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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A bastarda


Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, 1937. Época difícil para a lavoura de uma pequena comunidade isolada às margens do rio Guandu. As fortes chuvas castigaram as plantações por duas semanas levando tudo literalmente por água abaixo e, como se todo castigo fosse pouco, a maioria dos homens estavam em idades avançadas. Fato que dificultava as tentativas de recomeço. Logo, não tiveram outras escolhas a não ser obrigarem as crianças a labutarem desde cedo na tentativa de ao menos tirar o mínimo sustento da terra.
Numa noite parcialmente nublada onde a lua era uma foice amarelada no céu. No dia 17 de janeiro precisamente. Em um quarto de um casebre iluminado por um lampião a querosene, Francisca dava luz a uma criança.
-Uma menina. –Disse a parteira.
Um grupo de pessoas aguardavam ansiosas ao lado de fora do casebre. Ansiedade que fora triplicada quando a parteira surgira diante deles segurando o lampião que delineava sua face enrugada e bronzeada em sombras obscuras. A expressão dela era severa.
-É uma menina. – Anunciou.
Houve cochichos entre o grupo de pessoas. O marido de Francisca, Adílio, não conseguiu conter a sua frustração ao ouvir aquela anunciação. Adentrou no escuro casebre indo ao encontro de sua esposa enquanto as pessoas cochichavam o quão azarado era aquele casal.
Francisca amamentava a criança enquanto Adílio a olhava desconsolado. O cricri dos grilos e o coaxar dos anfíbios se intrometiam naquele silêncio mórbido.
-Não deve desperdiçar o leite com ela, mulher. Meninas não conseguem ajudar na lavoura e já temos muitos velhos que não conseguirão dar conta do serviço.
Francisca arregalou os olhos, pois para ela, seu marido não teria coragem de cometer tal ato, contudo, o semblante dele exprimia convicção.
Com a decadência da lavoura daquela comunidade a beira do rio Guandu, os moradores convencionaram que filha mulher só seria prejudicial naquele momento de crise, pois a colheita era escassa, uma menina não resistiria aos duros trabalhos braçais que aquelas adversidades exigiam, logo era mais vantajoso ter um filho homem sob esses aspectos.
- É melhor do que vê-la morrer de fome – rosnou Adílio contemporizando – pela manhã resolveremos isso. Agora descanse que a tarde teremos muito trabalho a fazer, creio que virá mais chuvas durante esse mês.

O dia amanhecera nebuloso. Havia uma tímida névoa cobrindo os campos. As folhas das árvores estavam úmidas pelo orvalho da madrugada.
Maria bebera um copo de leite antes de se dirigir a casa de Adílio e Francisca. Caminhara por entre as brumas do campo enlameando a sua surrada e humilde sandália. Adílio a esperava na porta de seu casebre com sua filha embalada em um esquálido pano marrom. Havia um cigarro de palha no canto de sua boca. Ao avistar Maria se aproximando, ele precipitou-se para a pequena varandinha.
-Minha mãe disse que conversou ontem com o senhor.
Adílio meneou afirmativamente a cabeça sem tirar a expressão severa do rosto.
- Afogue essa pobre alma no rio para que as próximas possam ter a mesma sorte que você teve, Maria. –Ele entregou o bebê a jovem maltrapida menina que estava diante de si – Espero você daqui a pouco lá na horta.
Maria segurava o bebê às margens do Guandu. Em sua inocente mente de 12 anos de idade, não houvera questionamentos para o que ela estava prestes a fazer. Questionamentos que surgiriam anos depois. Para aquela gente, a morte não era uma coisa pior que a fome. A água estava gelada naquela manhã. Maria fitou a indefesa criança antes de deixá-la cair no rio.

Damião encontrava-se sobre uma enorme rocha que desafiava o rio. Fazia os últimos preparativos para arremessar sua tarrafa no Guandu quando avistou algo estranho sendo levado pela correnteza. Sua visão já não mais era aguçada como há 7 anos, apesar disso, o velho pescador pôde notar algo hediondo naquele momento.
Damião deixou a tarrafa sobre a rocha e cautelosamente fora até a coisa à deriva no Guandu. Naquele ponto a correnteza não era forte, mas qualquer descuido poderia ser fatal. Lentamente ele se aproximava daquele pedaço de estopa marrom presa em um galho que despencara de uma árvore marginal do Guandu. A água batia no peito de Damião. Ao tomar aquele pedaço esquálido de tecido em mãos, o pescador pôde confirmar o que de longe seus olhos haviam suspeitado. Uma criança! Uma criança que por um milagre divino não se afogara e não morrera de hipotermia ou de outra maneira mais provável que a própria sobrevivência.
-Santa Maria Mãe de Deus!

Se acha que essa criança teve uma vida digna sob os cuidados de um pescador que a tratou com sua autêntica filha, engana-se. O ato misericordioso de Damião paulatinamente havia se tornado um fardo cujo ele não gostaria de carregar sobre seus ombros.  A menina dera muito trabalho quando era bebê, porém daria mais com o passar dos anos e já dava naquela primavera de 1949. Damião jamais tivera uma esposa e jamais imaginara que Deus colocaria mais uma boca além da sua para ser sustentada em sua vida. Numa ensolarada tarde de quinta, os dois comiam as últimas gramas de feijão que havia na dispensa do casebre de madeira de um único cômodo em que moravam. Os tempos permaneciam difíceis, principalmente para o pescado, e Damião passara a ter bastantes concorrentes nas feiras em que vendia seus peixes. Diante daquele silêncio, a menina feliz pela refeição o surpreendeu com um questionamento que poderia emocionar qualquer pessoa...
-Posso te chamar de pai?
... Exceto Damião.
-Não, já disse que não sou o seu pai. Te encontrei boiando no rio.
A menina se estremeceu com as rudes palavras de Damião. Embora soubesse o seu passado, aquela rejeição de uma figura cujo ela via uma paternidade, fizera seus sofridos olhos marejarem.
-Depois do almoço, lave os pratos e vá regar a horta. – Ordenou Damião antes de se levantar da pequena mesa de madeira e sair para só voltar à noite.
Como já não bastasse uma vida sofrida desde o seu nascimento, a jovem rejeitada também tivera que conviver com um homem violento. Por inúmeras vezes sentira o peso das mãos dele contra seu frágil corpo. Mãos que fediam a entranhas de peixe. Quando o cheiro de pinga emanava daquele homem, ela temia.
Em dias de feira, Damião sempre tomava suas pingas para tirar um pouco do peso do mundo de suas costas. Todavia, quando a venda não era boa nem na semana santa, ele bebia para esquecer. Esquecer de seu fracasso e esquecer de uma intrusa em sua vida que ele tinha de alimentar.  Voltava para casa quando a estrela d’alva já despontava no céu. Cambaleando pelas ruas ora de barro ora de paralelepípedos. Carregando uma pequena carrocinha com o pescado não vendido simbolizando o seu fracasso.
A menina o aguardava ansiosa. Por poucas vezes, Damião lhe trazia doces e outras guloseimas. Certo dia, após o natal de 45, ele a presenteara com uma boneca de trapos. Apesar de toda aquela simplicidade, fora o maior presente que já recebera. Aquela boneca feita a trapos, com um rude pano vermelho formando um vestidinho. Com dois botões que formavam os olhos. E, com sua boca formada por um pequeno retalho interpretando um sorriso. Aquela bonequinha lhe trouxera uma dignidade diante de tantos maus tratos. Porém, aquele 28 de dezembro de 1945 fora apenas um extraordinário fato em sua vida. Damião jamais estivera com aquele humor desde então. Contudo, ela sempre o aguardava com olhos esperançosos.
Ao fitar o homem que salvara a sua vida chegar cambaleando pela embriaguez, ela temeu. E seu temor fora totalmente justificado, pois naquele dia Damião a espancou como se ela fosse a grande culpada por todos os revéis que ocorriam em sua vida. A menina ficara 4 dias sem poder andar e Damião chegou a imaginar que ela jamais tornaria a andar depois daquilo. Ficara com o corpo repleto de equimoses. A jovem maltrapida sequer teve forças para comer durante aqueles dias.

