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quarta-feira, 30 de junho de 2010

O Maior Gol de Todos os Tempos

Luis nasceu num dia quente, numa opressora tarde de verão carioca, quando o médico responsável pelo parto resolveu dar cabo do gritar desenfreado da mãe, que acabou por ter que dar a luz da maneira que não desejava, através de um corte de bisturi. Dizia ela que já que seu filho teria que conviver com a incontornável mão da intervenção da ciência – e da má ciência, como os alimentos industrializados e as redes sociais na internet, assim dizia pretensiosamente a mulher tatuada em um tempo diferente do seu próprio -, que ao menos no primeiro contato com a existência além útero, o menino deveria ser conduzido pela mão da natureza.

Não se sabe ao certo o que as primeiras impressões sobre o mundo externo causam de definitivo à pessoa. Levando em conta que tudo o que nós conhecemos quando recém chegados à vida são aquelas sensações mais primitivas, as que minoramos, desprezamos e subestimamos depois de velhos – os cheiros, dores, a fome e a variação da temperatura -, podemos afirmar que Luis nasceu sob jugo da opressão da estação do Sol. Durante os seus primeiros meses, o menino agonizou, chorou irremediavelmente diante da brasa do sádico tumor amarelo que jamais brilhara tão intensamente quanto naquele ano. Sua mãe que já havia de tê-lo parido sob condições artificiais, agora tinha mais um canhão para o seu arsenal verborrágico diário contra a humanidade e suas excrescências contemporâneas; coisas como o aquecimento global, que naquele momento fazia seu menino cair em prantos irrefreavelmente diante do bafo da fornalha que malogrou o ar daqueles dias.

E se alguém jamais atinou para o quanto o temperamento humano em seu estágio inicial de pavimentação se dobra mediante as reminiscências dos primeiros dias de vida, é bom que se preste atenção, então, ao menino Luis. O menino sentiu o fogo da opressão desde os primeiros instantes: no alvorecer de tudo o que estaria por vir, estavam postos um bisturi, uma luva, uma irascível e resmungona mãe e o sol, um sol jamais sentido como naquele ano. Não havia fome sem calor; não havia sono, riso, choro, fezes, tios, brinquedos sem o calor. Tudo passaria a ser visto e encarado, daqui para frente, através da angústia e da pele untada em suor naquelas semanas de iniciante.

Ninguém, óbvio, pode objetar que, não obstante o fato de uma recém criança não poder fazer nada do que um adulto faz, um bebê é tão sensível quanto as pessoas de idade avançada. O choro estridente de um nenezinho é o que exprime melhor o sofrimento humano, mesmo que seja esse por uma necessidade que virá a ser inequivocamente tola para um adulto, até mesmo para uma criança mais madura ou um adolescente. Se Luis chorava por leite ou por prisão de ventre é porque não sabia falar; se não sabia falar, só podia mesmo sofrer, visto que não sabia como e o quê pedir. E, se os velhos calejados não choram mais por não ter o que querem, é só pelo fato de já terem se acostumado a tantas negativas. Não é o amadurecimento, tampouco o domínio da língua que ergue o muro do silêncio nas relações interpessoais, é o hábito de receber uma quantidade incomensurável de negativas. A cada longitudinal balançar de cabeça, a cada incontinente balbuciar dos lábios, a cada rotundo e convicto não, chora lá na mais instransponível vereda de nossas memórias um bebê.

Luis foi crescendo. Clinicamente, era perfeito. A mãe vivia agradecendo ao seu santo de devoção pela graça dada. Às missas de Domingo ia religiosamente, e sempre à missa das crianças. No meio daquela multidão de mães e avós, contava com certo orgulho da saúde de seu filho, o que soava sempre muito mal aos ouvidos das outras mães que viviam em consultórios e em salas de fisioterapia com seus pequenos enfermos. Mas se o menino Luis parecia um pequeno touro frente aos coleguinhas, no seu interior jazia uma terrível solidão. A excêntrica mãe, ao contrair o glaucoma materno que distorce a visão que se tem da cria, via naquele menino tímido e solitário um infantezinho, mesmo que para o resto da paróquia estivesse bem claro que se por um lado Luis gozava de força física, por outro o garoto não se relacionava bem com os coleguinhas.

De fato, Luis era só. Era impressionante a velocidade com que se desvencilhava das brincadeiras criadas pelos amiguinhos. Se havia um pique-esconde, deixava-se pegar, o que despertava a ira dos outros meninos. Tão logo a criançada percebeu que Luis não ligava para os xingamentos e cascudos, e deixavam-no de lado, como se faz com os meninos “café-com-leite”. Se havia uma pequena disputa – pequenas corridas, purrinha, par ou ímpar – não demonstrava qualquer interesse; por vezes era obrigado a compor a bandeirinha, o que sempre terminava mal. Luis apanhava quieto.

Pudera: era a opressão. Nem consigo imaginar o que vai no coração de uma pessoa que só conheceu a opressão, impingida pela vida. Desde o sol daquele verão horroroso, Luis vivia enclausurado pelo suor. Atrás daquela espessa camada de tristeza vivia um outro menino, uma espécie de borboleta em seu casulo, e esse invólucro espesso e vil não tinha como se partir. Era como se houvesse um halterofilista preso numa casa de bonecas que nunca se abria. Esse halterofilista não parava de crescer, enquanto a casa permanecia como deveria estar para sempre: imóvel. E na mesma medida em que o halterofilista e a casa de bonecas iam se tornando cada vez mais anacrônicos, Luis se distanciava das coisas do universo dos meninos. Seu rosto não se movia, não expressava o que sentia; na verdade, depois que aprendeu que o choro não mais lhe servia, foi se tornando incomunicável.

Sua mãe vislumbrava naquela criança introvertida um leão. Quanto mais Luis ficava distinto do que deveria ser um menininho normal, mais a mãe introjetava em sua própria mente as ideias que só poderiam ganhar vida dentro de uma mente num avançado estágio de loucura. Conquanto Luis fosse ainda muito novo – a essa altura tinha acabado de completar seis anos da mais ostensiva solidão – e parecesse muito improvável que seus estranhos gestos resultassem do contato nocivo e latente com o universo paranóico da mãe, era de saltar aos olhos a terrível coincidência: mais a mãe se perdia em devaneios, mais o filho se embrenhava na melancolia do auto relacionamento.

Talvez tudo tivesse ocorrido de outra maneira se o pai não tivesse se tornado ausente. Nos últimos dias daquele calor infernal, daquele verão insuportável, a figura paterna abandonou o navio da vida de Luis. Homem avesso aos conflitos, deixou a mulher no comando da própria vida e num monólogo cada vez mais taciturno acerca de suas agastantes teorias. Na realidade, homem nenhum deixa mulher e filho por não aguentar meia dúzia de bobagens recorrentes, de modo que é difícil saber se a loucura estava encruada na mulher desde sempre ou se aquela cabeça pródiga em digressões patéticas se perdera de vez na solidão de mulher abandonada.

Para Luizinho, as consequências se revelavam de formas sutis, sobretudo nos primeiros anos de sua vida. Quando o garoto já demonstrava para todos que embarcara num mergulho abissal em si mesmo, os comentários das outras mães da paróquia proliferaram feito uma pandemia. Entre as discussões sobre as novelas, as compras, o padre, os maridos, o garoto Luis virava pauta cada vez mais constante nas rodas matutinas de Domingo, sempre após a concorrida missa das crianças.

E numa dessas manhãs de bochorno, tudo transcorria como sempre: as mulheres comentavam o sermão do Padre, as crianças corriam no pátio contíguo à igreja, os homens tratavam de rir e papear em frente ao portão maior da paróquia, algumas senhoras já recolhiam os objetos do altar, enquanto o padre falava à sós com um dos seus secretários. Tudo na mais perfeita ordem, inclusive Luís.

Depois de todo final de missa, o garoto se dirigia ao corredor externo de uma das laterais da igreja, onde ficava o salão de festas. Pouco à frente do salão havia um pequeno canteiro com umas mangueiras bem novas, de tamanho bem modesto ainda. Como a copa dessas árvores era incipiente, o sol as perpassava sem a menor dificuldade, sobretudo naquele verão infernal. Naquele pequeno pedaço de terra crescia, desimpedido, um pequenino gramado, onde Luis ia sempre depois da missa para brincar, se é que pode-se chamar aquilo de uma brincadeira. Luis sentava no ínfimo meio-fio que separava o chão de cimento da terra, donde brotavam as jovens mangueiras. Nesse local, Luís sempre fazia a mesma coisa – antes de ser perturbado pelos colegas egressos de alguma zombaria feita depois do “Vão em paz e que o Senhor vos acompanhe” do padre -: retirava folha por folha da grama, de modo que todo gramado ficasse como um perfeito campo de golfe. Ao roçar cuidadosamente os pedacinhos daquela espécie de gramínea delicada e fina, trazia cada naco verdinho para bem perto de seus olhos, como se ali se encontrasse a solução de um grande mistério ou mesmo um grande tesouro por muito escondido.

