Num tempo estanque, extinto, um cárcere branco; sem ângulos, chão ou teto; sem profundidade. Pode estar suspenso feito um beija-flor ou enterrado feito um defunto. Não há fora nem dentro, só Marcos, sentado na sua escrivaninha, metido em um terno negro, limpo e novo. Escreve; não sabe o que quer, mas rabisca algo que não tem meada, que semanticamente não é nada. Ele sabe disso, mas logo se vê no início de tudo, escrevendo uma carta que sabe que precisa terminar, mas está sempre no começo. Quando volta a si, está sem a sua caneta. Ele a procura sem sair do seu lugar. Segundos depois, a caneta retorna do lívido abismo levitando, até pousar em suas mãos feito uma pena suspensa pelo peso do ar. Mas Marcos não sabe o que escrever; está sempre no início de sua carta sem destinatário. Sabe que a tem escrito desde sempre, entretanto, quando emborca seu tronco para frente, não vê nada; nada além de rabiscos. Força as vistas, coça os olhos e se vê chorando. Suando, Marcos grita, diz que não foi ele que rabiscou aquela casa torta que sempre aparece em sua mesa, simploriamente edificada num pedaço de papel. O suor brota recrudescido; prende a respiração e saca uma folha em branco de uma de suas gavetas. Há sempre folhas ali, enchendo os compartimentos da sua área de trabalho.
Assim Marcos vive. Não há antes nem depois. Quando abre os olhos, está naquele recipiente branco sem memória. Nada antecedeu a sua inexorável vontade de escrever sua carta, tampouco nada estará por vir senão o ânimo de redigir o léxico do nada profundo. E quando pensa em sair incontinente – está resoluto, precisa se levantar e pular naquele branco claustrofóbico, voar feito a caneta-pássaro – aquela infalível serpente empalhada de tinta negra ressurge do desconhecido, força seus punhos cerrados com toda potência do mundo a se abrir e pousa em suas mãos. Sempre que assume o controle da caneta, Marcos se esquece de tudo e volta a escrever sua mensagem. Concentrado, olha para os papéis: estão lá as indefectíveis casas de jardim de infância. Marcos procura pelo menininho que deve ter desenhado aquela edificação. Oito linhas. Não há porta nem janela. Depois de chamar pela criança, Marcos desiste e retorna à sua enevoada carta. Novamente escreve o cabeçalho. Não sabe qual dia é, mas, como se fosse isso irrelevante, inventa uma data e volta às suas palavras polidas, ao texto que flui como um córrego numa encosta íngreme. Quando sente o calor da sua epístola preambular molhar suas axilas e esquentar-lhe as virilhas, Marcos percebe que está outra vez seco e ereto na sua escrivaninha, vendo a caneta ressurgir dos escombros do branco, dobrando as esquinas que não existem, vinda de onde ele precisa se derramar num voo cego e sem garantias.
Na roda-viva da repetição surreal das mesmas situações, Marcos vai criando coragem. Sua ânsia por desvendar o nada começa a se tornar um espectro de prazer. Só de pensar que vai flutuar por toda eternidade distante daquelas casinhas toscas e daquela escrivaninha sempre cheia de solícitos e hipnotizantes papéis em branco, Marcos sente sua pele em brasas. Sua barriga começa a rosnar e os intestinos parecem fazer o barulho de um prédio velho a desfalecer em poeira e aço retorcido. Depois de ir e voltar ao nada, sem a memória do passado ou o imprevisto do futuro, Marcos resolve se jogar. Quando se prepara para se deleitar com a eternidade, o chão o repreende. Não há mais o branco poluindo todas as dimensões, e sim um substrato de tacos corridos, cheirando a pinho.