Você, amigo leitor, deve estar imaginando no como essa desventurada jovem sofrera em tão curto período de tempo. Todavia, a vida havia lhe preparado uma surpresa nada agradável. Em 1952, a menina deixara de ser menina tornando-se uma mocinha. Foram mudanças difíceis de serem assimiladas. Pêlos em certas partes do corpo, crescimento de outras e a apavorante menstruarão. Em sua funesta inocência, ela assentira que aquele sangramento seria oriundo de uma das sessões de espancamentos que Damião havia lhe proporcionado. Porém, aquilo vinha todos os meses e o seu tutor, digamos assim, a explicou à sua maneira. Não obstante, de longe essas mudanças foram seu maior problema.
Damião jamais fora um homem atraente em sua juventude nas fazendas do interior de Minas Gerais. Tampouco seria agora quando atingira uma idade considerável e as rugas tomavam conta de sua face. Não lembrava a última vez que tivera uma mulher ao seu lado. A última talvez tivesse sido uma meretriz barata de beira de estrada. Contudo, apesar da idade, ainda existia um fogo mesmo que tímido em seu interior. E a moça se tornara mulher, mesmo que forçada aquilo. Mesmo não compreendendo o porquê. Só compreendia que aquilo teria que ter um fim. Custasse o que custasse aquilo teria que ter um fim.
Em 1953, Damião viajara para Minas a fim de visitar um primo doente. Teria que vê-lo uma última vez, afinal aquele primo seria consumido por completo por uma doença que muitos até então desconheciam. Foram as melhores duas semanas que ela passara naquele casebre. Contudo, a vida não estava disposta a lhe dar trégua. Sentada na rede acariciando a sua surrada bonequinha de trapos, pôde ver Damião surgindo ao fundo da estradinha de barro.
A moça fitou aquele homem carregando uma maleta com resignação. À medida que ele se aproximava, um sentimento iracundo ia atormentando-a. Um sentimento que ela jamais sentira antes. Olhando aquele homem se aproximando, todos os maus tratos surgiam-lhe em uma clarividência. Aquelas duas semanas fizeram a jovem mulher a assentir que aquilo nunca deveria ter ocorrido. E ela, decididamente estava disposta a mudanças.
Damião parou diante dele e a fitou com olhos ardentes. Ela tentou dar de ombros, mas aquele olhar libidinoso intimidava qualquer possibilidade de ignorar tal situação. Ficara nervosa e sem perceber, retesava a boneca de trapos estrangulando-a. Damião estendeu a mão para acariciá-la. Não uma carícia fraternal, absolutamente não. Era uma carícia maliciosa que uma pessoa faz quando transborda em ardor.
-Sentiu a minha falta?
Ela não respondeu, apenas abaixou a cabeça desviando os olhos dele dos seus.
-Eu sei que sentiu. – Insistia ele audaciosamente.
A moça pôde sentir um singelo cheiro de pinga exalando do hálito de Damião. Embora ele não aparentasse nenhum sinal de embriaguez, o pouco que bebera seria o suficiente para transformar a vida dela num inferno.
A moça não reprimiu seu ímpeto repugnante para com Damião, e num movimento brusco, tirou a mão que lhe acariciava de seu rosto.
Damião irritou-se. A mão que antes acariciava agora agredia. Esbofeteou a face dela com um potente tapa que estalou fazendo o rosto dela corar e seus emaranhados cabelos chacoalharem.
-Ingrata! Se eu soubesse deixava os peixes comerem você! Se eu soubesse eu afogava você!
Ela o olhou com os olhos estreitados. Encarava-o febrilmente. Damião não gostava daquele olhar. Ela sabia que ele não estava gostando, porém o afrontava. Os punhos do pescador se fecharam, as veias do antebraço ficaram sobressaltadas e os nós dos dedos esbranquiçados.
-Não me olhe desse jeito se não quer que eu arranque esses olhos!
Ela ignorou aquela frase imperativa num ato desafiador.
Damião precipitou-se para socá-la, porém, ela sequer piscou, ao contrário, seus olhos desafiadoramente se arregalaram quando o punho dele se aproximava de seu rosto.
A mão dele parou a centímetros do rosto dela. Damião sentiu-se incapacitado de agredi-la ante aquele olhar. Recolheu o seu braço e praguejou antes de entrar no casebre e sair sem destino.
Já era noite e ela estava decidida. Damião chegaria a qualquer momento impregnando todo o lugar com o forte aroma de pinga.  Seria a última vez que ele sentiria aquele cheiro naquela casinha de madeira. A moça havia preparado uma pequena trouxa contendo seus poucos pertences. Esperava o retorno de Damião para se despedir. Lamentava não saber ler e escrever, pois não mais gostaria de estar frente a frente com aquele sujeito. Um simples bilhete resolveria a questão. Em sua trouxa, a sua velha boneca de trapos e uma revista cujo achara boiando nas margens do Guandu.  A revista que ela pusera para secar durante dois dias lhe mostrou que havia um grande mundo além das margens daquele rio. Aquilo tivera uma leve influência em sua decisão. A moça já havia assimilado um espírito indomado e desbravador.
Damião finalmente chegara e como era esperado, bêbado e violento.
-O que significa essa trouxa? – Perguntou ele com a voz trêmula pela embriaguez.
-Estou indo embora. – Respondeu ela sem a convicção que demonstrara mais cedo.
Damião jamais pensara ouvir algo tão deveras absurdo e assombroso vindo da boca dela.
-Ora, mas não fale asneiras, sua ingrata!
Ela não respondeu. Abaixou a cabeça enquanto ouvia os insultos de Damião. Poderia se sentir desejada, porém não era o caso. Sabia que o que Damião desejava estava entre as suas pernas, ela poderia ser funestamente inocente, contudo sabia que não poderia viver como um objeto sexual de um velho repugnante como Damião.
-Estou indo. –Ela murmurou.
Todavia, a vida havia de dificultar como sempre dificultou.
Damião agarrou o braço dela com força apertando até que seus dedos ficassem marcados.
-Me solte! – Ela gritou tentando se desvencilhar de suas repugnantes garras.
Damião a atingiu com as costas de sua mão jogando-a no chão. Ela caiu junto à cama, e naquela perspectiva, seus olhos puderam visualizar uma coisa sob a cama que mudaria a vida de todos.