No muro que separava a igreja da praça havia um portão preto bem baixo, mas totalmente encerrado numa placa de metal, que dava para o gramadinho. Luís jamais havia pensado em atravessá-lo, a despeito do barulho feliz que sempre chegava da praça após as missas. Ele estava mesmo é entretido com a sua grama. Mas, nesse dia, o portão estava entreaberto e Luís resolveu, num súbito incomum de curiosidade, ir até a praça.

Quando pôs o pé direito para fora do seu bem cuidado jardim, viu uma bola rolando bem em sua direção. Não houve tempo para pensar, somente para ou se desfazer da bola com um chute ou dominá-la para si. Luís, gostando cada vez mais daquela sensação de curiosidade, resolveu ficar com a esfera em seus pés. Com a sola esquerda, munido incrível precisão, controlou a bola. Ficou um breve momento olhando para baixo tentando entender não se sabe o quê, quando notou a presença de um menino correndo em sua direção. Aos gritos, o menino se aproximava requisitando, pedindo a bola , mas Luis estava sem reação. A última coisa que podia ter em mente quando atravessou o portão era de que um menino raivoso viria em seu encontro. Mas por algum motivo, assim como deixava seus colegas de igreja caçoar dele impunemente, Luizinho ficou imóvel. Quando o menino mostrou que iria não bater em Luis e sim tentaria lhe tomar a bola, deu-se o milagre: Luis o driblou com um suave corte para a esquerda. Ao ser driblado, o garoto entrou portão adentro, dando de cara com as mangueiras. Desviando delas, não pôde evitar a queda: seus tronco e pernas aterrissaram no gramado, já os braços e mãos ralaram-se no pavimento para proteger a cabeça.

Luis não viu nada disso porque depois do primeiro corte um outro menino – menor, porém com uma feição de cólera – o atacou. Luis desferiu outro drible. Os garotos que estavam de fora da pelada deram um grito que ecoou feito música nos ouvidos de Luis. A algazarra foi sucedida por um pedido de gol coletivo. A garotada gritava e pulava em êxtase. A sensação que Luís teve foi libertadora e inenarrável. À esquerda do portão de onde saíra para subjugar dois garotos desconhecidos havia uma baliza, um golzinho desses de madeira. Luis disparou com a bola. Esse mesmo objeto que era a fonte de suas humilhações na paróquia, que na escola nunca havia lhe despertado o menor interesse, que era mais uma das tantas coisas que não representavam absolutamente nada para ele dentro de seu ensimesmado parque de diversões particular, de um momento para o outro, num estalar de dedos, tornou-se tudo o que ele mais sempre quisera na vida até então. Os olhos arregalados de Luis apontaram para a baliza e para lá ele foi com a bola em seus pés. Na sua cabeça, a corrida é interminável; a bola parece querer sair dos seus pés como quem foge de um cachorro raivoso. Atrás dele os dois meninos estavam distantes: um ainda tentava acompanhá-lo, o outro chorava em razão das mãos raladas do tombo. No final dessa epopeia, Luis tocou para o fundo da rede feita com sacos de batata que aos montes sobram do fim das feiras de Sábado.

O que ocorreu depois foi uma explosão de alegria: uma dezena de garotos vibrando por um gol insólito, feito por um garoto que jamais tinham visto, que saiu de trás de um portão para deixar dois meninos maiores no chão e fazer o gol mais importante da história do futebol: o gol que libertou o halterofilista da casa de bonecas.

Os meninos maiores levavam Luís no colo e repetiam o que viam fazer seus ídolos, ao levantar os destaques dos times nas comemorações de um título. Aos poucos, aquele rostinho que não mudava nunca, aqueles olhos arregalados, aquela expressão petrificada pela tristeza inefável ...Tudo o que era Luís desmoronou em um regozijo na forma de um tímido sorriso.

Ao voltar para a igreja pelo mesmo portãozinho que o levara minutos antes ao delírio, ouviu sua mãe gritar seu nome logo depois de despedir-se da última carola que ainda restava. Quando ela olhou para trás, viu o filho dobrar correndo a coluna do santo prédio. Quando a viu, saltou nos seus braços. A mãe tremeu de pavor e felicidade ao ver seu filho num estado até agora inédito. Luís gritava. Queria contar as novidades:

“Mãe! Mãe! Fiz um gol...Um g-gol...Um golaço!”, gritou o menino com os dois olhos encravados no olhar da mãe.

Logo a mãe percebeu o milagre. Corou subitamente. Só tinha lembranças do filho se comunicando com ela para pedir o que pedia através do choro, quando ainda era um recém-nascido. Naquela confusão de futebol, tensão e júbilo, a combalida mãe recebeu a boa nova: o tempo da opressão, das tempestades de calor, aquele verão abrasivo havia, enfim, chegado ao final.

“Que bom, filho! – disse a mãe para depois de calar-se um pequeno momento e abraçar mais forte ainda seu Luizinho - ... Como foi o gol?”

“Mãe, eu passei por dois e fiz o gol!”

De alegria, a mãe não soltou Luis de seus abraços, até não aguentar mais de tanto peso e felicidade. De mãos dadas, voltaram para casa em silêncio, andando vagarosamente, debaixo do mesmo sol que trazia, dessa vez, um sedutor presságio, cientes de que o mundo – o calor, o sol, a missa, a bola - mudara completamente a partir daquele dia.

