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domingo, 20 de junho de 2010

Pelos Olhos de Roberta

Quando Melquíades voltou a Macondo, Pedro sentiu uma emoção totalmente diferente de tudo que sentira até então. Não que fosse um leitor sazonal, mas aquele livro o transportara para algum grotão de sua alma que jamais havia visitado antes. Mesmo sem perceber à hora, Pedro acabara de desfrutar do prazer oriundo da beleza suprema, quando os recônditos da imaginação humana furtivamente visitam o coração. Como Amaranta, sentiu o frio na espinha dos Buendia, que nele não foi fustigado por uma gota de suor. No trem que o trazia de volta para a casa, o frio era intenso. O refrigerador de ar funcionava a todo vapor a despeito do frio de inverno.

Quando Roberta, sua falecida irmã, deu-lhe “Cem Anos de Solidão” no seu aniversário de quinze anos, não chegou a desgostar do presente, mas também não pôde colocá-lo entre os favoritos entre tantos regalos que recebeu naquela noite. Como gostava muito da irmã e sempre a via sentada na sala a ler seus romances, achou que a bela e virtuosa moça queria contar um pouco das coisas que havia aprendido em tantos anos de dedicação à literatura.

No dia da morte de Roberta, Pedro sentiu um embrulho no estômago que jamais haveria de esquecer. À medida que chorava de tristeza, minutos depois de receber a notícia de seu pai, um gigantesco remorso o corroeu. Lembrou do único livro que ganhara de presente até então. Nunca o lera, jamais estabelecendo assim um diálogo com sua adorada irmã acerca daquele romance, que pela capa e título parecia ser tão enigmático. Apesar de nunca ter se debruçado sobre aquelas páginas fantásticas, Pedro sabia que havia algo em especial naquela obra; sua irmã, que já destrinchara títulos e estilos literários de todas as sortes, escolhera justamente aquele para demonstrar seu inexorável afeto ao irmão.

Quando, na Central do Brasil, Pedro - ao olhar os painéis que designavam as plataformas onde sairiam as composições que levariam de volta os trabalhadores para suas casas - rumou apressado para o trem, já estava totalmente teletransportado ao mundo fabuloso cravado naquele presente de anos atrás. Já haviam se passado oito anos daquele seu aniversário de quinze anos e quase dois da morte de sua irmã. O rapaz voltava de mais um dia de aulas e debates na Universidade. Era estudioso e obstinado, mas, desde que resolvera enfrentar seu passado, não teve mais tempo para o resto dos seus afazeres cotidianos; estava completamente preso ao mundo de tapetes voadores e tesouros escondidos, aos amores e sentimentos que transbordavam das pessoas que viviam entre o mundo e o fim dele, entre o real e o imaginário. Logo nas primeiras páginas do livro, sentiu aquele remorso lúgubre voltar, mas em instantes, como quem pensa por um breve momento ser alvo de um ladrão e depois se despe completamente do pavor que antecede a calmaria, estava atado às palavras, de maneira que já nem se lembrava mais das vicissitudes que desviaram seu caminho daquele livro surrado.

Tão logo entrou na plataforma, viu lugares vacantes. Sentou-se atabalhoadamente entre tentar achar o seu espaço na cadeira e abrir o zíper de sua mochila, que guardava aquela torrente de magia. Ao abrir o livro, derramou-se nele. Era como se o trem voasse a as pessoas ao redor fossem espectros. Estava mouco e contente. Entre o vão ensejado pelo virar das páginas não parava para matutar sobre outra coisa senão sobre o tempo que perdera distante daquela resma feita da mais fina beleza. Já não se aguentava mais de tanta emoção. Sentiu uma vontade incontinente de chorar, de chorar muito. Queria sorrir também, mas não fez nada disso. Iria soar estranho para aqueles que por muitas razões não tinham como transmutar a tosca viagem em um mundo de suspiros e deleite – ademais, nem Pedro se reconheceu direito quando seus pelos se eriçaram e seu pescoço gelou de frio e júbilo.