Desde que saíra de Minas Gerais em 1929, Damião perambulou por muitos lugares antes de se estabelecer às margens do rio Guandu. Passara por inúmeras dificuldades inclusive a fome. Tivera que se desfazer de muitos pertences, alguns de grande valor financeiro e sentimental, tal como um colar foleado a ouro que fora herança de sua mãe e um par de alianças também foleadas a ouro que ele teoricamente deveria usar em seu casamento. Porém, existia uma coisa que Damião seria incapaz de se desfazer não sabendo por que cargas d’águas. Uma coisa que ele preferiria ceder um braço para mantê-la em seus domínios. Uma carabina que ao longo de sua vida desde a sua fabricação, só fora utilizada umas 3 ou 4 vezes.

Ela olhava para a carabina como olhos vítreos. Damião a pisava e a insultava.
-Eu vou te matar sua ingrata!
Ela esticou o braço levando-o para baixo da cama. Tencionava pegar aquela arma e por um momento, duvidou que fosse conseguir.
Damião estava bêbado demais para assimilar a intenção daquela moça que ele agredia. Só iria descobrir da pior maneira possível.
Ela alcançou a carabina e puxou-a um pouco para perto de si com a ponta dos dedos. A arma já estava numa posição onde ela poderia agarrá-la. E assim o fez. Damião pisou em sua cabeça e ela bateu com a testa no chão, contudo, esta ação fora suficiente para que perdesse o equilíbrio que já não era dos melhores. Ele se irritara demais ao cair e é claro, culparia aquela moça cujo salvara há 16 anos. O pescador se levantaria e a espancaria até quase matá-la. Porém, a vida colocaria seu destino nas mãos dela.
Quando Damião perdera o equilíbrio e caíra de costas no chão, ela aquiescera que era o momento ideal para reagir. Agarrou a carabina com firmeza e puxou-a de sob a cama pondo-se lepidamente de pé.
Com bastantes dificuldades em se levantar, Damião fazia movimentos bruscos tentando pôr-se de pé. Não obstante, ficou paralisado ao ver a carabina apontada para ele. Por um momento, seu bronzeado tom de pele se empalideceu. Aquele olhar desafiador estava de volta no semblante dela.
Embora a expressão de Damião denotasse um pavor ante a mira da carabina, suas palavras eram a antítese de todo aquele semblante.
-Você não teria coragem – rosnou ele – sequer saberia como atirar.
Ela desviou a mira dele por um curto instante e disparou provando-o que de fato sabia como atirar. O tiro causou um imenso buraco na parede de madeira do casebre em que viviam. Por pouco não havia destruído o pequeno altar com a imagem de Santo Expedito e algumas velas já bastante consumidas.
Damião se assombrou com o disparo. O cano da carabina ainda fumegava quando ela novamente apontou-a para ele. Todavia, o velho pescador dera de ombros e aos poucos fora se levantando sem nenhum temor mesmo sob a mira da arma.
A voz dele subitamente se tornou fria e sóbria. Disse:
-Se quiser pode atirar a vontade, mas jamais se esqueça daqueles que a jogaram no rio. Se quiser me amaldiçoar tem todo o direito, mas amaldiçoe aqueles que jogaram você fora como um saco de lixo.
A moça sentiu aquelas palavras como sentiria um potente soco nas costelas que já recebera em ocasiões anteriores. Ela aquiesceu que todo aquele sofrimento começou quando a descartaram de sua família biológica há 16 anos. Detestava admitir, mas Damião tinha razão. Amaldiçoe aqueles que jogaram você fora como um saco de lixo. Amaldiçoe aqueles que jogaram você fora como um saco de lixo. Amaldiçoe aqueles que jogaram você fora como um saco de lixo. Amaldiçoe...
A carabina parecia que ficava pesada nas mãos dela. Diante de toda aquela situação, ela sentia-se confusa. A arma pendia para baixo tirando Damião da alça de mira. O olhar dela aos poucos ia ficando ausente.
-Você deveria ter o mínimo de gratidão. Eu salvei a sua vida. Eu te alimentei. Eu te Vesti. – Damião falava como se realmente fosse um pai para ela. Pai que ele nunca fizera questão de ser.
Os dedos dela se afrouxaram e a carabina estaria a instante de cair de suas mãos. Será que apesar de tudo, eu ainda devo a ele? Ela se perguntava. Eu ainda devo a ele? Jogaram você fora como um saco de lixo.
Damião precipitou-se avidamente em direção da moça.
Os dedos que antes estavam frouxos e hesitantes ganharam confiança e se apertaram na carabina. Os olhos que estavam ausentes ganharam vidas novamente. Tudo acontecia tão lento e tão rápido num sinuoso paradoxo.
Damião agarrou a extremidade da arma e não encontraria dificuldades para tomá-la. Contudo, um estampido rimbombou naquele casebre às margens do rio Guandu.
Damião tinha os olhos arregalados. Seus lábios tremiam como se ele estivesse sentindo muito frio. A mão direita ainda segurava a extremidade da carabina. A mão esquerda se ergueu diante de seus olhos. Mão que estava manchada de sangue. Manchada com seu próprio sangue.
 Os olhos dela estavam aterrorizados. O corpo dela estava trêmulo como se também estivesse sentindo muito frio. Ela havia puxado o gatilho. Não por maldade. Puxara o gatilho por puro medo. Puxara o gatilho num gesto de auto-reflexo.
Lentamente, Damião ia esmorecendo-se diante dela. O sangue já escorria pelos cantos de seus lábios. Tentara dizer algo, porém sua voz não passou de um ruído esganiçado. Caíra de joelhos e abraçara as pernas dela. Encostara sua cabeça na altura do ventre da moça como uma criança buscando proteção nos braços da mãe, e naquela posição permaneceu até seu último suspiro.