terça-feira, 29 de junho de 2010

A última tentativa


Uma jovem discutia no carro após o namorado ter avançado um cruzamento sob o sinal vermelho.
-Ah qual é Elaine! Você não queria que eu parasse no sinal nessa estrada deserta não é? Sabe quantas pessoas são assaltadas por isso?  Olhe ao redor, é só mato. Um filho da puta de um bandido pode muito bem está escondido nesse matagal só esperando um otário parar no sinal vermelho.
Elaine ainda contrariando seu namorado tentava argumentar, mas intimamente assentia com a opinião que acabara de ouvir.
-Pelo menos buzine para avisar que estamos passando. – Disse ela.
-Relaxe Elaine, não há ninguém nessa estrada. Apenas você e eu.
O motorista olhou para sua namorada e piscou um olho, em seguida, um sorriso sacana brotou em seus lábios.
-Às vezes me pergunto o que vi em você, sinceramente. – Disse Elaine quase em murmúrio.
O velocímetro do automóvel estava na beira dos 100 km/h.
Elaine reclinou sua cabeça sobre a janela do carro e apenas observava o matagal margeando a estrada. A lua cheia e amarelada ornava o céu estrelado. Com certa resignação, a jovem dos cabelos dourados olhou pelo pára-brisa e fitou ao fundo outro sinal. O carro fora se aproximando, o sinal ficou amarelo. Aproximou-se mais, ficou vermelho. O namorado de Elaine não parou e sequer buzinou. Depois disso, tudo que a jovem pôde lembrar foi de um silêncio abrupto e uma dor inimaginável.
O carro do casal havia se chocado contra uma van naquele cruzamento. Um acidente terrível, talvez, nem o mais experiente paramédico esperasse por sobreviventes após aquela colisão. Porém, havia sobreviventes.
Elaine com dificuldades se desprendeu do cinto de segurança e puxou seu pé direito preso aos ferros retorcidos do carro. Olhou para o lado e viu seu companheiro entre as ferragens com o rosto desfigurado coberto de sangue. Uma fumaça começava a tomar o ambiente. Elaine presumiu que a fumaça seria o carro se incendiando, saiu às pressas do veículo completamente estraçalhado. Estava tão confusa que mal se deu conta que seu namorado estava morto, também ignorava os ferimentos que salpicavam sua roupa com sangue.
Do lado de fora, Elaine instintivamente caminhou em passos trôpegos para verificar a van que eles haviam colidido. Naquele momento, ela percebeu que a fumaça era oriunda daquela van que havia capotado com o impacto. O veículo não passava de puro ferro retorcido naquele momento, de fato, uma perda total, aliás, em ambos os automóveis.
Ao se aproximar da van, Elaine viu uma mulher de meia idade desacordada. Desesperou-se, pois aquela van estaria em chamas a qualquer minuto. A jovem ensangüentada chacoalhou a mulher de meia idade que acordou fazendo uma expressão de dor.
-Você tem que sair daí, esse carro vai pegar fogo daqui a instantes! – Gritava Elaine.
Sem pestanejar, Elaine começou a puxar a mulher de meia idade das ferragens; a mulher parecia que relutava em ficar dentro do veículo capotado. Entretanto, Elaine fora mais forte e conseguiu tirar a motorista de dentro da van. As primeiras labaredas de fogo começaram a aparecer.
Quando tudo parecia ter se resolvido, a mulher em um tom desesperador, gritou:
-Minha Filha! Minha filha está no banco de trás!
Os olhos castanhos de Elaine pareciam que cairiam das órbitas devido ao intenso pavor que tomou conta dela após ouvir aquelas palavras. Ficou alguns minutos paralisada sem saber como agir.
A mãe desesperada tentava tirar a filha de dentro das ferragens, as chamas já estavam tomando a parte traseira do veículo.
-Calma filha, mamãe vai te tirar daí – Dizia a mulher de meia idade com a testa ensangüentada.
Elaine ignorou a dor e correu com certas dificuldades para ajudá-la. Um pequeno alívio tomou conta dela ao saber que a filha da mulher estava viva. No entanto, a situação não era nada animadora. Os ferros retorcidos impossibilitavam que a filha da mulher fosse retirada de uma maneira simples e manual. A van fora arrastada pelo carro do casal até se chocar contra uma árvore. Havia apenas uma pequena brecha pela qual se podia ver a pequena criança. O fogo consumia o automóvel vorazmente.
Elaine abaixou até a brecha da van e fitou a criança que parecia ter saído ilesa daquele acidente. Milagrosamente ilesa, ou Deus seria tão filho da puta que permitiria aquela criança queimar viva e consciente? Estava com uma chupeta na boca e olhava para a mão da mãe que tentava puxá-la por aquele pequeno espaço inutilmente.
-Mamãe vai te tirar daí filha!- Gritava a mãe desesperada, porém ainda não entrava em sua cabeça que a menina não passaria por aquela fresta.
Elaine se tocou do incêndio e correu até o carro do namorado para pegar o extintor. Ao chegar ao carro, se deu conta que seu companheiro estava morto, uma angústia assolou suas entranhas, lágrimas se misturavam ao sangue em seu rosto. Contudo, não havia muito tempo, a morte de seu namorado poderia ser lamentada mais tarde. Elaine ainda podia salvar uma vida.
Com o extintor em mãos, Elaine tentava apagar o incêndio, mas seu esforço foi em vão. O fogo continuava a consumir a van com avidez.  Em poucos minutos o fogo já tomava boa parte do veículo. O extintor se esgotou e o máximo que fez fora atrasar um pouco as chamas que agiam em total vitalidade.
Elaine voltou para onde a mãe buscava uma maneira de tirar a filha das ferragens; a mulher parecia que tentava erguer os ferros retorcidos com as próprias mãos intuindo aumentar a fresta. O calor já passava do insuportável, parte do desespero da mulher parecia ter passado para Elaine. A jovem começou a chorar e naquele momento torcia para que a criança morresse asfixiada e não carbonizada.
-Deus, ajude! – Murmurava Elaine.
O fogo já tomava conta de 90% da van, a temperatura estava na casa dos 60º C. Elaine se afastou e não acreditava que estava tendo sangue frio em presenciar aquela cena horrível. Caiu de joelhos rogando aos céus.
-Por favor, Deus, faça que essa criança não sofra! O que você está querendo provar?
Contudo, a mulher parecia ignorar o calor e o impossível. Permanecia tentando em um esforço inútil aumentar a brecha para retirar a filha. As chamas já estavam bem próximas de suas mãos, a temperatura daquele metal a qualquer momento tostaria sua pele e carne. Naquele instante, sequer sabia se a criança ainda estava viva.
Elaine incrédula observava com extrema apreensão.
Uma chama saiu de dentro da brecha queimando as mãos da mulher, talvez aquilo culminasse com o fim da criança, mas a mãe em um impetuoso ato heróico permanecia ali, algo lhe dizia que sua filha estava viva e ficaria ali ignorando as bolhas já se formando em sua pele. Ficaria ali e morreria tentando se fosse preciso.
Elaine por um instante chegou a pensar em convencer a mulher a desistir daquilo e salvar a própria vida, mas logo desistiu.
Não havia dor, não havia medo de morrer e não havia tempo. As chamas continuavam implacáveis e voláteis, e, em um último esforço, em um último segundo, um solavanco mexera com a van inclinando-a contra a árvore. Uma enorme chama avançou e cobriu tudo em volta, como se fosse uma pequena explosão. Um enorme clarão brilhou naquela estrada deserta ofuscando a visão de Elaine que se reclinou tocando a testa no chão aos prantos. Ela pôde sentir a intensificação do calor devido à súbita expansão das chamas naquela meia explosão.
-Não!!! Por que isso Deus? Por que isso comigo?  Não, Deus não existe, nenhum Deus permitiria isso!
E ao levantar os olhares descrentes para a van, viu o inacreditável! A mulher caminhava com a filha no colo segurando-a com suas mãos em carne viva. Não se sabe de onde a mulher tirou aquela força descomunal capaz de contorcer os metais dando um solavanco na van aumentando a brecha para puxar a filha. Não se sabe como ela tirou tanta resistência a dor. Não se sabe como a criança não morreu naquele incêndio saindo ilesa. Ninguém saberá como. Mas são essas as coisas que fazem as pessoas acreditarem que Deus existe.
Elaine tinha os lábios trêmulos e os olhos incrédulos, a mulher afagava a criança com suas mãos queimadas. A jovem menina apontou para Elaine em um gesto singelo. Com a chupeta na boca e um olhar ingênuo, a criança tinha uma lépida expressão angelical.

domingo, 27 de junho de 2010

O sepulcro dos hereges


“Seguimos em direção à cidade, confiantes naquelas palavras santas. Entramos sem encontrar resistência. E eu, que desejava ardentemente ver o que guardavam em seu recinto as muralhas ultrapassadas, tão logo me vi dentro delas, para toda parte dirigi o olhar. E percebi, de cada lado, uma campanha infinda, plena de dores e de penas inacreditáveis.
Assim como o Ródano, em Arles, se transforma em brejo; como em Pola, junto ao Guarnaro que banha a fronteira da Itália, o chão se vê desigual e incerto pela sucessão de túmulos inumeráveis, assim era o lugar por onde passávamos. Mais triste, porém, dado entre os sepulcros serpenteavam chamas dedicadas a manter as tumbas inda mais esbraseadas do que a arte de amoldar requer do ferro. Abertos, os túmulos deixavam escapar gemidos lancinantes”.
-ALIGHIERI. Dante
A divina comédia.

