flutuou docemente até o chão. A data: vinte e cinco de Novembro de mil novecentos de setenta e um.

“Sabe do que se trata este?”, perguntou Ana, lutando contra a súbita ideia que lhe aflorava: fora enganada por décadas, através de tirinhas de papel sórdidas. Condenou sumariamente seu marido de traição, por não carregar o opróbrio da vida dupla (tripla?quádrupla?) em seu coração. Nem a cegueira lhe atenuara o delito.

“Se soubesse, estaríamos nós aqui nesse jogo?”

E logo o ódio se transmutou em compaixão, e num pouco de langor. O velho frágil atrás de seus óculos escuros recuperara sua quintessência. Que marido seria capaz de produzir tanto sobressalto numa velha, pensou Ana, bendizendo a trama extemporânea guardada e enovelada pelo velho cego marido.

E não havia nada de impróprio; era só mais uma recordação; um dia na Quinta da Boa Vista com a mulher e o Júnior - ainda não havia Manoel. Uma mistura de alegria, saudosismo e enfadamento mutilou a singeleza do momento. Nem a confirmação – inócua, pois sabia que Érico amava a paternidade e o matrimônio – dos dias felizes da mocidade fora suficiente para suplantar a necessidade da surpresa fustigada pelo conteúdo do primeiro segredo; e se lesse então outra estória de família, já não lhe seria suficiente; sem perceber, seus piores pesadelos de mulher traída – jamais consignados – penetravam em seus pensamentos, escrevendo motes fantásticos em sua mente, num átimo, num espaço infinitesimal de tempo, ali, sentada, ao lado de um cego, como se já estivessem as tramas prontas, ou adormecidas. Saber do que jamais imaginara conhecer a respeito do cônjuge prosaico se lhe tornara precípuo.

No decorrer do dia, a tonteira não cedeu, nem a perscrutação dos livros, nem a exumação dos segredos – uns nem tão secretos assim; outros, segredos fátuos, como jamais imaginara ser da índole de quem lhes conservara inauditos; alguns, eróticos, lascivos, poligâmicos. Que força levara Érico a despir-se tão desmesuradamente, não se conhece. Mais imprevisível foi a reação faustosa de Ana frente a uma torrente de bilhetes, anotações e missivas; todos, ora punham-na à guisa de protagonista, ora transversalmente citavam-na. Digamos que para alguém que não gozou ou se locupletou dos doces defeitos dos personagens feericamente inescrupulosos dos romances, visto que não os leu jamais, sua reação jubilosa foi estranha: o primeiro romance lido por ela, em anos, ou pelo menos a sensação lúbrica da leitura, inundava-a, e através da sua própria vida: uma biografia não autorizada de Ana em pequenas doses de papéis escritos às pressas. Érico chegou a pensar, ao longo de vinte livros abertos e dezoito textos revelados, que o choque causado em Ana fora tão doloroso que o desespero manifestara-se feito uma zombaria, como se a Ana de sua adolescência, soterrada pela repetição dos rituais diários, pelo casamento, pelos filhos, pelas novelas da televisão, pela influência daninha e reacionária dos pais rompera as amarras do claustro mais inextricável de sua alma embrutecida, ressuscitando num corpo velho. Não que isso não causasse alegria em Érico, mas, quiçá pela ousadia de revelar parte de sua vida a quem, em tese, não deveria ter tomado nota de pensamentos tão pretéritos já numa idade avançada, quando a convivência massiva implica – ou assim o deveria, segundo o que se espera dos velhos casais - o fim dos segredos a dois, assustou-se.

Ao longo do terceiro dia de leituras, Érico enfastiou-se. Ana, menos, entretanto já estava tomada por outra premência; queria ler um livro. Nem sequer passava por sua cabeça contar a seu marido de seu desejo crescente. A vergonha de ceder a uma intenção antiga de Érico demoveu-a menos da ideia da confissão a qual ela inferira com razão ser uma fraude, um plágio grosseiro: Ana poria dentro de um dos livros de Érico um relato sobre seus três últimos surpreendentes dias.

Tão fácil quanto esconder de Érico que estava lendo um romance foi escolhê-lo. Fê-lo porque era fino. A primeira página foi de leitura digerível, quase prazerosa, o que se constou até o final do romance.

Érico manteve-se distante de tudo depois de ter sido deflorado através de seus textos outrora ignotos. Feliz, queria o silêncio. Outrossim, não pensava em regressar tão cedo àquele escrínio onde se lhe apresentaram milhares de personagens, centenas de estórias, ao longo de uma vida - contando com a última, a sua, a dos bilhetes.


Depois de anos sem ler um único romance, prestes a interromper sua guerra fria com os livros, Ana deixara Érico aos cuidados de Manoel. Este viera até a casa dos pais lhe contar sobre uma viagem que faria. Não era a Austrália o destino, e sim o Vietnã. Cego, dessa vez totalmente , da visão e dos outros sentidos que lhe restaram, pela ira de ver o filho partir sem motivo plausível senão o desejo de alienar-se de tudo, Érico pela última vez ralhou com o rapaz.

Ana saiu silenciosamente de casa, livro às mãos, sentou-se no banco da praça ao lado da Igreja Católica ( uma espécie de adro público ),no Jabour, onde morava desde o casamento. Sentada no banco do tabuleiro de damas, tentou escrever o que um dia, como lhe fizera o marido, jogaria na cara de Érico. Como uma bicicleta enferrujada que só anda até se partir a corrente, não saiu das primeiras linhas. A praça pululava de amigas, vizinhas e outros circunstantes. Estava sendo observada pelos que já a conheciam e que maquinalmente acharam estanho seu comportamento. Assustou-se, dobrou o papel em que escrevia e se levantou do banco. Pela última vez- pensara -, sentiu-se novamente velha, iletrada, subtraída. Queria ler e leu, em que pese o livro pueril, isso ela sabia. Já escrever, não pôde. Retornou a casa. Manoel já havia saído. Érico dormia refestelado no sofá. Subiu até seu quarto, sentou-se na cama e abriu a gaveta de seu criado-mudo. Sem saber se por inapetência somente ou por um sentimento que não podia defini-lo como ódio, argúcia ou benevolência, guardou ali mesmo, na gaveta atulhada de contas pagas, convites de festas de casamento e anotações desnecessárias o primeiro parágrafo do primeiro de tantos segredos que doravante seriam revelados e detonados feito uma bomba, no futuro.

Do fundo do receptáculo, o seu valhacouto, retirou outro papel, o que recebera de seu primogênito no dia que Érico lhe abriu as páginas de seus livros com tudo de secreto que lá havia. Dobrou-o, mais até do que acabara de fazer com seu primeiro segredo; dobrou-o uma, duas, três vezes, como se temesse que alguma palavra dali escorresse e fugisse do papel em direção a Érico, como uma namorada antiga e irrefreavelmente apaixonada, mesmo que já não lhe pudesse tocar com os olhos seu leitor-homem, devoto fidelíssimo e apaixonado do léxico por uma longa vida. Quando Érico despertou e lhe chamou da sala, Ana Pôs o papelzinho entre as páginas do livro que acabara de ler.