Naquela noite de 14 de outubro de 1953, caíra uma chuva torrencial com pingos grossos e gélidos. Alguns granizos ameaçaram a cair do céu, porém foram reles ameaças. Sob aquela implacável tormenta, ela cavava. Estava ensopada e imunda. Seus cabelos eram um emaranhado de lama. Seus olhos estavam vermelhos. Ela chorava. Matara o homem que lhe dera abrigo, comida e vestimentas. Matara o homem que poderia ter a deixado morrer afogada e não o fez. Acima de tudo, matara sua única família, mesmo que Damião jamais admitisse isso, era sua única família.
A lua surgia por entre as nuvens quando ela jogara a última pá de terra no túmulo de Damião. Ajoelhou para rezar, mas ele jamais a ensinara a rezar. Apenas entrelaçou os dedos e manteve-se em 5 minutos de total silêncio. Caminhara sem destino, não levava mais a trouxa de roupas, levava apenas a carabina. Estava confusa. Em tão pouca idade, experimentara todos os sentimentos, desde os quase prazerosos até os mais mórbidos. Em toda sua confusão mental, apenas uma frase era clara. Amaldiçoe aqueles que jogaram você no rio como um saco de lixo.

O 15 de outubro amanhecera sob um tímido sol primaveril. Maria já não era mais aquela adolescente daquele pobre comunidade às margens do rio Guandu. Era uma mulher pouco servil e doentia. Isolava-se dentro da capelinha do vilarejo onde há 7 anos desde a morte do padre Carlos não era rezada uma missa. Maria passava 8 horas do dia lá dentro. Não conseguia dormir. Por mais incrível que possa parecer, a fé lhe trouxera desconforto e perturbações. A dor da culpa.

-Eu nasci aqui!? – Murmurou uma jovem moça.
De alguma maneira, ela assentira que aquele vilarejo era a sua “terra natal”. Caminhara sem se importar com o que iriam pensar de vê-la com uma carabina em mãos. Embora o lugar aparentasse ser uma cidadezinha fantasma; todos estariam labutando na lavoura e só retornariam ao cair do crepúsculo. Olhando para cada casebre do local, ela imaginou no como seria diferente se tivesse a oportunidade de viver ali. Ao passar defronte a capelinha, pôde escutar um murmúrio vindo de lá e a moça decidiu entrar.
Maria fazia suas fervorosas preces quando a portinha da capela rangeu em suas já enferrujadas dobradiças. O sol da primavera iluminou a escuridão e a brisa apagou a vela localizada no altar onde o padre Carlos consagrava o vinho em sangue e o pão em carne. Maria olhou por cima dos ombros em direção a entrada da capelinha. Seus olhos se arregalaram num ambíguo misto de perplexidade e contemplação. Diante de seus olhos, uma figura não tão alta e não tão pequena segurando uma arma que fazia um conta-senso devido à sua altura (arma que não assustava Maria). Sua silhueta era delineada pelos raios do sol primaveril. Quando os olhos de Maria se adaptaram a iluminação vinda de fora, pôde visualizar melhor aquela moça esquálida com traços já marcando seu rosto desde nova.
A moça olhava Maria com olhos resignados. Ameaçou dar um passo a frente, mas hesitou. Havia um odor acre impregnado na capelinha. Aquela mulher a olhava como se ela a estivesse esperando por muito tempo. Houve um curto período de estagnação. Maria que estava de joelhos pôs-se de pé. A moça não mais hesitou e entrou na capelinha.
Os lábios de Maria estavam trêmulos e a cada passo que aquela figura avança em sua direção, sua pele ia empalidecendo. Seus olhos iam marejando-se. A cada centímetro que aquela moça armada com uma carabina crescia em seu campo de visão, cada vez mais Maria poderia observar o quanto ela havia sofrido naquela vida devido às cicatrizes e as equimoses em seu rosto, braços e pernas.  Maria caiu de joelhos aos prantos diante daquela moça. Sua cabeça se inclinou até os pés sujos de lama dela. Agarrou os tornozelos da esquálida mulher e a cena se assemelhou a Maria Madalena lavando os pés de Jesus com suas lágrimas e enxugando-os com os cabelos.
A moça observava aquela cena num misto de perplexidade e resignação. De alguma forma assentiu que aquela mulher chorando a seus pés havia participado diretamente da mudança de sua vida.
-Me perdoe pelo o que fiz – dizia Maria com a voz trêmula pelo choro. – eu não tinha noção... Nossa senhora me mostrou como uma vida é valiosa e eu... Deus do céu, você não sabe o quanto eu esperei para pedir perdão por tudo que fiz a vocês.
As mãos de Maria iam subindo pelas pernas daquela moça armada.
-Não consigo dormir mais... Todas as vezes que eu fecho os meus olhos eu as escuto chorar. Eu não sabia o que eu estava fazendo. Se você me perdoar eu terei um pouco de conforto. Perdoe-me, não me mate!
As mãos dela já acariciavam o ventre da moça mesmo com a carabina estacionada naquela altura.
-Não me mate, por favor, não posso morrer com essa culpa na alma. Não entrarei no reino do céu se não tiver o perdão das almas daquelas crianças. Você vai ser mãe, posso perceber acariciando a sua barriga. Eu não quero cair no fogo do inferno.
Pela primeira vez em sua vida, aquela moça maltratada pela vida sentira pena de outrem. Antes só conhecia a auto piedade, porém agora havia uma nova coisa que a fez estremecer-se.
-Foram os velhos que me obrigaram a fazer aquilo. Eram tempos difíceis – Maria se abraçou ao ventre da moça que tivera que levantar a carabina para que ela completasse o abraço – eu posso ouvir o coraçãozinho dele batendo. É um presente de Deus para você. Vai ser uma boa mãe.
A grávida armada se afastou de Maria abruptamente. Naquele momento sua vida teria de seguir por outra perspectiva. Por mais que ela não fizesse ideia de como uma criança nascia, sabia das dificuldades que era alimentá-la.
Ao vê-la tomar uma meia distância de si, Maria imaginou que ela iria atirar.
-Oh não, por favor, aqui é a casa de Deus!
Maria se inclinou para frente num gesto de assalamaleico. E naquela posição permaneceu esperando ouvir o estampido da carabina que poria fim a sua doentia vida. Porém, o que ela escutara fora a portinha da capelinha rangendo em suas enferrujadas dobradiças novamente.
Maria agradecia aos céus por estar viva. No entanto, se pudesse adivinhar o futuro, pediria para que aquela moça apertasse o gatilho num benevolente ato misericordioso. Maria passou o resto da vida em busca de paz de espirito e em busca do perdão das almas que ela mandara para o limbo. Porém, os pesadelos jamais cessaram. Sucumbiu a loucura e definhou até morrer 15 anos depois.
Os moradores daquela pequena comunidade à beira do rio jamais tomaram conhecimento daquela visita que surgiu como um espectro vingativo. A vida deles manteve-se na ordinária monotonia do local. Os tempos não eram tão difíceis e nenhuma outra menina recém-nascida fora jogada ao Guandu por eles.