A escuridão sempre esteve presente na imaginação dos seres humanos. Desde o mais obscuro fascínio até o maior dos temores das coisas furtivas dentro de sua densa e negra manta. Contudo, por mais densa a escuridão que seus olhos jamais conseguiriam imaginar, nada é tão escuro quanto o inferno. Tudo é fantasmagoricamente escuro. Negro e apavorante.
O irônico, é que o grande senhor deste lugar veio de um lugar repleto de luz. Aliás, seu próprio nome denota um significado de proveniente da luz.
Porém, por maior temor que esse negrume possa causar, os gritos de dor e desespero que sibilam como os ventos nessa vastidão lúgubre soam como verdadeiras tormentas.
Não contesto a maneira de como vim parar nessa danação eterna, mas me arrependo por estar aqui; arrependo-me demais, e pelos gritos que ecoam em desespero nos meus ouvidos, percebo que todos se arrependem. O tempo não existe neste lugar. Como eu disse anteriormente, só há dor, medo e desespero.
Na época em que o tempo corria, quando eu gozava de uma vida plenamente iluminada, longe de sofrimentos e de um singular conforto, eu ostentava uma soberba igualmente singular. Tinha imensa sabedoria; sabedoria que fora meu ingresso para este lugar. Sempre questionei todas as coisas; coisas que eram óbvias para muitas pessoas. Mas não eram óbvias para mim. Não, o orgulho jamais me deixou assentir e compartilhar das mesmas opiniões de pessoas que sequer sabiam ler. Talvez nunca existiu um dogma que eu não tenha contestado e ridicularizado. Fiz isso ao longo da minha vida, sequer me arrependi, nem em meu leito de morte. O arrependimento veio após a minha partida.
Acredito que não exista uma alma danada que não se arrependa de seus pecados. Principalmente quando se está destinado a passar a eternidade em uma cova que arde em chamas. Eternidade contradizendo o tempo que não existe nesse lugar. A dor nunca é pouca. O estalar de sua pele borbulhando enquanto queima até os ossos se junta ao coro de gritos de dor e desespero. Sua tez derrete como vela, seus ossos queimam até o pó. O cheiro de carne queimada impregna o lugar junto com um suave aroma de morte. Contudo, quando tudo parece que acaba, você percebe que seu corpo está intacto e pronto para queimar novamente. Lembro-me de uma minissérie de Stephen King que assisti em vida, onde dizia- “Inferno é repetição”- Porém, quando não existe tempo, logo também não existe o começo, o meio e o fim. A dor segue incessante.
Por isso, Rogo-te senhor! Se me escutas de algum lugar onde os justos contemplam sua luz, perdoe-me de meus pecados e poupe-me desse sofrimento eterno. – não existe tempo aqui. – Sei que não fiz por onde em vida, mas fui um homem bom na medida do possível, creio humildemente, que mereço seu perdão que me livraria desse castigo perpétuo.
Uma luz brilhou bem acima de mim iluminando toda aquela vastidão. Arquei-me em minha cova que naquele instante não mais ardia. A insuportável dor havia ido. A misteriosa luz permitiu-me ver milhares, não milhões, talvez bilhões de sepulturas ardentes ao meu redor. Os demais danados estendiam suas mãos carbonizando (umas ainda em carne outras só restando os ossos) para a luz. Contudo, apenas meu corpo não mais queimava. A luz trouxe uma paz que nem em vida eu já havia sentido, creio que todos os que ali estavam também não haviam sentido.
A luz se estendeu em duas grandes hastes. As hastes ganharam uma forma conhecida; uma forma de asas. Tudo ganhava forma naquela luz. Rosto, pernas, braços. – Um anjo do senhor! – assenti. A luz já em forma de homem de asas, estendeu a mão para mim dizendo:
-Seu arrependimento, mesmo que tardio lhe salvou.
Pus-me de pé em minha cova. Lágrimas caíam de meus olhos que nunca serviram naquele lugar. Apesar do nunca num lugar onde o tempo não existe ser severamente incoerente. Meu corpo, ou melhor dizendo minha alma, começou a flutuar em direção ao anjo do senhor. Olhei para baixo e aquilo parecia um sítio infinito. As covas eram pontos cintilantes naquele solo. (só era possível enxergar devido à luz emanada do anjo) Toquei a mão daquele ser divino.
Todavia, aquele ser divino apertou minha mão com força. Ergui meu olhar estarrecido para o anjo. A expressão angelical que havia naquela entidade sumira. A expressão se transformara em uma terrivelmente diabólica, vil e intimidadora. Seus olhos me fitaram num misto de desprezo e repugnância.
-Você se acha melhor do que alguém aqui danado? – Inquiriu o anjo com uma voz gutural.
-Como? – Respondi.
E o tal anjo me atirou contra o chão como uma criança atira uma pedra num lago. Caí de volta em minha cova. Ele me olhava com seu olhar acusador e sua expressão conotando crueldade. Ele já não mais emanava paz, muito pelo contrário, emanava terror, medo e desespero.
-Já se esqueceu da primeira coisa que você viu quando entrou aqui?- Inquiriu-me novamente com seu tom severo.
Porém, o meu silêncio provava que realmente eu tinha me esquecido. Entretanto, ele assentiu e jogou-me uma pequena placa de madeira. As memórias que talvez viraram cinzas pelas chamas que ardiam em minha cova, voltaram quando olhei aquela pequena placa de madeira. Tratava-se de uma réplica da imensa placa que há no grande portão do inferno.
Desfaçam aqui de todas as esperanças.
Fitei aquela réplica com olhos incrédulos, enquanto a risada dele ecoava naquele sítio. Subitamente meu sepulcro tornou a arder em chamas. A dor tornou a voltar. O desespero tornou a voltar. Porém, aquele demônio que se travestiu de anjo me tirou a única coisa que eu podia me apegar aqui. A esperança. Tudo ficou escuro novamente.

“Inferno é repetição.”
-KING. Stephen
A tempestade do século.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Depois do Branco

Num tempo estanque, extinto, um cárcere branco; sem ângulos, chão ou teto; sem profundidade. Pode estar suspenso feito um beija-flor ou enterrado feito um defunto. Não há fora nem dentro, só Marcos, sentado na sua escrivaninha, metido em um terno negro, limpo e novo. Escreve; não sabe o que quer, mas rabisca algo que não tem meada, que semanticamente não é nada. Ele sabe disso, mas logo se vê no início de tudo, escrevendo uma carta que sabe que precisa terminar, mas está sempre no começo. Quando volta a si, está sem a sua caneta. Ele a procura sem sair do seu lugar. Segundos depois, a caneta retorna do lívido abismo levitando, até pousar em suas mãos feito uma pena suspensa pelo peso do ar. Mas Marcos não sabe o que escrever; está sempre no início de sua carta sem destinatário. Sabe que a tem escrito desde sempre, entretanto, quando emborca seu tronco para frente, não vê nada; nada além de rabiscos. Força as vistas, coça os olhos e se vê chorando. Suando, Marcos grita, diz que não foi ele que rabiscou aquela casa torta que sempre aparece em sua mesa, simploriamente edificada num pedaço de papel. O suor brota recrudescido; prende a respiração e saca uma folha em branco de uma de suas gavetas. Há sempre folhas ali, enchendo os compartimentos da sua área de trabalho.

Assim Marcos vive. Não há antes nem depois. Quando abre os olhos, está naquele recipiente branco sem memória. Nada antecedeu a sua inexorável vontade de escrever sua carta, tampouco nada estará por vir senão o ânimo de redigir o léxico do nada profundo. E quando pensa em sair incontinente – está resoluto, precisa se levantar e pular naquele branco claustrofóbico, voar feito a caneta-pássaro – aquela infalível serpente empalhada de tinta negra ressurge do desconhecido, força seus punhos cerrados com toda potência do mundo a se abrir e pousa em suas mãos. Sempre que assume o controle da caneta, Marcos se esquece de tudo e volta a escrever sua mensagem. Concentrado, olha para os papéis: estão lá as indefectíveis casas de jardim de infância. Marcos procura pelo menininho que deve ter desenhado aquela edificação. Oito linhas. Não há porta nem janela. Depois de chamar pela criança, Marcos desiste e retorna à sua enevoada carta. Novamente escreve o cabeçalho. Não sabe qual dia é, mas, como se fosse isso irrelevante, inventa uma data e volta às suas palavras polidas, ao texto que flui como um córrego numa encosta íngreme. Quando sente o calor da sua epístola preambular molhar suas axilas e esquentar-lhe as virilhas, Marcos percebe que está outra vez seco e ereto na sua escrivaninha, vendo a caneta ressurgir dos escombros do branco, dobrando as esquinas que não existem, vinda de onde ele precisa se derramar num voo cego e sem garantias.

Na roda-viva da repetição surreal das mesmas situações, Marcos vai criando coragem. Sua ânsia por desvendar o nada começa a se tornar um espectro de prazer. Só de pensar que vai flutuar por toda eternidade distante daquelas casinhas toscas e daquela escrivaninha sempre cheia de solícitos e hipnotizantes papéis em branco, Marcos sente sua pele em brasas. Sua barriga começa a rosnar e os intestinos parecem fazer o barulho de um prédio velho a desfalecer em poeira e aço retorcido. Depois de ir e voltar ao nada, sem a memória do passado ou o imprevisto do futuro, Marcos resolve se jogar. Quando se prepara para se deleitar com a eternidade, o chão o repreende. Não há mais o branco poluindo todas as dimensões, e sim um substrato de tacos corridos, cheirando a pinho.

Quando retoma a consciência, Marcos vê a mesma casa desenhada numa folha de papel ofício. As gavetas permanecem cheias de resmas bem arrumadas. Mas, para além da escrivaninha, há o chão. Marcos olha para baixo e lembra-se que, mesmo sem poder precisar nem datar as suas desventuras transcorridas na inércia cíclica, chocou-se recentemente contra aquela madeira velha. Lembra-se que tentou voar; daí o latejar compassado e manso do seu cotovelo. Pensa em fazer a mesma coisa novamente, mas quando levanta a cabeça para retomar a coragem que perpassou sua mente letárgica com a força de um florete afiado, vê dois quadros. Logo os reconhece: O da esquerda é um Van Gogh; o da direita, uma reluzente foto da sua turma tirada no dia da formatura. Entre dezenas de sorridentes recém-formados, está Marcos, abraçado aos seus colegas. Lembra-se de todos, e em conseqüência disso, das divertidas estórias do final de sua adolescência. Sua pele pega fogo. Quer tirar o terno negro, mas tem que voltar para a carta do dia. Novamente, começa com o cabeçalho. Escolhe uma data qualquer, que logo depois se revela íntima. É o dia de sua colação de grau. Já está no terceiro parágrafo. Nunca tinha escrito tanto. Sempre voltava às casinhas de criança antes de chegar onde está agora. Para de escrever. Quando novamente olha para frente, está em seu escritório. Sente o cheiro dos livros empoeirados na sua estante. No ar, uma música dos Beatles. Lembra de Fatinha, sua mulher. Quer gritar por ela, mas precisa novamente voltar às suas cartas. Surpreende-se ao ver que, dessa vez, não há casinha, e sim uma missiva pela metade, a mesma que precisou interromper anteriormente. Toda vez que levanta sua cabeça para organizar suas ideias, ganham forma lentamente mais itens do seu velho local de trabalho. Vê flutuando no branco um certificado que ganhou ao concluir um curso na Universidade Rural; no chão, seu cachorro Wilson dorme aos seus pés; na escrivaninha, réguas compassos e canetas; à esquerda, sua cestinha de lixo que ganhou da avó no seu aniversário de dezessete anos. Mais um Transe.