Pedro estava pronto para ver o cigano Melquíades mudar novamente o ruma da estória, quando o mundo encantado da estrada de ferro começou a desmoronar. A energia foi cortada e o trem ficou num escuro despótico. Aquela orquestra barulhenta de uma nota só silenciou. Começou a escutar as conversas paralelas dos passageiros. Fechou os olhos por uns quinze segundos. Logo que os abriu, o trem voltou a se movimentar sobre os trilhos. Entretanto, a mente de Pedro já havia sido expurgada do prazer; sua armadura se esfacelara. Ao retificar a posição de sua coluna vertebral e seguir na sua jornada para os confins de Garcia Marquez, Pedro viu uma normalista muito bonita, de coxas firmes e olhos pintados de roxo. Era loura e escutava música pelos fones de ouvido. Seu olhar estava tão distante que pensou que ela poderia ter vindo de Macondo; estava triste porque havia deixado os ciganos e a alquimia para cumprir o ensino médio numa saia maledicente e sem personalidade; pensou Pedro, ao rir um riso simplório e sincero.

No momento em que sorriu, a menina o olhou; pensou ela ter sido um flerte. Gostando de ser solicitada pelo enigmático rapaz que lia compulsivamente um livro amarelado e velho, a menina respondeu com olhares fixos e cortantes. Pedro gostou, mas não era o caso de trocar olhares com uma menina: queria voltar para Macondo urgentemente. Depois de abaixar a cabeça e voltar ao livro, o rapaz não conteve a curiosidade; num reflexo instintivo a olhou. A menina seguia impávida a dissecá-lo. Ao lado, um trio de homens conversava, quando um deles resolveu comprar alguns pacotes de amendoim de um menininho barrigudo. Depois de dar as moedinhas ao menino, o comprador manteve um pacote para si e ofereceu os outros dois aos seus amigos. O rapaz mais novo aceitou sem dizer uma palavra, já que não podia interromper a sua afinada cantoria pentecostal, acenando com um gesto de gratidão. O terceiro, que estava sentado ao lado de Pedro, negou o amendoim. O senhor que comprou a iguaria tomou a negativa como desfeita e o sujeito que declinou do presentinho teve que ficar por minutos explicando que, no dia anterior, havia comprado dezenas desses pacotes para seus filhos, que não os haviam consumido todos. O senhor cheio de amendoins insistia, enquanto seu amigo negava veementemente, mas de maneira polida para não ofender quem lhe devotara uma gentileza.
Longe do fio da meada que o levaria de volta àquela planície pantanosa nos confins do mundo, Pedro reuniu forças para voltar a ouvir o trem pisoteando o caminho de ferro; leu dois parágrafos e não pôde mais: o senhor que negara o amendoim estava aos gritos chamando um ambulante que passava a vender paçocas. Comprou um monte delas. Quase não teve mãos para segurá-las. Ao guardar os docinhos na sua bolsa, virou para o amigo furioso que estava mastigando os amendoins como se faz com uma carne cheia de nervos: “Paçoca é paçoca, né?”. O rapaz que cantava feito um pássaro fez um olhar de desdém, enquanto o senhor dos amendoins balançou moroso a cabeça latitudinalmente: “É... paçoca”, respondeu enquanto amassava o pacote de amendoim japonês já vazio.

Pedro sorriu novamente. Teve vontade de gargalhar, mas, quando viu a normalista, corou. Ela estava sorrindo na sua frequência, como quem pudesse ler seus pensamentos. Era um convite ao segundo passo, para além do flerte bobo de instantes atrás. Tapou o rosto com o livro e pensou: “Quem sabe assim ela não lê o título do livro na capa e entende que hoje não estou para isso.” As letras eram de um verde equatorial e garrafais, mas nem Pedro acreditou de verdade que aquele seu recurso daria certo, de modo que parou de lutar contra aquele olhar roxo e aquelas coxas peladas. Tomando a decisão de dar prosseguimento àquela dança do acasalamento, foi interrompido por um violento esbarrão no seu ombro esquerdo. Era uma moça de idade indefinida, negra, muito suja e maltrapilha. Estava grávida, levando uma menina tão maltrapilha quanto ela no braço direito. Vinham também a tiracolo um menino maior, que levava uma pochete enviesada no ombro, e uma outra menina, que parecia ser a irmã do meio, mais suja e debelada que todos os outros membros da família juntos. Pedro não conseguiu tirar os olhos deles. Não parou para pensar um segundo sequer sobre o que despertara aquela curiosidade, já que famílias como aquelas apareciam no trem frequentemente, entristecendo e consternando a todos.