A moça desistira de explorar o convidativo e colorido mundo além das margens do rio. Voltara ao velho casebre onde passara boa parte de sua vida. A gravidez lhe fora um grande empecilho. Não compreendia o porquê. Porém a vida já havia lhe provado que ela não tinha que compreender. Tinha que aceitar e resistir.
Da mesma maneira que ela sobrevivera quando a jogaram no Guandu, só Deus sabia como ela conseguira dar a luz aquela criança sozinha e isolada. A dor fora algo que ela jamais gostaria de experimentar novamente e jamais tornou a experimentar. Instintivamente ela o amamentou, porém sabia que o leite não duraria para sempre. Como iria alimentá-lo? Como iria vesti-lo? Diante daquele dilema, ela não se viu com muitas escolhas e compreendeu o espírito da coisa.
Ela tinha sua criança embalada em um esquálido tecido marrom. A criança chorava e ela a aninava. O sol refletia-se nas águas do rio, era uma linda manhã de fim de outono. A criança parara de chorar e a moça a entregou para que o Guandu selasse o destino dela assim como selou o seu.

sábado, 4 de setembro de 2010

A prova de redação


O QUE VOCÊ VAI SER QUANDO CRESCER?
Esse era o tema da prova de redação que a professora do sétimo ano do colégio Santo Expedito aplicara aos alunos.
Paulinho quando se deu conta de si após um momento de dislexia, já havia assinado o nome e sequer escrevera o título da redação. Teria de se apressar para entregá-la a tempo.

Victor Hugo dos Santos beijara suas duas filhas, Juliana de 7 anos e Juliene de 5antes de sair. Sua esposa escovava os dentes no banheiro e seu cabelo ainda estava despenteado.
-Tchau, Roberta. – Disse antes de cruzar a porta de sua casa. Antes de fechá-la, ele olhou por cima dos ombros as filhas na mesa da cozinha comendo o tradicional cereal com leite quente. Um pequeno sorriso se formou no canto de seus lábios. Quando sua esposa postou-se para fora do banheiro a fim de se despedir, ele já havia ido.

Victor ligou o rádio do carro sintonizando-o na rádio CBN. O trânsito fluía em sua ordinária lentidão das 7h20 da manhã. Ouvia as notícias com certa resignação; nada de trágico acontecia. Nenhuma enchente. Nenhuma bala perdida em uma sala de aula. Nenhum desmoronamento em um dos morros do Rio de Janeiro deixando centenas de mortos e desabrigados. Maldita catarse. Ele pensou. Era uma típica manhã de quinta feira onde as pessoas acordam com os jogos da rodada de quarta ainda na cabeça.
Trinta minutos depois, dobrou uma direita entrando numa rua semi-deserta flanqueada por um denso matagal. Ao fim dessa rua, havia um prédio abandonado que sequer chegara a ter os esqueletos de seus alicerces coberto.
Estacionou o carro defronte ao prédio que passaria eternidades inacabadas, e, sob um compartimento secreto embaixo do banco do motorista, pegou uma pistola .9mm.  Victor colocou-a sob seu blusão branco de manga longa. Suspirou e adentrou no pátio da construção onde 3 homens o aguardavam. Seu semblante não demonstrava inquietação.
Um corvo passou grasnando e pousou sobre uma placa corroída pelo tempo. Nela tinha a imagem de como seria aquele esqueleto de prédio com os seguintes dizeres: CONDOMÍNIO BOSQUE DAS PALMEIRAS. O MELHOR LUGAR PARA SUA FAMÍLIA. O pássaro fitava os homens. Sinto cheiro de morte, sinto cheiro de um banquete.
Victor Hugo parou em uma boa distância dos homens que o aguardavam.
-Vindo aqui vejo que tem colhões, Victor, ou devo chama-lo pelo seu verdadeiro nome? –Ironizou o homem do meio. Um sujeito gordo com os cabelos ralos que cairiam dentro de 3 ou 4 anos.
-Pena que não posso dizer o mesmo de seu irmão, Bola.- Respondeu Victor.
Ao lado direito de Bola, um sujeito com olhos ávidos e com um corpo muito magro. O fuzil que ele carregava deveria ser mais pesado que sua própria massa corporal. Ao lado esquerdo, um negro alto e esguio com uma enorme cicatriz de queimadura no pescoço. Havia uma pistola propositalmente a amostra fixada em sua cintura. Não obstante, Victor não se aparentava intimidado.
-Quando você deixou de dar valor a sua vida, Victor?
-Como?
-Bem, pelo que posso ver, não trouxe o nosso dinheiro. Não sei você, mas eu encararia isso como um ato negligente para consigo mesmo, não acha?
-Negligente – repetiu Victor com um tom sarcástico em sua voz – andou lendo o dicionário, Bola?
-Suas palavras não me ofendem mais, Victor. Já se foi o tempo que você conseguia abalar minhas estruturas com elas. Porém, creio que essa sua boca se calará para sempre, a não ser é claro, que o dinheiro esteja em seu carro e você está tentando nos pregar uma perigosa pegadinha. Perigosa para você é claro.
-Quantas vezes terei que repetir ao seu irmão que não o devo mais nada.
-Bem – respondia Bola com uma expressão irônica – ele não acha isso e quer a grana a qualquer custo.
Victor sorriu devolvendo-lhe a ironia.
-Admito que admiro a sua frieza. Sorrir assim diante da morte. – Bola falou.
Victor replicou:
-Obrigado pela admiração, mas discordo que irei morrer...
Com uma agilidade digna de um pistoleiro dos filmes da faroeste, Victor sacou a pistola .9mm e disparou sem sequer tirá-la debaixo de seu blusão. Meteu uma bala no peito do magro com olhos ávidos. O projétil atravessou seu esquálido corpo como se atravessasse uma tênue folha de papel. Caíra com os olhos arregalados fazendo um ruído oco sobre as britas e cascalhos que pavimentavam o pátio daquela construção. Disparou duas vezes contra Bola acertando-o no peito e na barriga. O gordo quase calvo caiu agonizante e incrédulo com a agilidade de Victor. O negro alto fora alvejado 4 vezes, sua mão direita estava prestes a sacar a sua pistola, contudo, jamais seria mais rápido do que Victor. Caíra sobre a brita e seu corpo tremeu em 3 movimentos espasmódicos antes de ficar inerte para sempre.
-... Afinal, você é que irão morrer.
O corvo se assustou com os disparos, voou e bramiu um agudo grasnar.
-Você cometeu o pior de seu erros, Victor – dizia o agonizante Bola. O sangue lhe saia pelas orelhas e pelos cantos dos lábios. – Vai pagar muito caro por isso.  Toda sua família irá pagar.
O quente vento do inferno soprou carregando a alma de Bola para lá. Um dia carregaria a alma de Victor e ele sabia disso. Porém, pela primeira vez naquela quinta feira, a preocupação passou a assolá-lo.