Volta do ermo. Marcos não está mais destituído da memória. Se agora não sabe, ainda, em qual dia está, tem a consciência que sentiu num passado, que pode ser de uma era completa como o de um milésimo de segundo, que seu cérebro voltou a funcionar. Guarda as casinhas em uma das gavetas, e a caneta voa novamente. Dessa vez, ele mesmo abre a sua mão esquerda. Sem mostrar a resistência das ocasiões pretéritas, sente a caneta voar mais veloz que nunca - ela quer se render ao seu domínio. Convolutos, mão e caneta escrevem a sequência daquela carta prolixa. Mais cinco parágrafos, e Marcos perde o ar. Sente uma tontura diabólica. Pressente que vai voltar para o branco do esquecimento. Num esforço extraordinário, ergue sua cabeça pesada como uma bala de canhão e revê seu escritório. Dessa vez, tudo está ali, até as paredes amarelas e o lustre que ganhou de uma de suas mais queridas namoradas.

Ao lutar herculeamente contra o olvido convalescido, Marcos deixa sua caneta cair. Reza baixinho com a fé que jamais teve para que não volte a ver aqueles desenhos sem imaginação. Ao ver que sua mente está desperta e sadia feito um novilho selvagem, pensa ter se assegurado que jamais perderá o controle do rumo de suas cartas. Grita; chama pela caneta. Marcos chora; seus pelos estão eriçados e sua nuca eletrificada. Tapa os olhos. Suas lágrimas descem pelas palmas das mãos e escorrem pelos pulsos. Urra, levanta a cabeça, desolado. Seus olhos alagados se abrem e seu coração dispara feito o de um menino atrás de uma bola. É seu irmão Fabrício. Ele se levanta da cadeira, fecha o jornal e põe os óculos na gola da camiseta marrom. Coça a testa e caminha lentamente até o sopé da mesa. Fabrício pega a caneta de Marcos que estava caída no chão e lhe entrega.

“Obrigado, irmão” - Diz Marcos, assim que segura novamente aquela haste de tinta negra.

Fabrício embranquece. Põe os óculos desajeitadamente e segura o braço do irmão exilado com as mãos trêmulas. Olha-o fixamente, como quem quer desmentir a si mesmo frente ao improvável.

“Nossa, Fabrício, o que houve com você, cara? Como você está velho!”

“É – responde chorando o irmão -, o que nove anos arriando para pegar uma caneta do chão não fazem com uma pessoa!

Fabrício abraça o irmão, que ao se despedir de vez do branco, vê-se atado num abraço desmedido, diante da sua velha escrivaninha e de seus desenhos. Dessa vez não são mais casas dementes, e sim seus projetos de engenheiro. Seu terno pomposo deu lugar a uma camiseta branca e uma bermuda fresca. No canto da mesa, a carta; ilegível.

domingo, 20 de junho de 2010

Pelos Olhos de Roberta

Quando Melquíades voltou a Macondo, Pedro sentiu uma emoção totalmente diferente de tudo que sentira até então. Não que fosse um leitor sazonal, mas aquele livro o transportara para algum grotão de sua alma que jamais havia visitado antes. Mesmo sem perceber à hora, Pedro acabara de desfrutar do prazer oriundo da beleza suprema, quando os recônditos da imaginação humana furtivamente visitam o coração. Como Amaranta, sentiu o frio na espinha dos Buendia, que nele não foi fustigado por uma gota de suor. No trem que o trazia de volta para a casa, o frio era intenso. O refrigerador de ar funcionava a todo vapor a despeito do frio de inverno.

Quando Roberta, sua falecida irmã, deu-lhe “Cem Anos de Solidão” no seu aniversário de quinze anos, não chegou a desgostar do presente, mas também não pôde colocá-lo entre os favoritos entre tantos regalos que recebeu naquela noite. Como gostava muito da irmã e sempre a via sentada na sala a ler seus romances, achou que a bela e virtuosa moça queria contar um pouco das coisas que havia aprendido em tantos anos de dedicação à literatura.

No dia da morte de Roberta, Pedro sentiu um embrulho no estômago que jamais haveria de esquecer. À medida que chorava de tristeza, minutos depois de receber a notícia de seu pai, um gigantesco remorso o corroeu. Lembrou do único livro que ganhara de presente até então. Nunca o lera, jamais estabelecendo assim um diálogo com sua adorada irmã acerca daquele romance, que pela capa e título parecia ser tão enigmático. Apesar de nunca ter se debruçado sobre aquelas páginas fantásticas, Pedro sabia que havia algo em especial naquela obra; sua irmã, que já destrinchara títulos e estilos literários de todas as sortes, escolhera justamente aquele para demonstrar seu inexorável afeto ao irmão.

Quando, na Central do Brasil, Pedro - ao olhar os painéis que designavam as plataformas onde sairiam as composições que levariam de volta os trabalhadores para suas casas - rumou apressado para o trem, já estava totalmente teletransportado ao mundo fabuloso cravado naquele presente de anos atrás. Já haviam se passado oito anos daquele seu aniversário de quinze anos e quase dois da morte de sua irmã. O rapaz voltava de mais um dia de aulas e debates na Universidade. Era estudioso e obstinado, mas, desde que resolvera enfrentar seu passado, não teve mais tempo para o resto dos seus afazeres cotidianos; estava completamente preso ao mundo de tapetes voadores e tesouros escondidos, aos amores e sentimentos que transbordavam das pessoas que viviam entre o mundo e o fim dele, entre o real e o imaginário. Logo nas primeiras páginas do livro, sentiu aquele remorso lúgubre voltar, mas em instantes, como quem pensa por um breve momento ser alvo de um ladrão e depois se despe completamente do pavor que antecede a calmaria, estava atado às palavras, de maneira que já nem se lembrava mais das vicissitudes que desviaram seu caminho daquele livro surrado.

Tão logo entrou na plataforma, viu lugares vacantes. Sentou-se atabalhoadamente entre tentar achar o seu espaço na cadeira e abrir o zíper de sua mochila, que guardava aquela torrente de magia. Ao abrir o livro, derramou-se nele. Era como se o trem voasse a as pessoas ao redor fossem espectros. Estava mouco e contente. Entre o vão ensejado pelo virar das páginas não parava para matutar sobre outra coisa senão sobre o tempo que perdera distante daquela resma feita da mais fina beleza. Já não se aguentava mais de tanta emoção. Sentiu uma vontade incontinente de chorar, de chorar muito. Queria sorrir também, mas não fez nada disso. Iria soar estranho para aqueles que por muitas razões não tinham como transmutar a tosca viagem em um mundo de suspiros e deleite – ademais, nem Pedro se reconheceu direito quando seus pelos se eriçaram e seu pescoço gelou de frio e júbilo.

Pedro estava pronto para ver o cigano Melquíades mudar novamente o ruma da estória, quando o mundo encantado da estrada de ferro começou a desmoronar. A energia foi cortada e o trem ficou num escuro despótico. Aquela orquestra barulhenta de uma nota só silenciou. Começou a escutar as conversas paralelas dos passageiros. Fechou os olhos por uns quinze segundos. Logo que os abriu, o trem voltou a se movimentar sobre os trilhos. Entretanto, a mente de Pedro já havia sido expurgada do prazer; sua armadura se esfacelara. Ao retificar a posição de sua coluna vertebral e seguir na sua jornada para os confins de Garcia Marquez, Pedro viu uma normalista muito bonita, de coxas firmes e olhos pintados de roxo. Era loura e escutava música pelos fones de ouvido. Seu olhar estava tão distante que pensou que ela poderia ter vindo de Macondo; estava triste porque havia deixado os ciganos e a alquimia para cumprir o ensino médio numa saia maledicente e sem personalidade; pensou Pedro, ao rir um riso simplório e sincero.