A estabanada mãe estava muito suja, e Pedro sentiu um certo nojo dela quando seus corpos se chocaram. Essa sensação foi convalescendo na medida em que via as crianças a prorromper no vagão feito gafanhotos numa monocultura. O menino se desgarrou para a parte traseira do vagão, a metros de distância. A mãe xingava a filha mais nova, ameaçando-a de um surra, aos gritos. Todas as crianças estavam descabeladas, sem qualquer asseio. Pedro sempre cedia seu lugar às mulheres mais velhas e às mães que entravam nos carros, mas dessa vez não o fez. Proceder com a providente gentileza passou por sua cabeça tão rápido quanto um raio, já que a raivosa mãe, num estado de fúria desproporcional ao ato de sua rebenta, não obstante o esbarrão que lhe desferiu momentos antes, agora, com uma descuidada mãozada, lhe derrubara o livro das mãos. Se a sua mente se esforçava em vão para manter-se ereta diante dos escândalos e dos olhares de monalisa da sedutora estudante, agora mesmo é que tudo havia de ter ido para o espaço, já que o próprio romance parecia ter se emborcado para o chão propositalmente – e não pela maltratada mulher -, numa punição ao leitor desatento. Ao ver seu livro no chão, trincou os dentes.

Tudo piorou quando um grito quase o fez saltar do seu banco, como num reflexo voltaico. Era um vendedor de filmes piratas que dava seu espetáculo de frases feitas em altos decibéis. Todos riam do rapaz magricela que tinha uma voz de tuba. Num instante, sacaram quase todos de suas carteiras e compararam aos montes os filmes que ainda estavam em cartaz nas salas de cinema. O vendedor, ao levar sua bolsa cheia de mercadorias até os impacientes consumidores, tropeçou no pé da filha do meio, que empalideceu como se tivesse matado o rapaz. Tropicando, caiu sentado no colo de uma senhora que sorrira o tempo todo com o loquaz camelô. Os discos esparramaram-se no chão. O filho mais velho da mulher descabelada voltou correndo do final do vagão para ver o ocorrido. Quando sua mãe o viu, vociferou, derramando seus perdigotos na tez do livro de Pedro:

“Se você roubar alguma coisa eu te enfio a porrada, seu vagabundo!”

Ninguém deu ouvidos à mulher. O alarido havia suplantado a orquestra férrea a qual Pedro adorara ouvir instantes atrás . Aos passageiros e vendedores, somaram-se um pedinte deficiente em uma cadeira de rodas e seu “curador”, pedindo singelas doações em troca do amor e da providência divina. Nesse exato momento, a menina das saias pregueadas desapareceu e Pedro se viu na obrigação de mediar o conflito entre os senhores da paçoca, que já haviam enveredado a peleia para outros motes. Não respondeu à pergunta que um deles lhe direcionou. Pareciam querer uma terceira via para aquele imbróglio ridículo, mas Pedro não ouviu com clareza a interrogação. Estava completamente atordoado, tentando achar a página onde parara quando seu livro foi impelido ao chão. Os gritos operavam o seu prazer, deixando-o incompleto, difuso. Não sabia mais onde Melquíades estava: se falava com Aureliano ou com o seu pai sempre besuntado em quimeras. Coçava a testa, falava sozinho, quando a porta do trem se abriu; embarafustou pelo vagão, trombando com os passageiros, não antes de ceder seu lugar para a mulher que marcara seu livro com sua saliva gris. A desatinada maltrapilha nem teve tempo de agradecê-lo.