Quando retoma a consciência, Marcos vê a mesma casa desenhada numa folha de papel ofício. As gavetas permanecem cheias de resmas bem arrumadas. Mas, para além da escrivaninha, há o chão. Marcos olha para baixo e lembra-se que, mesmo sem poder precisar nem datar as suas desventuras transcorridas na inércia cíclica, chocou-se recentemente contra aquela madeira velha. Lembra-se que tentou voar; daí o latejar compassado e manso do seu cotovelo. Pensa em fazer a mesma coisa novamente, mas quando levanta a cabeça para retomar a coragem que perpassou sua mente letárgica com a força de um florete afiado, vê dois quadros. Logo os reconhece: O da esquerda é um Van Gogh; o da direita, uma reluzente foto da sua turma tirada no dia da formatura. Entre dezenas de sorridentes recém-formados, está Marcos, abraçado aos seus colegas. Lembra-se de todos, e em conseqüência disso, das divertidas estórias do final de sua adolescência. Sua pele pega fogo. Quer tirar o terno negro, mas tem que voltar para a carta do dia. Novamente, começa com o cabeçalho. Escolhe uma data qualquer, que logo depois se revela íntima. É o dia de sua colação de grau. Já está no terceiro parágrafo. Nunca tinha escrito tanto. Sempre voltava às casinhas de criança antes de chegar onde está agora. Para de escrever. Quando novamente olha para frente, está em seu escritório. Sente o cheiro dos livros empoeirados na sua estante. No ar, uma música dos Beatles. Lembra de Fatinha, sua mulher. Quer gritar por ela, mas precisa novamente voltar às suas cartas. Surpreende-se ao ver que, dessa vez, não há casinha, e sim uma missiva pela metade, a mesma que precisou interromper anteriormente. Toda vez que levanta sua cabeça para organizar suas ideias, ganham forma lentamente mais itens do seu velho local de trabalho. Vê flutuando no branco um certificado que ganhou ao concluir um curso na Universidade Rural; no chão, seu cachorro Wilson dorme aos seus pés; na escrivaninha, réguas compassos e canetas; à esquerda, sua cestinha de lixo que ganhou da avó no seu aniversário de dezessete anos. Mais um Transe.
Volta do ermo. Marcos não está mais destituído da memória. Se agora não sabe, ainda, em qual dia está, tem a consciência que sentiu num passado, que pode ser de uma era completa como o de um milésimo de segundo, que seu cérebro voltou a funcionar. Guarda as casinhas em uma das gavetas, e a caneta voa novamente. Dessa vez, ele mesmo abre a sua mão esquerda. Sem mostrar a resistência das ocasiões pretéritas, sente a caneta voar mais veloz que nunca - ela quer se render ao seu domínio. Convolutos, mão e caneta escrevem a sequência daquela carta prolixa. Mais cinco parágrafos, e Marcos perde o ar. Sente uma tontura diabólica. Pressente que vai voltar para o branco do esquecimento. Num esforço extraordinário, ergue sua cabeça pesada como uma bala de canhão e revê seu escritório. Dessa vez, tudo está ali, até as paredes amarelas e o lustre que ganhou de uma de suas mais queridas namoradas.
Ao lutar herculeamente contra o olvido convalescido, Marcos deixa sua caneta cair. Reza baixinho com a fé que jamais teve para que não volte a ver aqueles desenhos sem imaginação. Ao ver que sua mente está desperta e sadia feito um novilho selvagem, pensa ter se assegurado que jamais perderá o controle do rumo de suas cartas. Grita; chama pela caneta. Marcos chora; seus pelos estão eriçados e sua nuca eletrificada. Tapa os olhos. Suas lágrimas descem pelas palmas das mãos e escorrem pelos pulsos. Urra, levanta a cabeça, desolado. Seus olhos alagados se abrem e seu coração dispara feito o de um menino atrás de uma bola. É seu irmão Fabrício. Ele se levanta da cadeira, fecha o jornal e põe os óculos na gola da camiseta marrom. Coça a testa e caminha lentamente até o sopé da mesa. Fabrício pega a caneta de Marcos que estava caída no chão e lhe entrega.
“Obrigado, irmão” - Diz Marcos, assim que segura novamente aquela haste de tinta negra.
Fabrício embranquece. Põe os óculos desajeitadamente e segura o braço do irmão exilado com as mãos trêmulas. Olha-o fixamente, como quem quer desmentir a si mesmo frente ao improvável.
“Nossa, Fabrício, o que houve com você, cara? Como você está velho!”
“É – responde chorando o irmão -, o que nove anos arriando para pegar uma caneta do chão não fazem com uma pessoa!