No momento em que sorriu, a menina o olhou; pensou ela ter sido um flerte. Gostando de ser solicitada pelo enigmático rapaz que lia compulsivamente um livro amarelado e velho, a menina respondeu com olhares fixos e cortantes. Pedro gostou, mas não era o caso de trocar olhares com uma menina: queria voltar para Macondo urgentemente. Depois de abaixar a cabeça e voltar ao livro, o rapaz não conteve a curiosidade; num reflexo instintivo a olhou. A menina seguia impávida a dissecá-lo. Ao lado, um trio de homens conversava, quando um deles resolveu comprar alguns pacotes de amendoim de um menininho barrigudo. Depois de dar as moedinhas ao menino, o comprador manteve um pacote para si e ofereceu os outros dois aos seus amigos. O rapaz mais novo aceitou sem dizer uma palavra, já que não podia interromper a sua afinada cantoria pentecostal, acenando com um gesto de gratidão. O terceiro, que estava sentado ao lado de Pedro, negou o amendoim. O senhor que comprou a iguaria tomou a negativa como desfeita e o sujeito que declinou do presentinho teve que ficar por minutos explicando que, no dia anterior, havia comprado dezenas desses pacotes para seus filhos, que não os haviam consumido todos. O senhor cheio de amendoins insistia, enquanto seu amigo negava veementemente, mas de maneira polida para não ofender quem lhe devotara uma gentileza.
Longe do fio da meada que o levaria de volta àquela planície pantanosa nos confins do mundo, Pedro reuniu forças para voltar a ouvir o trem pisoteando o caminho de ferro; leu dois parágrafos e não pôde mais: o senhor que negara o amendoim estava aos gritos chamando um ambulante que passava a vender paçocas. Comprou um monte delas. Quase não teve mãos para segurá-las. Ao guardar os docinhos na sua bolsa, virou para o amigo furioso que estava mastigando os amendoins como se faz com uma carne cheia de nervos: “Paçoca é paçoca, né?”. O rapaz que cantava feito um pássaro fez um olhar de desdém, enquanto o senhor dos amendoins balançou moroso a cabeça latitudinalmente: “É... paçoca”, respondeu enquanto amassava o pacote de amendoim japonês já vazio.

Pedro sorriu novamente. Teve vontade de gargalhar, mas, quando viu a normalista, corou. Ela estava sorrindo na sua frequência, como quem pudesse ler seus pensamentos. Era um convite ao segundo passo, para além do flerte bobo de instantes atrás. Tapou o rosto com o livro e pensou: “Quem sabe assim ela não lê o título do livro na capa e entende que hoje não estou para isso.” As letras eram de um verde equatorial e garrafais, mas nem Pedro acreditou de verdade que aquele seu recurso daria certo, de modo que parou de lutar contra aquele olhar roxo e aquelas coxas peladas. Tomando a decisão de dar prosseguimento àquela dança do acasalamento, foi interrompido por um violento esbarrão no seu ombro esquerdo. Era uma moça de idade indefinida, negra, muito suja e maltrapilha. Estava grávida, levando uma menina tão maltrapilha quanto ela no braço direito. Vinham também a tiracolo um menino maior, que levava uma pochete enviesada no ombro, e uma outra menina, que parecia ser a irmã do meio, mais suja e debelada que todos os outros membros da família juntos. Pedro não conseguiu tirar os olhos deles. Não parou para pensar um segundo sequer sobre o que despertara aquela curiosidade, já que famílias como aquelas apareciam no trem frequentemente, entristecendo e consternando a todos.

A estabanada mãe estava muito suja, e Pedro sentiu um certo nojo dela quando seus corpos se chocaram. Essa sensação foi convalescendo na medida em que via as crianças a prorromper no vagão feito gafanhotos numa monocultura. O menino se desgarrou para a parte traseira do vagão, a metros de distância. A mãe xingava a filha mais nova, ameaçando-a de um surra, aos gritos. Todas as crianças estavam descabeladas, sem qualquer asseio. Pedro sempre cedia seu lugar às mulheres mais velhas e às mães que entravam nos carros, mas dessa vez não o fez. Proceder com a providente gentileza passou por sua cabeça tão rápido quanto um raio, já que a raivosa mãe, num estado de fúria desproporcional ao ato de sua rebenta, não obstante o esbarrão que lhe desferiu momentos antes, agora, com uma descuidada mãozada, lhe derrubara o livro das mãos. Se a sua mente se esforçava em vão para manter-se ereta diante dos escândalos e dos olhares de monalisa da sedutora estudante, agora mesmo é que tudo havia de ter ido para o espaço, já que o próprio romance parecia ter se emborcado para o chão propositalmente – e não pela maltratada mulher -, numa punição ao leitor desatento. Ao ver seu livro no chão, trincou os dentes.

Tudo piorou quando um grito quase o fez saltar do seu banco, como num reflexo voltaico. Era um vendedor de filmes piratas que dava seu espetáculo de frases feitas em altos decibéis. Todos riam do rapaz magricela que tinha uma voz de tuba. Num instante, sacaram quase todos de suas carteiras e compararam aos montes os filmes que ainda estavam em cartaz nas salas de cinema. O vendedor, ao levar sua bolsa cheia de mercadorias até os impacientes consumidores, tropeçou no pé da filha do meio, que empalideceu como se tivesse matado o rapaz. Tropicando, caiu sentado no colo de uma senhora que sorrira o tempo todo com o loquaz camelô. Os discos esparramaram-se no chão. O filho mais velho da mulher descabelada voltou correndo do final do vagão para ver o ocorrido. Quando sua mãe o viu, vociferou, derramando seus perdigotos na tez do livro de Pedro:

“Se você roubar alguma coisa eu te enfio a porrada, seu vagabundo!”

Ninguém deu ouvidos à mulher. O alarido havia suplantado a orquestra férrea a qual Pedro adorara ouvir instantes atrás . Aos passageiros e vendedores, somaram-se um pedinte deficiente em uma cadeira de rodas e seu “curador”, pedindo singelas doações em troca do amor e da providência divina. Nesse exato momento, a menina das saias pregueadas desapareceu e Pedro se viu na obrigação de mediar o conflito entre os senhores da paçoca, que já haviam enveredado a peleia para outros motes. Não respondeu à pergunta que um deles lhe direcionou. Pareciam querer uma terceira via para aquele imbróglio ridículo, mas Pedro não ouviu com clareza a interrogação. Estava completamente atordoado, tentando achar a página onde parara quando seu livro foi impelido ao chão. Os gritos operavam o seu prazer, deixando-o incompleto, difuso. Não sabia mais onde Melquíades estava: se falava com Aureliano ou com o seu pai sempre besuntado em quimeras. Coçava a testa, falava sozinho, quando a porta do trem se abriu; embarafustou pelo vagão, trombando com os passageiros, não antes de ceder seu lugar para a mulher que marcara seu livro com sua saliva gris. A desatinada maltrapilha nem teve tempo de agradecê-lo.

Quando se viu na plataforma, o frio lhe infringiu as pontadas de suas estalactites de gelo. Subiu correndo as escadas até passar pela roleta de saída. Não viu ninguém. Um silêncio cósmico o abraçou. Escorado na balaustrada, na beira da passarela, viu o trem seguir caminho. Maldisse baixinho aquela gente toda. Pensou ter esquecido seu livro naquele furdunço e abriu sua mochila aos poucos, olhando para o céu e pedindo a Deus que seu livro ainda estivesse ali. Estava. Sentiu o alívio correndo pelas veias até chegar ao coração. Ao dar por si, viu que estava numa estação estranha, onde jamais pisara antes. O céu ainda estava ocre no limiar entre a atmosfera e o chão, a despeito da noite musculosa que pairava. Quando se via em situações de total desconhecimento acerca do lugar onde estavam fincados seus pés, Pedro se desesperava. Tinha que voltar para a plataforma. Foi ao bilheteiro e não viu ninguém. Seu desespero começou a aumentar quando viu o Sol desvanecer-se lentamente na noite de chumbo. As nuvens vinham de todos os lados como a fumaça de um cigarro onipresente, rápidas e volumosas, de todas as direções. No momento em que milhões de devaneios entrecortavam-se no estupor de sua mente, Pedro sentiu um odor de doce de leite e resolveu segui-lo. Aquela fragrância amistosa vinha de uma das rampas da passarela, que levava a um largo, que era a ponta de uma rua sem saída. No largo havia um vendedor de churros vestido com um avental branco retinto e uma boina verde. A barraquinha era diferente dessas que encontramos espalhadas pelas calçadas da cidade ao final do expediente. Era feita de madeira, com duas rodas de aspecto colonial, toda pintada de amarelo e azul. A fragrância vinha de lá. Uma monteira de crianças se acumulava nas pernas do vendedor, implorando pelas guloseimas. Cada uma delas, para a surpresa de Pedro, pedia por um sabor diferente de churro. Uma daminha de vestido branco queria um de morango com castanhas, enquanto um menininho de sapatos marrons e meias nas canelas queria o de abacaxi com chocolate.

“Nunca vi churros assim. Como os faz?” – perguntou Pedro, perscrutando os churros dispostos uns ao lado dos outros, no interior daquela idílica barraquinha.