Quando se viu na plataforma, o frio lhe infringiu as pontadas de suas estalactites de gelo. Subiu correndo as escadas até passar pela roleta de saída. Não viu ninguém. Um silêncio cósmico o abraçou. Escorado na balaustrada, na beira da passarela, viu o trem seguir caminho. Maldisse baixinho aquela gente toda. Pensou ter esquecido seu livro naquele furdunço e abriu sua mochila aos poucos, olhando para o céu e pedindo a Deus que seu livro ainda estivesse ali. Estava. Sentiu o alívio correndo pelas veias até chegar ao coração. Ao dar por si, viu que estava numa estação estranha, onde jamais pisara antes. O céu ainda estava ocre no limiar entre a atmosfera e o chão, a despeito da noite musculosa que pairava. Quando se via em situações de total desconhecimento acerca do lugar onde estavam fincados seus pés, Pedro se desesperava. Tinha que voltar para a plataforma. Foi ao bilheteiro e não viu ninguém. Seu desespero começou a aumentar quando viu o Sol desvanecer-se lentamente na noite de chumbo. As nuvens vinham de todos os lados como a fumaça de um cigarro onipresente, rápidas e volumosas, de todas as direções. No momento em que milhões de devaneios entrecortavam-se no estupor de sua mente, Pedro sentiu um odor de doce de leite e resolveu segui-lo. Aquela fragrância amistosa vinha de uma das rampas da passarela, que levava a um largo, que era a ponta de uma rua sem saída. No largo havia um vendedor de churros vestido com um avental branco retinto e uma boina verde. A barraquinha era diferente dessas que encontramos espalhadas pelas calçadas da cidade ao final do expediente. Era feita de madeira, com duas rodas de aspecto colonial, toda pintada de amarelo e azul. A fragrância vinha de lá. Uma monteira de crianças se acumulava nas pernas do vendedor, implorando pelas guloseimas. Cada uma delas, para a surpresa de Pedro, pedia por um sabor diferente de churro. Uma daminha de vestido branco queria um de morango com castanhas, enquanto um menininho de sapatos marrons e meias nas canelas queria o de abacaxi com chocolate.

“Nunca vi churros assim. Como os faz?” – perguntou Pedro, perscrutando os churros dispostos uns ao lado dos outros, no interior daquela idílica barraquinha.

“Por que não prova um primeiro, para depois saber? De repente, o senhor descobre o que quer saber assim que mordê-lo” - respondeu o vendedor sem olhá-lo, já que estava atarefado com as crianças que não paravam de chegar pedindo pelos doces.

O senhor era baixo e tinha uma voz incrivelmente mansa e grave. Seus bigodes eram grandes e se retorciam nas extremidades. Sorria com uma franqueza assustadora para toda a criança que lhe agradecia a benfeitoria.

“Tome um – disse o senhor. Esse é de banana com alfazema. Não há quem não goste no bairro. O Senhor Alvarenga, que já se mudou daqui faz tempo, aliás, há tanto tempo... O Senhor Alvarenga manda seu funcionário buscar esse que estou lhe oferecendo todos os Sábados pela manhã”.

Expressando no olhar sincera gratidão, Pedro pegou o churro das mãos do vendedor e mordiscou a exótica iguaria. Era uma delícia, um assombro de gostoso. Pedro se lembrou de sua avó e de seus arrebatadores bolos de fubá que fazia para ele e sua irmã. A velocidade em que sua memória atávica foi restabelecida, na medida em que sorvia assoberbado a massa peculiar, assustou-o. Numa das calçadas daquele simpático larguinho, havia um enorme escorrego de madeira escura. Por ele desciam dezenas de crianças suadas e sorridentes. Só quando viu a testa molhada de um menininho de camisa polo listrada, Pedro percebeu que o frio se dissipara completamente, como se Deus houvesse proferido uma baforada de cachaceiro na direção daquele bairro insólito. Na descida do escorrego havia uma gigantesca cabeça de dragão encravada nos paralelepípedos, cuja boca aberta engolia um por um os meninos que desciam aos gritos do declive. Pedro sentiu vontade de resgatá-los de lá; parecia um poço sem fundo. Só conseguia pensar nos meninos caindo e ricocheteando nas paredes do esôfago da besta. Chegou a dar o primeiro passo para avisar aos meninos dos perigos daquele caminho ignoto. Ao ver os adultos bebendo refresco e refrigerante nas minúsculas tabernas e os jovens tocando violão e cantando sem pudor uma música de compasso quebrado coçou o queixo, pressentiu que seria visto como tolo ao abordar os lépidos meninos. Ninguém dava bola para aquilo, nem o vendedor de churros, que continuava concentrado na sua tarefa de passar canela na superfície dos quitutes requisitadíssimos.