Fabrício abraça o irmão, que ao se despedir de vez do branco, vê-se atado num abraço desmedido, diante da sua velha escrivaninha e de seus desenhos. Dessa vez não são mais casas dementes, e sim seus projetos de engenheiro. Seu terno pomposo deu lugar a uma camiseta branca e uma bermuda fresca. No canto da mesa, a carta; ilegível.
Assim Marcos vive. Não há antes nem depois. Quando abre os olhos, está naquele recipiente branco sem memória. Nada antecedeu a sua inexorável vontade de escrever sua carta, tampouco nada estará por vir senão o ânimo de redigir o léxico do nada profundo. E quando pensa em sair incontinente – está resoluto, precisa se levantar e pular naquele branco claustrofóbico, voar feito a caneta-pássaro – aquela infalível serpente empalhada de tinta negra ressurge do desconhecido, força seus punhos cerrados com toda potência do mundo a se abrir e pousa em suas mãos. Sempre que assume o controle da caneta, Marcos se esquece de tudo e volta a escrever sua mensagem. Concentrado, olha para os papéis: estão lá as indefectíveis casas de jardim de infância. Marcos procura pelo menininho que deve ter desenhado aquela edificação. Oito linhas. Não há porta nem janela. Depois de chamar pela criança, Marcos desiste e retorna à sua enevoada carta. Novamente escreve o cabeçalho. Não sabe qual dia é, mas, como se fosse isso irrelevante, inventa uma data e volta às suas palavras polidas, ao texto que flui como um córrego numa encosta íngreme. Quando sente o calor da sua epístola preambular molhar suas axilas e esquentar-lhe as virilhas, Marcos percebe que está outra vez seco e ereto na sua escrivaninha, vendo a caneta ressurgir dos escombros do branco, dobrando as esquinas que não existem, vinda de onde ele precisa se derramar num voo cego e sem garantias.
Na roda-viva da repetição surreal das mesmas situações, Marcos vai criando coragem. Sua ânsia por desvendar o nada começa a se tornar um espectro de prazer. Só de pensar que vai flutuar por toda eternidade distante daquelas casinhas toscas e daquela escrivaninha sempre cheia de solícitos e hipnotizantes papéis em branco, Marcos sente sua pele em brasas. Sua barriga começa a rosnar e os intestinos parecem fazer o barulho de um prédio velho a desfalecer em poeira e aço retorcido. Depois de ir e voltar ao nada, sem a memória do passado ou o imprevisto do futuro, Marcos resolve se jogar. Quando se prepara para se deleitar com a eternidade, o chão o repreende. Não há mais o branco poluindo todas as dimensões, e sim um substrato de tacos corridos, cheirando a pinho.
Quando retoma a consciência, Marcos vê a mesma casa desenhada numa folha de papel ofício. As gavetas permanecem cheias de resmas bem arrumadas. Mas, para além da escrivaninha, há o chão. Marcos olha para baixo e lembra-se que, mesmo sem poder precisar nem datar as suas desventuras transcorridas na inércia cíclica, chocou-se recentemente contra aquela madeira velha. Lembra-se que tentou voar; daí o latejar compassado e manso do seu cotovelo. Pensa em fazer a mesma coisa novamente, mas quando levanta a cabeça para retomar a coragem que perpassou sua mente letárgica com a força de um florete afiado, vê dois quadros. Logo os reconhece: O da esquerda é um Van Gogh; o da direita, uma reluzente foto da sua turma tirada no dia da formatura. Entre dezenas de sorridentes recém-formados, está Marcos, abraçado aos seus colegas. Lembra-se de todos, e em conseqüência disso, das divertidas estórias do final de sua adolescência. Sua pele pega fogo. Quer tirar o terno negro, mas tem que voltar para a carta do dia. Novamente, começa com o cabeçalho. Escolhe uma data qualquer, que logo depois se revela íntima. É o dia de sua colação de grau. Já está no terceiro parágrafo. Nunca tinha escrito tanto. Sempre voltava às casinhas de criança antes de chegar onde está agora. Para de escrever. Quando novamente olha para frente, está em seu escritório. Sente o cheiro dos livros empoeirados na sua estante. No ar, uma música dos Beatles. Lembra de Fatinha, sua mulher. Quer gritar por ela, mas precisa novamente voltar às suas cartas. Surpreende-se ao ver que, dessa vez, não há casinha, e sim uma missiva pela metade, a mesma que precisou interromper anteriormente. Toda vez que levanta sua cabeça para organizar suas ideias, ganham forma lentamente mais itens do seu velho local de trabalho. Vê flutuando no branco um certificado que ganhou ao concluir um curso na Universidade Rural; no chão, seu cachorro Wilson dorme aos seus pés; na escrivaninha, réguas compassos e canetas; à esquerda, sua cestinha de lixo que ganhou da avó no seu aniversário de dezessete anos. Mais um Transe.