“Por que não prova um primeiro, para depois saber? De repente, o senhor descobre o que quer saber assim que mordê-lo” - respondeu o vendedor sem olhá-lo, já que estava atarefado com as crianças que não paravam de chegar pedindo pelos doces.

O senhor era baixo e tinha uma voz incrivelmente mansa e grave. Seus bigodes eram grandes e se retorciam nas extremidades. Sorria com uma franqueza assustadora para toda a criança que lhe agradecia a benfeitoria.

“Tome um – disse o senhor. Esse é de banana com alfazema. Não há quem não goste no bairro. O Senhor Alvarenga, que já se mudou daqui faz tempo, aliás, há tanto tempo... O Senhor Alvarenga manda seu funcionário buscar esse que estou lhe oferecendo todos os Sábados pela manhã”.

Expressando no olhar sincera gratidão, Pedro pegou o churro das mãos do vendedor e mordiscou a exótica iguaria. Era uma delícia, um assombro de gostoso. Pedro se lembrou de sua avó e de seus arrebatadores bolos de fubá que fazia para ele e sua irmã. A velocidade em que sua memória atávica foi restabelecida, na medida em que sorvia assoberbado a massa peculiar, assustou-o. Numa das calçadas daquele simpático larguinho, havia um enorme escorrego de madeira escura. Por ele desciam dezenas de crianças suadas e sorridentes. Só quando viu a testa molhada de um menininho de camisa polo listrada, Pedro percebeu que o frio se dissipara completamente, como se Deus houvesse proferido uma baforada de cachaceiro na direção daquele bairro insólito. Na descida do escorrego havia uma gigantesca cabeça de dragão encravada nos paralelepípedos, cuja boca aberta engolia um por um os meninos que desciam aos gritos do declive. Pedro sentiu vontade de resgatá-los de lá; parecia um poço sem fundo. Só conseguia pensar nos meninos caindo e ricocheteando nas paredes do esôfago da besta. Chegou a dar o primeiro passo para avisar aos meninos dos perigos daquele caminho ignoto. Ao ver os adultos bebendo refresco e refrigerante nas minúsculas tabernas e os jovens tocando violão e cantando sem pudor uma música de compasso quebrado coçou o queixo, pressentiu que seria visto como tolo ao abordar os lépidos meninos. Ninguém dava bola para aquilo, nem o vendedor de churros, que continuava concentrado na sua tarefa de passar canela na superfície dos quitutes requisitadíssimos.

“Sua irmã vinha sempre aqui. Até hoje todos sentem uma tristeza muito grande ao lembrar daquela moça. Como era divertida!”

Pedro estava absorto tentando convencer a sua mente de que não estava num efêmero sonho bom. A maneira como tudo se desenrolava a revelia da sua vontade lhe dava a certeza de ser tudo aquilo perfeitamente real. Nos seus sonhos, as coisas sempre descambavam para o mesmo final, de maneira que já pela metade de suas andanças no seu próprio subconsciente, Pedro desconfiava, mesmo no seu sono profundo, da farsa que ele mesmo propalava das entranhas do seu cérebro. Contudo, as coisas no largo fugiam do seu controle; tudo era de um ineditismo esfuziante, e Pedro tirou a prova dos nove quando olhou para o céu. Nesse momento, sentiu um silêncio pairar, como se, propositalmente, aquele pequeno conto de fadas que vivia se ausentasse para dar lugar àquela declaração preambular. Pedro sabia que precisava retrucar aquela revelação atômica.

“Com sabe que tenho irmã? Você nem sabe quem eu sou. E que história é essa de que ela vinha sempre aqui? O Senhor pode me explicar direito isso?”

O Senhor continuava a servir as crianças, que puxavam o seu avental e abraçavam suas pernas. Cheio de trabalho e sem se demonstrar atarantado, continuava sem olhar para Pedro. Aquilo incomodou mais ainda o jovem, que coçava o torso, demonstrando uma febril impaciência.

“Rapaz – disse o vendedor de churros, agachando-se para abrir o compartimento de sua carrocinha e pegar mais alguns saquinhos de uma canela cheirosíssima – você é a cara de sua irmã. Além do mais, ela me falava muito de você. Sabia que a Roberta tinha um irmão e, como ela sempre me disse várias e várias vezes, você um dia viria aqui. Aqui está! Pouco antes de falecer daquele jeito trágico...Tadinha ...Sic... Ela me disse que você viria aqui para comer um dos meus churros, como está fazendo bem agora. Não me entenda mal, meu jovem, eu gostava muito de sua irmã. Todos aqui a adoravam, principalmente as crianças do escorrego e os encantadores de constelações. Passava horas com eles rabiscando o céu e divertindo a todos.”

Ao se levantar com uma das mãos apoiando as costas e a outra com dois saquinhos de uma canela inebriante, o senhor cruzou seus olhares pela primeira com os do irmão de sua querida amiga. Pedro sentiu vergonha pela sua grosseria. Viu que jamais aquele senhor gentil e franco poderia ter feito algum mal a sua irmã. Depois desse breve momento de um doído de pesar, Pedro percebeu que duas das meninas que haviam sido devoradas pelo dragão estavam na fila para angariar as guloseimas do misterioso amigo de sua saudosa irmã. Ao olhar para a primeira travessa perpendicular à rua do jubiloso largo, viu que a turma de meninos e meninas voltava das entranhas do dragão aos gritos para a fila do escorrego.

“Nossa, pensei que aquele dragão havia devorado aquelas crianças!”

“Não, ele é feio, mas é a alegria dessa garotada. As mães do bairro agradecem a Deus por ele e ao Senhor Alvarenga que o montou, há muitos anos atrás, quando por aqui só passavam as tropas e os carros de boi. Se não fosse esse dragãozinho camarada, nem sei o que seria dessas pobres mães. A meninada brinca nele a noite inteira e chega em casa prontinha pra dormir, morta de cansaço e felicidade”

Começou a sentir saudade da irmã. Seu peito se comprimiu como uma coruja na chuva. Deixou em paz o senhor com quem fora tão incivil. Ao sair do largo e ganhar o chão da rua principal, voltou a olhar para o céu. Toda aquela vileza tabagista do firmamento havia se dissipado. Um planetário mágico parecia ter sido colado na abóbada acima de sua cabeça. Estrelas cadentes surgiam por detrás da colina onde terminava a rua principal, descrevendo curvas, variando de velocidade, para depois sumir, dando lugar a outras cada vez mais vivazes. Pareciam, as estrelas que vinham e sumiam, seres de vida própria. Pedro pensou que eram fadas, até ouvir de um casal sentado na calçada que eram somente estrelas felizes. Eram os encantadores de estrelas se divertindo. As constelações moviam-se lentamente no pavimento celeste, esgueirando-se em formas cada vez mais inverossímeis. Passavam galeões e caravelas desenhados por pingentes brilhantes, que submergiram às costas da colina. A constelação de capricórnio transmutou-se numa mão que mansamente segurou a Lua, retirando-a do céu para os confins à sotavento do pequeno morro. O bairro infundiu no breu, quando as pessoas começaram a reclamar, casmurros . Alguns meninos distantes dos pais começaram a chamar pelos seus progenitores com inflexões de quase desespero, quando a mão ressurgiu do horizonte com a lua, libertando-a. O povo todo parou com o lamurio e aplaudiu com galhardia o espetáculo.

Passando pelas ruas transversais, Pedro desfrutou de uma seresta em que os instrumentos tinham os sons trocados. Um velhinho tocava um violão com o som de um cravo, enquanto a flauta dava o grave do trombone. Uma menina cor de diamante, descalça e de vestido amarelo, cantava com uma voz angelical enquanto batia numa pandeirola que soava como uma lira. Ao voltar à rua dos churros, viu uma série de casas sem muros, onde as pessoas jogavam xadrez, bebiam caldo de cana e comiam pastéis que exalavam um odor de carne temperada com ervas finas. Pedro pensou ter visto um cachorro conversar com o outro, mas riu de si mesmo quando, lambendo dos dedos os restos de doce de leite levemente rascante do seu churro de banana perfumada, viu uma fêmea de labrador ceder aos encantos de um vira lata manchado na cara. Foi a coisa mais banal e mundana que vira desde a descida da passarela odorífica. A rua principal terminava no sopé da colina onde as estrelas esconderam a lua. Nessa colina, ao final de uma estrada cercada por pinheiros mais mortos do que vivos, encravava-se uma gigantesca casa de janelas retangulares e paredes chapiscadas. Eram três andares, sendo que o último era feito de paredes inteiriças de vidro. Devido à inclinação e a meia luz da noite, Pedro não pôde matar sua curiosidade. Para além do vidro, só as trevas. Era como se aquela monumental residência não fizesse parte daquele cenário notável, onde sons e imagens quebrantavam a noção do que era real para um recém chegado daquele ordinário e inextricável trem.