“Sua irmã vinha sempre aqui. Até hoje todos sentem uma tristeza muito grande ao lembrar daquela moça. Como era divertida!”

Pedro estava absorto tentando convencer a sua mente de que não estava num efêmero sonho bom. A maneira como tudo se desenrolava a revelia da sua vontade lhe dava a certeza de ser tudo aquilo perfeitamente real. Nos seus sonhos, as coisas sempre descambavam para o mesmo final, de maneira que já pela metade de suas andanças no seu próprio subconsciente, Pedro desconfiava, mesmo no seu sono profundo, da farsa que ele mesmo propalava das entranhas do seu cérebro. Contudo, as coisas no largo fugiam do seu controle; tudo era de um ineditismo esfuziante, e Pedro tirou a prova dos nove quando olhou para o céu. Nesse momento, sentiu um silêncio pairar, como se, propositalmente, aquele pequeno conto de fadas que vivia se ausentasse para dar lugar àquela declaração preambular. Pedro sabia que precisava retrucar aquela revelação atômica.

“Com sabe que tenho irmã? Você nem sabe quem eu sou. E que história é essa de que ela vinha sempre aqui? O Senhor pode me explicar direito isso?”

O Senhor continuava a servir as crianças, que puxavam o seu avental e abraçavam suas pernas. Cheio de trabalho e sem se demonstrar atarantado, continuava sem olhar para Pedro. Aquilo incomodou mais ainda o jovem, que coçava o torso, demonstrando uma febril impaciência.

“Rapaz – disse o vendedor de churros, agachando-se para abrir o compartimento de sua carrocinha e pegar mais alguns saquinhos de uma canela cheirosíssima – você é a cara de sua irmã. Além do mais, ela me falava muito de você. Sabia que a Roberta tinha um irmão e, como ela sempre me disse várias e várias vezes, você um dia viria aqui. Aqui está! Pouco antes de falecer daquele jeito trágico...Tadinha ...Sic... Ela me disse que você viria aqui para comer um dos meus churros, como está fazendo bem agora. Não me entenda mal, meu jovem, eu gostava muito de sua irmã. Todos aqui a adoravam, principalmente as crianças do escorrego e os encantadores de constelações. Passava horas com eles rabiscando o céu e divertindo a todos.”

Ao se levantar com uma das mãos apoiando as costas e a outra com dois saquinhos de uma canela inebriante, o senhor cruzou seus olhares pela primeira com os do irmão de sua querida amiga. Pedro sentiu vergonha pela sua grosseria. Viu que jamais aquele senhor gentil e franco poderia ter feito algum mal a sua irmã. Depois desse breve momento de um doído de pesar, Pedro percebeu que duas das meninas que haviam sido devoradas pelo dragão estavam na fila para angariar as guloseimas do misterioso amigo de sua saudosa irmã. Ao olhar para a primeira travessa perpendicular à rua do jubiloso largo, viu que a turma de meninos e meninas voltava das entranhas do dragão aos gritos para a fila do escorrego.

“Nossa, pensei que aquele dragão havia devorado aquelas crianças!”