Ele voltava para casa. O velocímetro beirava os 90km/h. Ligava desesperadamente para a esposa, contudo, o desespero se intensificou quando o telefone caía na secretária eletrônica e o celular de sua esposa tocava no porta-luvas de seu carro.
-Que merda! – Ele gritou.
Embora houvesse deixado o recado na secretária após ouvir a simpática voz de sua filha Juliana.
-Roberta, Tranque as portas, arrume as crianças que vamos sair daqui e pelo amor de Deus, não atenda ninguém, entendeu? Ninguém!
Um funesto sentimento de que era tarde demais rondava sua mente. Era um pensamento que tentava manter longe, mas ele sempre voltava como um cão vadio.

-Roberta!- Gritou Victor adentrando às pressas em sua própria casa. O lugar parecia que tinha abrigado um furacão de categoria F5. Tudo estava revirado. Meu Deus, não! Ele pensou. O que Victor Hugo mais temia estava se revelando bem diante de seus olhos, porém, o pior ainda estava por vir.
Victor caminhou até a cozinha igualmente destruída e lá viu algo que fez suas pernas perderem toda a sustentação. Caíra de joelhos com a expressão numa ambiguidade de horror e perplexidade. Roberta estava caída com uma enorme faca cravada em seu peito. O sangue empapava todo o vestido e o líquido rubro corria pelo rejunte do piso. O gato das crianças lambia o sangue em um ato de total curiosidade.
-Não!- Berrou Victor em desespero. Naquele momento, ele se esquecera das próprias filhas. – Desgraçados!
Entretanto, havia um bilhete colado na geladeira. Bilhete que não estava lá quando ele saiu e que lhe fez retomar a realidade de que tinha duas filhas em algum lugar. Tomou forças para se levantar e apanhar o bilhete.
SE QUISER AS MENINAS VIVAS, VENHA À MINHA MANSÃO.
PS: NÃO FAÇO QUESTÃO MAIS DO DINHEIRO.
DE SEU VELHO COMPANHEIRO:
Lindomar.

Victor dirigia até a mansão de Lindomar. Seu semblante era totalmente contorcido pela dor e pelo ódio que sentira. Conjecturou que um capanga dele estivera observando-os escondido no prédio inacabado, e quando ele despachou Bola e seus comparsas, este teria avisado aos outros homens. De fato, fora realmente isso o que havia acontecido.
Ao chegar à mansão de Lindomar, os funcionários da portaria abriram-lhe o portão sem fazer nenhuma objeção, nenhum questionamento, sem lhe dirigir nenhum olhar. Victor queria matar cada funcionário de seu velho companheiro. Sim, ele considerou essa hipótese dezenas de vezes enquanto dirigia para lá, porém sabia que só pioraria as coisas, afinal, a vida de suas filhas estava em risco.
Parou diante da mansão após fazer um pequeno contorno sobre um bela fonte com chafariz. Uns homens em seus impecáveis ternos pretos com os rostos ocultados por enormes óculos escuros o observavam. Contudo, Victor sequer tomou conhecimento, subiu as escadas com a .9mm sob o seu blusão que jazia furado pelos disparos na construção abandonada junto de seu olhar vingativo e assassino. Caminhou até o escritório de Lindomar.

