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domingo, 27 de junho de 2010

O sepulcro dos hereges


“Seguimos em direção à cidade, confiantes naquelas palavras santas. Entramos sem encontrar resistência. E eu, que desejava ardentemente ver o que guardavam em seu recinto as muralhas ultrapassadas, tão logo me vi dentro delas, para toda parte dirigi o olhar. E percebi, de cada lado, uma campanha infinda, plena de dores e de penas inacreditáveis.
Assim como o Ródano, em Arles, se transforma em brejo; como em Pola, junto ao Guarnaro que banha a fronteira da Itália, o chão se vê desigual e incerto pela sucessão de túmulos inumeráveis, assim era o lugar por onde passávamos. Mais triste, porém, dado entre os sepulcros serpenteavam chamas dedicadas a manter as tumbas inda mais esbraseadas do que a arte de amoldar requer do ferro. Abertos, os túmulos deixavam escapar gemidos lancinantes”.
-ALIGHIERI. Dante
A divina comédia.

A escuridão sempre esteve presente na imaginação dos seres humanos. Desde o mais obscuro fascínio até o maior dos temores das coisas furtivas dentro de sua densa e negra manta. Contudo, por mais densa a escuridão que seus olhos jamais conseguiriam imaginar, nada é tão escuro quanto o inferno. Tudo é fantasmagoricamente escuro. Negro e apavorante.
O irônico, é que o grande senhor deste lugar veio de um lugar repleto de luz. Aliás, seu próprio nome denota um significado de proveniente da luz.
Porém, por maior temor que esse negrume possa causar, os gritos de dor e desespero que sibilam como os ventos nessa vastidão lúgubre soam como verdadeiras tormentas.
Não contesto a maneira de como vim parar nessa danação eterna, mas me arrependo por estar aqui; arrependo-me demais, e pelos gritos que ecoam em desespero nos meus ouvidos, percebo que todos se arrependem. O tempo não existe neste lugar. Como eu disse anteriormente, só há dor, medo e desespero.
Na época em que o tempo corria, quando eu gozava de uma vida plenamente iluminada, longe de sofrimentos e de um singular conforto, eu ostentava uma soberba igualmente singular. Tinha imensa sabedoria; sabedoria que fora meu ingresso para este lugar. Sempre questionei todas as coisas; coisas que eram óbvias para muitas pessoas. Mas não eram óbvias para mim. Não, o orgulho jamais me deixou assentir e compartilhar das mesmas opiniões de pessoas que sequer sabiam ler. Talvez nunca existiu um dogma que eu não tenha contestado e ridicularizado. Fiz isso ao longo da minha vida, sequer me arrependi, nem em meu leito de morte. O arrependimento veio após a minha partida.
Acredito que não exista uma alma danada que não se arrependa de seus pecados. Principalmente quando se está destinado a passar a eternidade em uma cova que arde em chamas. Eternidade contradizendo o tempo que não existe nesse lugar. A dor nunca é pouca. O estalar de sua pele borbulhando enquanto queima até os ossos se junta ao coro de gritos de dor e desespero. Sua tez derrete como vela, seus ossos queimam até o pó. O cheiro de carne queimada impregna o lugar junto com um suave aroma de morte. Contudo, quando tudo parece que acaba, você percebe que seu corpo está intacto e pronto para queimar novamente. Lembro-me de uma minissérie de Stephen King que assisti em vida, onde dizia- “Inferno é repetição”- Porém, quando não existe tempo, logo também não existe o começo, o meio e o fim. A dor segue incessante.
Por isso, Rogo-te senhor! Se me escutas de algum lugar onde os justos contemplam sua luz, perdoe-me de meus pecados e poupe-me desse sofrimento eterno. – não existe tempo aqui. – Sei que não fiz por onde em vida, mas fui um homem bom na medida do possível, creio humildemente, que mereço seu perdão que me livraria desse castigo perpétuo.
Uma luz brilhou bem acima de mim iluminando toda aquela vastidão. Arquei-me em minha cova que naquele instante não mais ardia. A insuportável dor havia ido. A misteriosa luz permitiu-me ver milhares, não milhões, talvez bilhões de sepulturas ardentes ao meu redor. Os demais danados estendiam suas mãos carbonizando (umas ainda em carne outras só restando os ossos) para a luz. Contudo, apenas meu corpo não mais queimava. A luz trouxe uma paz que nem em vida eu já havia sentido, creio que todos os que ali estavam também não haviam sentido.
A luz se estendeu em duas grandes hastes. As hastes ganharam uma forma conhecida; uma forma de asas. Tudo ganhava forma naquela luz. Rosto, pernas, braços. – Um anjo do senhor! – assenti. A luz já em forma de homem de asas, estendeu a mão para mim dizendo:
-Seu arrependimento, mesmo que tardio lhe salvou.
Pus-me de pé em minha cova. Lágrimas caíam de meus olhos que nunca serviram naquele lugar. Apesar do nunca num lugar onde o tempo não existe ser severamente incoerente. Meu corpo, ou melhor dizendo minha alma, começou a flutuar em direção ao anjo do senhor. Olhei para baixo e aquilo parecia um sítio infinito. As covas eram pontos cintilantes naquele solo. (só era possível enxergar devido à luz emanada do anjo) Toquei a mão daquele ser divino.
Todavia, aquele ser divino apertou minha mão com força. Ergui meu olhar estarrecido para o anjo. A expressão angelical que havia naquela entidade sumira. A expressão se transformara em uma terrivelmente diabólica, vil e intimidadora. Seus olhos me fitaram num misto de desprezo e repugnância.
-Você se acha melhor do que alguém aqui danado? – Inquiriu o anjo com uma voz gutural.
-Como? – Respondi.
E o tal anjo me atirou contra o chão como uma criança atira uma pedra num lago. Caí de volta em minha cova. Ele me olhava com seu olhar acusador e sua expressão conotando crueldade. Ele já não mais emanava paz, muito pelo contrário, emanava terror, medo e desespero.
-Já se esqueceu da primeira coisa que você viu quando entrou aqui?- Inquiriu-me novamente com seu tom severo.
Porém, o meu silêncio provava que realmente eu tinha me esquecido. Entretanto, ele assentiu e jogou-me uma pequena placa de madeira. As memórias que talvez viraram cinzas pelas chamas que ardiam em minha cova, voltaram quando olhei aquela pequena placa de madeira. Tratava-se de uma réplica da imensa placa que há no grande portão do inferno.
Desfaçam aqui de todas as esperanças.
Fitei aquela réplica com olhos incrédulos, enquanto a risada dele ecoava naquele sítio. Subitamente meu sepulcro tornou a arder em chamas. A dor tornou a voltar. O desespero tornou a voltar. Porém, aquele demônio que se travestiu de anjo me tirou a única coisa que eu podia me apegar aqui. A esperança. Tudo ficou escuro novamente.

“Inferno é repetição.”
-KING. Stephen
A tempestade do século.

Um comentário:

  1. Muito bom, Edu! Será que nossas almas vão buscar perdão na hora do fim? Se for desse jeito explicitado por você, pelo menos já sei o que fazer na hora capital.

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