“Não, ele é feio, mas é a alegria dessa garotada. As mães do bairro agradecem a Deus por ele e ao Senhor Alvarenga que o montou, há muitos anos atrás, quando por aqui só passavam as tropas e os carros de boi. Se não fosse esse dragãozinho camarada, nem sei o que seria dessas pobres mães. A meninada brinca nele a noite inteira e chega em casa prontinha pra dormir, morta de cansaço e felicidade”

Começou a sentir saudade da irmã. Seu peito se comprimiu como uma coruja na chuva. Deixou em paz o senhor com quem fora tão incivil. Ao sair do largo e ganhar o chão da rua principal, voltou a olhar para o céu. Toda aquela vileza tabagista do firmamento havia se dissipado. Um planetário mágico parecia ter sido colado na abóbada acima de sua cabeça. Estrelas cadentes surgiam por detrás da colina onde terminava a rua principal, descrevendo curvas, variando de velocidade, para depois sumir, dando lugar a outras cada vez mais vivazes. Pareciam, as estrelas que vinham e sumiam, seres de vida própria. Pedro pensou que eram fadas, até ouvir de um casal sentado na calçada que eram somente estrelas felizes. Eram os encantadores de estrelas se divertindo. As constelações moviam-se lentamente no pavimento celeste, esgueirando-se em formas cada vez mais inverossímeis. Passavam galeões e caravelas desenhados por pingentes brilhantes, que submergiram às costas da colina. A constelação de capricórnio transmutou-se numa mão que mansamente segurou a Lua, retirando-a do céu para os confins à sotavento do pequeno morro. O bairro infundiu no breu, quando as pessoas começaram a reclamar, casmurros . Alguns meninos distantes dos pais começaram a chamar pelos seus progenitores com inflexões de quase desespero, quando a mão ressurgiu do horizonte com a lua, libertando-a. O povo todo parou com o lamurio e aplaudiu com galhardia o espetáculo.

Passando pelas ruas transversais, Pedro desfrutou de uma seresta em que os instrumentos tinham os sons trocados. Um velhinho tocava um violão com o som de um cravo, enquanto a flauta dava o grave do trombone. Uma menina cor de diamante, descalça e de vestido amarelo, cantava com uma voz angelical enquanto batia numa pandeirola que soava como uma lira. Ao voltar à rua dos churros, viu uma série de casas sem muros, onde as pessoas jogavam xadrez, bebiam caldo de cana e comiam pastéis que exalavam um odor de carne temperada com ervas finas. Pedro pensou ter visto um cachorro conversar com o outro, mas riu de si mesmo quando, lambendo dos dedos os restos de doce de leite levemente rascante do seu churro de banana perfumada, viu uma fêmea de labrador ceder aos encantos de um vira lata manchado na cara. Foi a coisa mais banal e mundana que vira desde a descida da passarela odorífica. A rua principal terminava no sopé da colina onde as estrelas esconderam a lua. Nessa colina, ao final de uma estrada cercada por pinheiros mais mortos do que vivos, encravava-se uma gigantesca casa de janelas retangulares e paredes chapiscadas. Eram três andares, sendo que o último era feito de paredes inteiriças de vidro. Devido à inclinação e a meia luz da noite, Pedro não pôde matar sua curiosidade. Para além do vidro, só as trevas. Era como se aquela monumental residência não fizesse parte daquele cenário notável, onde sons e imagens quebrantavam a noção do que era real para um recém chegado daquele ordinário e inextricável trem.

Feito um aprendiz obstinado que passa suas noites em claro soterrado por onipresentes conjecturas, Pedro voltou ao senhor de jaleco branco disposto a reatar a conversa quase sobrenatural sobre a sua irmã e seu convívio no bairro do dragão que comia a regurgitava crianças. Antes de indagar sobre o que desejava, foi antecipado pelo senhor que gozava de uma merecida folga, já que as crianças seguiram alguns saltimbancos que prometiam cortar uma mulher ao meio sem matá-la.