Volta do ermo. Marcos não está mais destituído da memória. Se agora não sabe, ainda, em qual dia está, tem a consciência que sentiu num passado, que pode ser de uma era completa como o de um milésimo de segundo, que seu cérebro voltou a funcionar. Guarda as casinhas em uma das gavetas, e a caneta voa novamente. Dessa vez, ele mesmo abre a sua mão esquerda. Sem mostrar a resistência das ocasiões pretéritas, sente a caneta voar mais veloz que nunca - ela quer se render ao seu domínio. Convolutos, mão e caneta escrevem a sequência daquela carta prolixa. Mais cinco parágrafos, e Marcos perde o ar. Sente uma tontura diabólica. Pressente que vai voltar para o branco do esquecimento. Num esforço extraordinário, ergue sua cabeça pesada como uma bala de canhão e revê seu escritório. Dessa vez, tudo está ali, até as paredes amarelas e o lustre que ganhou de uma de suas mais queridas namoradas.
Ao lutar herculeamente contra o olvido convalescido, Marcos deixa sua caneta cair. Reza baixinho com a fé que jamais teve para que não volte a ver aqueles desenhos sem imaginação. Ao ver que sua mente está desperta e sadia feito um novilho selvagem, pensa ter se assegurado que jamais perderá o controle do rumo de suas cartas. Grita; chama pela caneta. Marcos chora; seus pelos estão eriçados e sua nuca eletrificada. Tapa os olhos. Suas lágrimas descem pelas palmas das mãos e escorrem pelos pulsos. Urra, levanta a cabeça, desolado. Seus olhos alagados se abrem e seu coração dispara feito o de um menino atrás de uma bola. É seu irmão Fabrício. Ele se levanta da cadeira, fecha o jornal e põe os óculos na gola da camiseta marrom. Coça a testa e caminha lentamente até o sopé da mesa. Fabrício pega a caneta de Marcos que estava caída no chão e lhe entrega.
“Obrigado, irmão” - Diz Marcos, assim que segura novamente aquela haste de tinta negra.
Fabrício embranquece. Põe os óculos desajeitadamente e segura o braço do irmão exilado com as mãos trêmulas. Olha-o fixamente, como quem quer desmentir a si mesmo frente ao improvável.
“Nossa, Fabrício, o que houve com você, cara? Como você está velho!”
“É – responde chorando o irmão -, o que nove anos arriando para pegar uma caneta do chão não fazem com uma pessoa!
Fabrício abraça o irmão, que ao se despedir de vez do branco, vê-se atado num abraço desmedido, diante da sua velha escrivaninha e de seus desenhos. Dessa vez não são mais casas dementes, e sim seus projetos de engenheiro. Seu terno pomposo deu lugar a uma camiseta branca e uma bermuda fresca. No canto da mesa, a carta; ilegível.
Genial, a perspectiva da loucura ficou brilhante.
ResponderExcluirEstá ótimo, valeu a pena te dar um dicionário rs.
ResponderExcluirO dicionário e a gramática também, não lembra?
ResponderExcluirVitor, parabéns!!! Lene me passou o link. Muito bom!!! Você iria adorar, tenho certeza, "A História da Loucura", de Michel Foucault. Adoro Foucault, me apaixonei quando li "As palavras e as coisas".
ResponderExcluirAqui vai um link muito legal:
http://www.klepsidra.net/klepsidra12/foucault.html
Vitor, adorei seu texto. Bem intenso e rico. Palavras emblemáticas e pontuais que dão a dimensão da sua qualidade.
ResponderExcluirAchei meio parecido com a literatura de Flávio Carneiro.