O escritório de Lindomar na verdade era do tamanho de uma casa dessas construções financiadas pela caixa econômica. Havia algumas plantas em caríssimos vasos. Bonitos quadros pendurados na parede. Duas estátuas de mármore em cada flanco de sua enorme mesa. Ao fundo, uma enorme janela com a visão panorâmica de quase toda a mata atlântica daquela região.
Lindomar era um homem de 50 e poucos anos. Não era tão gordo como seu irmão, e seus cabelos já haviam caído há 25 anos. Vestia-se como um mafioso italiano (era grande fã de O poderoso chefão) e fumava um enorme charuto cubano. Ao seu lado havia um sujeito com traços orientais e de uma expressão fria. No canto de seu escritório, sentadas em um sofá, supervisionadas por um louro alto de expressão severa e intimidadora, estavam Juliana e Juliene. Apavoradas.
-Isso nunca teve a ver com elas, Lindomar! – Gritou Victor Hugo adentrando o escritório – sempre foi entre você e eu.
-Pai!- Gritaram as meninas em uníssono.
Lindomar riu da cena.
Victor havia passado os olhos por toda a extensão do escritório e gostara do que havia visto. Pouca gente, vou pegá-las de volta e matar todos que tentarem me impedir. Quando as meninas em prantos chamaram por ele seu coração pareceu que parou de bater.
-Não quer tomar um drinque como nos velhos tempos, caro amigo?
-Eu não lhe devo mais nada, Lindomar! Não lhe devo mais. Eu lhe paguei fazendo aqueles serviços.
Com uma expressão serena, O velho enchia um copo com uísque importado. Tomou um gole e encheu-o novamente.
-Sabe, Victor. Você é um dos melhores assassinos de aluguel que eu já conheci. Porém foi o mais idiota também. A ponto de desperdiçar toda a sua brilhante carreira na jogatina. Quantas vezes mesmo eu te salvei das garras de seus credores?  Foram 8 ou 9?
-Isso foi antes de eu ter conhecido Roberta, você sabe muito bem disso!
O velho tomou outro gole do uísque. O sujeito oriental parecia uma estátua de cera. Sequer demostrava qualquer reação facial.
-Em todo caso – dizia Lindomar- você jamais teria conhecido sua falecida esposa, que Deus a tenha em seus misericordiosos braços, se não fosse pelo meu dinheiro não é mesmo? Afinal você já seria pó nesse momento.
Victor Hugo observava de soslaio o louro alto perto de sua filhas. As meninas tentaram correr para o pai, contudo ele as impediu. Ele sabia que não podia se dar ao luxo de desviar o olhar de Lindomar, pois era um velho traiçoeiro. Esperava o momento certo para agir.
-O que eu quero que você saiba meu velho amigo, Victor, é que eu cuidei de você como um filho. Eu te protegi. Dei-lhe até um novo nome com direito a novos documentos, uma nova vida e tudo o que eu pedi em troca foi um simples serviço bem feito e você não o fez.
Apesar do grande ódio que estava sentindo de Lindomar, Victor não podia negar as cruéis verdades que saiam da boca dele e penetravam em seus ouvidos agindo como uma peçonha corrosiva causando a pior das moléstias.  Sentia-se envergonhado por sua própria existência e ainda mais, sobre seu próprio passado.
-Sabe, Victor, eu sempre fui uma pessoa perfeccionista. Sempre quis as coisas em seus devidos lugares e com meus funcionários nunca agi diferente. Sempre os deixei ciente de como gosto das coisas. É só perguntar a qualquer um deles por ai.
Victor matutava em seus botões em quem iria atirar primeiro. O louro alto provavelmente será o primeiro. Ele pensava. Ele está com as crianças. Por outro lado, esse japonês me encarando não deve ser flor que se cheire; se eu atacar o grandão ele... Merda, que dilema! Todavia, diante das possibilidades que o aturdiam, havia pelo menos uma certeza, Lindomar seria o último dos três a morrer.
-Eu sempre fiz todos os serviços que me mandou fazer, Lindomar. Durante 1 ano eu matei para você em troca das minhas dívidas de jogo. Creio que já estamos quites, por que insiste em dizer que eu ainda lhe devo?
Lindomar explodiu em uma hedionda e sonora gargalhada. Sua pesada mão caíra sobre a mesa fazendo um ruído estrondoso. A garrafa de uísque oscilou sobre aquela superfície. O oriental sequer piscou os olhos puxados com o som do impacto da mão de seu patrão sobre a mesa.
-João Reis Lobo. Esse cara me deu um prejuízo de 4 milhões. –disse o velho mafioso após as gargalhadas – Claro que isso poderia ter sido facilmente desnecessário se você tivesse cumprido com o que tínhamos combinado.

Em uma clarividência, Victor se lembrou daquele sujeito com olhos de cachorro abandonado perante a mira de sua .9mm. O homem chorava e clamava por misericórdia. Victor ainda podia ouvi-lo naquele instante. –Por favor, eu tenho mulher e uma filha. – Na época, Juliana era um bebê de 3 meses, e Victor lamentou a pena que passou a sentir daquele homem. Sabia perfeitamente que naquele negócio a frieza era imprescindível. O matador recolheu a arma em um gesto misericordioso. Os olhos de João chamuscaram de esperanças. Contudo, sua expressão exalava repugnância para com aquele sujeito.
-Escute bem – disse Victor ao homem – porque só irei dizer uma vez. Você irá pegar sua mulher junto de sua filha e irá desaparecer do mapa entendeu? Terá dois dias para estar em um lugar onde sequer o Rio de Janeiro conste no mapa. Se você não fizer isso, eu irei atrás de você e te encherei de chumbo, ah eu juro que irei, fui claro?
O homem balançou avidamente a cabeça numa afirmativa.
-E cada vez que você ouvir o nome de Juliana irá erguer as mãos ao céu e agradecer a Deus por estar vivo, compreende?
João meneou a cabeça em outra afirmativa.
Todavia, João Reis Lobo não cumpriu sua parte no acordo.

-Esse cidadão no qual você deveria matar, Victor, assassinou um sócio meu entende? Seria meu maior acordo. Por isso que a morte daquele verme seria a garantia do meu negócio. Mas não sei por que você não o matou, e quer saber, nem me interessa o motivo. Eu poderia ter te matado de imediato, velho amigo, mas eu coloquei em minha cabeça que você iria me devolver pelo menos 30% dos 4 milhões.
Naquele momento Victor Hugo já sabia como agir.
-Quando você disse que não me devia mais, não havia mentiras em suas palavras. De fato, suas dívidas de jogos foram quase pagas. Contudo você ainda me deve quando deixou aquele homem vivo.
Victor passaria a amaldiçoar João Reis Lobo pelo resto de sua vida, porém o resto de sua vida poderia esperar. Aquiesceu que Lindomar há anos já deveria ter despachado João para os quintos dos infernos, e aquiesceu também que lhe dera uma morte bem dolorosa e hedionda, mas logo se esqueceu disso, pois na sua cabeça, em um frio cálculo assassino, só havia a sua iminente ação.
O antigo matador sacaria a .9mm e despacharia o japonês para o outro mundo. Imediatamente, ele teria Lindomar em sua mira. Esse seria seu trunfo para com o louro alto. Afinal ele pensaria duas vezes em fazer algo contra as meninas tendo seu patrão sob a mira de uma pistola sanguinária.
Contudo, assim como ele surpreendera Bola e seus capangas, o oriental sem expressão o surpreendeu.
Ao movimentar-se para sacar a arma e disparar contra o japonês, o oriental anteviu seus movimentos e agiu numa velocidade quase surreal. Arremessou uma pequena faca de cabo de alumínio em forma de losango atingindo o peito de Victor. O ex-matador assimilou o impacto da faca caindo para trás fazendo um ruído oco sobre o tapete do escritório de Lindomar. Suas filhas berraram num grito agudo. Ele sabia que aquela facada lhe custaria à vida. A luz do sol que penetrava pela enorme janela ficara baça em seu campo de visão.
A cada batida de seu coração, mais sangue a ferida causada pela faca ia expurgando. Por um momento, ele pensou em tirar aquele objeto de lá, porém assentiu que só iria acelerar a sua morte. Se fosse torturado aquele gesto lhe seria um trunfo. Ouviu barulhos de passos sobre o tapete, estaria vindo o tiro de misericórdia.
Lindomar o olhou com certa repugnância em seu semblante.
-Você é ágil sem dúvidas, Victor, contudo, é muito previsível.
-Deixe-as ir.- dizia Victor um uma voz diminuta- Por favor, deixe-as ir.
-Que homem você acha que eu sou, Victor?
-Por favor, deixe-as ir. Não acabe comigo na frente delas.
Lindomar estalou os dedos e o louro levou as crianças em estado de choque para perto do pai. Victor movimentou a cabeça para o lado a fim de fitá-las pela última vez. A fim de dizer um último adeus. A fundo, ele já podia ver o grande portão do inferno aberto, com todas as pessoas que ele havia matado lhe aguardando. Bola era uma dessas pessoas, e ele estava sorrindo com olhos ávidos que denotavam : traga ele para mim, traga ele agora! Juliana e Juliene mal conseguiam piscar os olhos, aquele espetáculo dantesco era severamente absurdo para uma compreensão inocente da vida.
Victor queria dizer o quanto ele as amava e o quanto lamentava pelo o que elas estavam presenciando, mas as palavras ficaram presas em sua garganta. Houve outro estalo de dedos e, em uma atitude repugnante e vil, o louro alto quebrou o pescoço de Juliana seguido de Juliene. Ambas caíram sem vida com as cabeças em um ângulo hediondo. Os olhos de Victor se arregalaram horrorizados. Queria gritar, queria se vingar, porém, a única coisa que lhe restava era morrer coma imagem de suas filhas caídas mortas ao seu lado.
-Que homem você acha que eu sou, Victor, por deixar duas lindas meninas passarem o resto da vida com a morte dos pais em suas memórias?
Victor chorava, os últimos suspiros de vida eram convertidos em lágrimas. Se eu pudesse voltar atrás, se eu pudesse voltar... Ele pensava antes de deixar aquele mundo.