“Você foi à casa do Senhor Alvarenga, não foi? Está fechada há muito tempo. Disputei célebres partidas de gamão com o meu amigo lá. Foi ele quem me deu essa barraca. Era uma charrete de pôneis que ele ganhou de recompensa por dizimar os besouros que estavam matando a lavoura de um agricultor, no Sul de Minas Gerais. Eu a adaptei e fiz a barraquinha”

O rapaz resolveu deixar a sua irmã um pouquinho de lado outra vez, como se quisesse agradecer ao homem da boina verde pelo o prazer daquele churro devastador.

“Esse Senhor Alvarenga... Quem era ele?”

“Meu Filho, Augusto Alvarenga foi o criador desse enclave onde estamos agora. Há muitos anos atrás, antes mesmo da cidade estender sua teia sobre tudo, esse largo estava aqui. Ele tinha a força de nove homens e construiu sozinho todas as casas da rua em que estamos. Todos os objetos que lhe chamaram a atenção – o dragão, o terceiro andar de vidro puro, os instrumentos que tocam no timbre de outros e essa barraquinha que enche a pança das crianças – foram trazidos pelo meu amigo. Ele viajou o mundo desbravando os locais mais inacessíveis, levando sua providência e liderança. Sempre voltava com esses presentes. O escorrego do dragão foi dado por um descendente da monarquia chinesa. Seu Alvarenga curou seu filho dos pulmões quando lhe deu o mel feito no topo da colina onde construiu sua casa.”

No paroxismo da sua curiosidade, Pedro perguntou de pronto por que aquele sujeito ímpar havia deixado o bairro para voltar somente na figura de seu assistente. O Senhor tirou a boina verde, sentou no meio fio e olhou Pedro que estava de pé, sedento pelo epílogo daquele mítico empreendedor.

“Senhor Alvarenga era um homem dos livros. De quando em vez, trancava-se no andar dos vidros e lia compulsivamente. ( Certa vez o Senhor Marco Aurélio Tavares, seu amigo de infância, disse-me que a biblioteca do velho Alvarenga era a maior entre todas que já visitara, que nem nos acervos oficiais, nem nas bibliotecas públicas vira tantos títulos; ele tinha razão: era livro para todos os cantos. ) As empregadas que vinham comprar os mantimentos murmuravam para quem quisesse saber que o velho Alvarenga estava naqueles dias de leitura alucinógena. Passava duas, três semanas trancado. Quando saía do confinamento, estava mais forte, corado e mais resoluto do que nunca. Sorvia das histórias alguma coisa que lhe enchia de energia até o tutano dos ossos. Pouca gente aqui, surpreendentemente, nunca atinou para o fato de que o Senhor Alvarenga já tinha mais de cento e trinta anos quando trouxe da Bélgica os instrumentos que você acabou de ouvir na ruazinha ali atrás. Mas, de uns tempos para cá, meu amigo começou a perder a visão. Antes de sentir fatigar qualquer um de seus órgãos, foi a visão que envelheceu. Numa visita que lhe fiz, há alguns anos atrás, disse que não poderia mais viver aqui. Não quis perguntar demais, pois sempre o achei o sujeito mais sabido de todos. Pensei comigo: ‘há de ser o melhor para todos; esse homem não pode errar o rumo de sua vida.”

Pedro sentiu uma vontade carnívora de saber mais daquele ancião; entretanto, lembrou-se do assunto o qual veio tratar quando atravessou toda a rua.

“E minha irmã, como veio para aqui? Lá em casa ninguém nunca soube de um lugar como esse. Ela vinha para cá de trem?”

“Não – respondeu o senhor, que tão logo ouviu a pergunta, colocou a boina verde em sua cabeça e deu um salto juvenil do chão -, creio que só na primeira vez, assim como você acabou de fazer. Depois disso, ela nunca mais veio de trem. Certa vez, sua irmã desceu no cume da colina num imenso Zepelin. Trazia com ela um grupo de cientistas alemães que vestiam umas roupas muito engraçadas. Logo que ficamos amigos, ela trouxe do Sul para mim um chimarrão. Dessa vez ela estava com dois amigos gaúchos muito branquinhos. Que rapazes legais! Mas quando ela veio pilotando uma asa delta, foi demais. Roberta dava rasantes bem aqui no escorrego. As crianças esticavam os braços para pegar uma carona com ela, mas ela desviava, iludindo-os. Quando pousou, trazia um andor, que deixou na igrejinha que fica a dois quarteirões de onde estamos. Na sua última visita ao bairro, Roberta trouxe nos seus braços várias araras azuis que cantavam a cantilena de Villa Lobos. Era tanta arara que ela mantinha o braço o tempo todo esticado, levando aquele peso enorme, só para agradar os enxadristas, que cantavam junto com as aves! ”