Feito um aprendiz obstinado que passa suas noites em claro soterrado por onipresentes conjecturas, Pedro voltou ao senhor de jaleco branco disposto a reatar a conversa quase sobrenatural sobre a sua irmã e seu convívio no bairro do dragão que comia a regurgitava crianças. Antes de indagar sobre o que desejava, foi antecipado pelo senhor que gozava de uma merecida folga, já que as crianças seguiram alguns saltimbancos que prometiam cortar uma mulher ao meio sem matá-la.

“Você foi à casa do Senhor Alvarenga, não foi? Está fechada há muito tempo. Disputei célebres partidas de gamão com o meu amigo lá. Foi ele quem me deu essa barraca. Era uma charrete de pôneis que ele ganhou de recompensa por dizimar os besouros que estavam matando a lavoura de um agricultor, no Sul de Minas Gerais. Eu a adaptei e fiz a barraquinha”

O rapaz resolveu deixar a sua irmã um pouquinho de lado outra vez, como se quisesse agradecer ao homem da boina verde pelo o prazer daquele churro devastador.

“Esse Senhor Alvarenga... Quem era ele?”

“Meu Filho, Augusto Alvarenga foi o criador desse enclave onde estamos agora. Há muitos anos atrás, antes mesmo da cidade estender sua teia sobre tudo, esse largo estava aqui. Ele tinha a força de nove homens e construiu sozinho todas as casas da rua em que estamos. Todos os objetos que lhe chamaram a atenção – o dragão, o terceiro andar de vidro puro, os instrumentos que tocam no timbre de outros e essa barraquinha que enche a pança das crianças – foram trazidos pelo meu amigo. Ele viajou o mundo desbravando os locais mais inacessíveis, levando sua providência e liderança. Sempre voltava com esses presentes. O escorrego do dragão foi dado por um descendente da monarquia chinesa. Seu Alvarenga curou seu filho dos pulmões quando lhe deu o mel feito no topo da colina onde construiu sua casa.”

No paroxismo da sua curiosidade, Pedro perguntou de pronto por que aquele sujeito ímpar havia deixado o bairro para voltar somente na figura de seu assistente. O Senhor tirou a boina verde, sentou no meio fio e olhou Pedro que estava de pé, sedento pelo epílogo daquele mítico empreendedor.

“Senhor Alvarenga era um homem dos livros. De quando em vez, trancava-se no andar dos vidros e lia compulsivamente. ( Certa vez o Senhor Marco Aurélio Tavares, seu amigo de infância, disse-me que a biblioteca do velho Alvarenga era a maior entre todas que já visitara, que nem nos acervos oficiais, nem nas bibliotecas públicas vira tantos títulos; ele tinha razão: era livro para todos os cantos. ) As empregadas que vinham comprar os mantimentos murmuravam para quem quisesse saber que o velho Alvarenga estava naqueles dias de leitura alucinógena. Passava duas, três semanas trancado. Quando saía do confinamento, estava mais forte, corado e mais resoluto do que nunca. Sorvia das histórias alguma coisa que lhe enchia de energia até o tutano dos ossos. Pouca gente aqui, surpreendentemente, nunca atinou para o fato de que o Senhor Alvarenga já tinha mais de cento e trinta anos quando trouxe da Bélgica os instrumentos que você acabou de ouvir na ruazinha ali atrás. Mas, de uns tempos para cá, meu amigo começou a perder a visão. Antes de sentir fatigar qualquer um de seus órgãos, foi a visão que envelheceu. Numa visita que lhe fiz, há alguns anos atrás, disse que não poderia mais viver aqui. Não quis perguntar demais, pois sempre o achei o sujeito mais sabido de todos. Pensei comigo: ‘há de ser o melhor para todos; esse homem não pode errar o rumo de sua vida.”

Pedro sentiu uma vontade carnívora de saber mais daquele ancião; entretanto, lembrou-se do assunto o qual veio tratar quando atravessou toda a rua.

“E minha irmã, como veio para aqui? Lá em casa ninguém nunca soube de um lugar como esse. Ela vinha para cá de trem?”

“Não – respondeu o senhor, que tão logo ouviu a pergunta, colocou a boina verde em sua cabeça e deu um salto juvenil do chão -, creio que só na primeira vez, assim como você acabou de fazer. Depois disso, ela nunca mais veio de trem. Certa vez, sua irmã desceu no cume da colina num imenso Zepelin. Trazia com ela um grupo de cientistas alemães que vestiam umas roupas muito engraçadas. Logo que ficamos amigos, ela trouxe do Sul para mim um chimarrão. Dessa vez ela estava com dois amigos gaúchos muito branquinhos. Que rapazes legais! Mas quando ela veio pilotando uma asa delta, foi demais. Roberta dava rasantes bem aqui no escorrego. As crianças esticavam os braços para pegar uma carona com ela, mas ela desviava, iludindo-os. Quando pousou, trazia um andor, que deixou na igrejinha que fica a dois quarteirões de onde estamos. Na sua última visita ao bairro, Roberta trouxe nos seus braços várias araras azuis que cantavam a cantilena de Villa Lobos. Era tanta arara que ela mantinha o braço o tempo todo esticado, levando aquele peso enorme, só para agradar os enxadristas, que cantavam junto com as aves! ”

Assustou-se ao ouvir as façanhas de sua irmã, mas, principalmente, por ter acreditado em cada vírgula que acabara de ouvir. Se chegou a declinar das suas novas convicções ou das estórias imateriais, foi só por um milésimo de segundo; já estava ele com os olhos no céu, vendo a dança das estrelas em carnaval. Uma janela em seu peito se abrira a muito custo, rangendo, estropiando as dobradiças enferrujadas de sua alma refeita.

“Senhor, preciso ir embora, meus pais me esperam. Depois que minha irmã morreu, eles não descansam enquanto eu não chegar em casa.” – disse Pedro, como quem, implicitamente, quer na verdade falar aos berros que vai voltar em breve para uma conversa mais calma. “Não sei como voltar pra casa. Tenho que pegar o trem, mas o bilheteiro deve ter se perdido por aí nesse bairro incrível!”

“Não se preocupe – falou calmamente senhor, em contraste com a chiadeira do óleo em brasa em contato com os churros que acabara de despejar na frigideira -, o bilheteiro vai estar lá no guichê para lhe dar a passagem. Vá; vá, mas volte... Eu sei que vai voltar.”

Pedro despediu-se do vendedor que acabara de lhe presentear com o sorriso mais sincero do mundo, quando as crianças voltaram com as bocas e barrigas vazias de comida e prazer. Ao subir a rampa da estação, caminhou devagar, segurando-se na balaustrada. Viu o céu escurecer novamente. As estrelas foram se amainado até ficar estáticas, como deveria ser. O frio voltou mais forte. Ao abrir a mochila para sacar o seu casaco, Pedro viu aquele livro fabuloso, onde se jogara para sentir a espinha dorsal tremer de torpor. Lembrou de Melquíades. Um segundo após, recordou que não havia perguntado o nome do amigo de sua irmã. Da passarela quis gritar por aquele bigodudo. Teve a vã certeza de que o provedor daqueles churros alquímicos também se chamava Melquíades. Ao começar a descer a rampa para confirmar as suas suspeitas acerca do nome do barraqueiro, uma lufada ártica o impeliu para o guichê, instaurando uma neblina espessa no ambiente. Quase que compulsoriamente, foi andando de costas até a entrada da estação.

“Pode descer, é de graça – falou o moço do guichê -; são tão poucas as pessoas que entram e saem dessa estação que a empresa nem faz questão de cobrar a passagem”.

Desceu pelos degraus correndo de frio e pressa, pois a composição vinda da Central do Brasil já exalava o cheiro de borracha queimada dos trens em brusca desaceleração, no intuito de recolher os usuários do transporte ferroviário.

Entrou no trem. Sentou no vagão vazio; socou a própria cabeça. Esquecera-se de averiguar com o bilheteiro o nome do seu novo amigo. Seu auto flagelo foi sucedido de uma vontade imensa de voltar para Macondo e ao vilarejo daquela noite sobre humana. Abriu seu livro, respirou fundo e mergulhou sem medo de voltar atrás. Não chegou a rememorar aquelas pessoas que o impeliram do trem há horas atrás. Mais do que nunca, acreditava nos disparates, na alquimia, na peraltice das estrelas e, sobretudo, no gênero humano. Entre uma página e outra, olhava de esguelha através das janelas do trem, como se quisesse pegar desprevenida a mão da fantasia a carregar a lua argenta, ofuscada pelas nuvens secas e lívidas do inverno.