Assustou-se ao ouvir as façanhas de sua irmã, mas, principalmente, por ter acreditado em cada vírgula que acabara de ouvir. Se chegou a declinar das suas novas convicções ou das estórias imateriais, foi só por um milésimo de segundo; já estava ele com os olhos no céu, vendo a dança das estrelas em carnaval. Uma janela em seu peito se abrira a muito custo, rangendo, estropiando as dobradiças enferrujadas de sua alma refeita.

“Senhor, preciso ir embora, meus pais me esperam. Depois que minha irmã morreu, eles não descansam enquanto eu não chegar em casa.” – disse Pedro, como quem, implicitamente, quer na verdade falar aos berros que vai voltar em breve para uma conversa mais calma. “Não sei como voltar pra casa. Tenho que pegar o trem, mas o bilheteiro deve ter se perdido por aí nesse bairro incrível!”

“Não se preocupe – falou calmamente senhor, em contraste com a chiadeira do óleo em brasa em contato com os churros que acabara de despejar na frigideira -, o bilheteiro vai estar lá no guichê para lhe dar a passagem. Vá; vá, mas volte... Eu sei que vai voltar.”

Pedro despediu-se do vendedor que acabara de lhe presentear com o sorriso mais sincero do mundo, quando as crianças voltaram com as bocas e barrigas vazias de comida e prazer. Ao subir a rampa da estação, caminhou devagar, segurando-se na balaustrada. Viu o céu escurecer novamente. As estrelas foram se amainado até ficar estáticas, como deveria ser. O frio voltou mais forte. Ao abrir a mochila para sacar o seu casaco, Pedro viu aquele livro fabuloso, onde se jogara para sentir a espinha dorsal tremer de torpor. Lembrou de Melquíades. Um segundo após, recordou que não havia perguntado o nome do amigo de sua irmã. Da passarela quis gritar por aquele bigodudo. Teve a vã certeza de que o provedor daqueles churros alquímicos também se chamava Melquíades. Ao começar a descer a rampa para confirmar as suas suspeitas acerca do nome do barraqueiro, uma lufada ártica o impeliu para o guichê, instaurando uma neblina espessa no ambiente. Quase que compulsoriamente, foi andando de costas até a entrada da estação.

“Pode descer, é de graça – falou o moço do guichê -; são tão poucas as pessoas que entram e saem dessa estação que a empresa nem faz questão de cobrar a passagem”.

Desceu pelos degraus correndo de frio e pressa, pois a composição vinda da Central do Brasil já exalava o cheiro de borracha queimada dos trens em brusca desaceleração, no intuito de recolher os usuários do transporte ferroviário.

Entrou no trem. Sentou no vagão vazio; socou a própria cabeça. Esquecera-se de averiguar com o bilheteiro o nome do seu novo amigo. Seu auto flagelo foi sucedido de uma vontade imensa de voltar para Macondo e ao vilarejo daquela noite sobre humana. Abriu seu livro, respirou fundo e mergulhou sem medo de voltar atrás. Não chegou a rememorar aquelas pessoas que o impeliram do trem há horas atrás. Mais do que nunca, acreditava nos disparates, na alquimia, na peraltice das estrelas e, sobretudo, no gênero humano. Entre uma página e outra, olhava de esguelha através das janelas do trem, como se quisesse pegar desprevenida a mão da fantasia a carregar a lua argenta, ofuscada pelas nuvens secas e lívidas do inverno.

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