O tempo da prova acabara e Paulinho sequer escrevera uma linha. Contudo, ao contrário de muitos garotos de sua idade que sairiam com os semblantes preocupados após um fiasco daqueles, ele sentia-se aliviado, como uma pessoa que se vê diante de uma segunda chance após algo terrível.
O QUE VOCÊ VAI SER QUANDO CRESCER?
O tema da prova de fato ficou sem uma resposta de Paulinho, pois ele fora sincero em não souber explicar o que queria ser, entretanto, se o tema da prova de redação fosse: O QUE VOCÊ NÃO QUER SER QUANDO CRESCER? Ele escreveria uma redação de 50 páginas.

sábado, 28 de agosto de 2010

O gato Siamês


1
Maxiliano Gonçalves abriu as cortinas de cetim e em seguida as janelas de seu quarto. A agradável brisa da manhã soprou eriçando seus ralos cabelos grisalhos e o sol da aurora deram evidências deveras as suas rugas. O velho debruçou-se sobre o peitoril da janela e contemplou a virgindade daquele sábado imaculado com os pássaros cantantes, o céu de anil com pouquíssimas nuvens e um baço espectro da lua. Sobre a mesinha de uma gaveta, ao lado da cama, um copo d’água junto a um envelope com um comprimido dentro, sob o copo, um bilhete.
Maxiliano sorriu ao ler o bilhete, de seus 3 filhos, a caçula Laura Gonçalves era a mais apegada a ele e a mais querida. Enfiou o comprimido na boca e tomou dois longos goles da água morna fazendo seu pomo-de-adão mover-se para cima e para baixo. O velho havia passado por uma ponte de safena havia 2 meses, o remédio lhe fora recomendado a fim de afinar o seu sangue.
Quarenta minutos mais tarde, o velho sentiu um mal súbito e caiu morto na cozinha de casa.
Maria das Graças, a empregada, o encontrou caído perante a geladeira entreaberta. Estava pálido e com os olhos arregalados lhe dando um aspecto hediondo. Um filete de saliva havia secado no canto de seus lábios formando uma diminuta espuma, suas calças estavam manchadas pela urina, os gelados dedos da morte o tocaram de vez. A empregada berrou em desespero. Seu patrão, Maxiliano Gonçalves, viúvo, 57 anos, falecera.
2
O domingo fora a antítese daquele sábado, o céu era nebuloso, o vento era gélido, os piares dos pássaros deram lugar a um lúgubre granar de um corvo e Maxiliano Gonçalves jazia em um luxuoso caixão repleto de flores. Um véu branco cobria seu rosto que apesar de toda a mortalha impregnada, tinha um aspecto agradável.
Os 2 filhos homens do velho recebiam os pêsames dos amigos. Estavam em seus impecáveis ternos pretos e por trás de seus caros óculos escuros. Laurinha era a imagem da desolação. Segurava as mãos sem vida do pai apertando-as com força.
-Pai, por que o senhor foi morrer? – murmurava ela – Você prometeu que iria estar na minha formatura, lembra que você me disse isso antes da operação? Não é justo, você me prometeu. – As lágrimas rolavam por sua face sem o menor pudor.
Horas após o enterro, os 3 filhos reuniram-se diante de uma mesa de mogno a fim de discutir a divisão dos bens do pai. Simão, Gilberto e Laurinha. Os homens tinham as feições resignadas, de fato, os óculos em seus rostos não escondiam tristeza e sim resignação.
3
- O que aconteceu?- Ele se perguntou.
Acordou sobre uma confortável almofada em cima da poltrona de sua biblioteca.
-Mas que diabos estou fazendo aqui?- Ele conjecturava o hiato que havia em suas memórias. A última imagem que tinha de sua casa era a cozinha, mais precisamente a sua geladeira.
-Lembrei! Eu estava com sede, sim, eu estava com muita sede e de repente... Senti uma tontura e tudo se apagou.
Ele desceu de sua poltrona e estranhou a perspectiva inferior que estava tendo de sua biblioteca.  Caminhou em passos dificultosos ante um espelho redondo localizado ao lado de um velho relógio de pendulo e se assustou com o que viu.
-Meu Deus! Estou no corpo de Fido, o gato de Laurinha, mas que diabos está havendo? Será que isso é um pesadelo?
Ouviu um burburinho vindo do andar de cima e assentiu que eram seus filhos. Dirigiu-se até lá deixando o espelho que refletiu a imagem bonachona e preguiçosa de Fido para trás.
4
Os filhos discutiam quando Fido adentrou no escritório de Maxiliano e sentou-se sem ser percebido num canto qualquer.
-Não quero discutir sobre o dinheiro agora – dizia Gilberto – só o que faço questão no momento, é a cobertura da Barra e o Mercedes conversível.
-Quando você vai crescer Gilberto? – retrucou Simão – Sabe quem temos que analisar com calma todas as ações da empresa e vendê-la a um preço justo.
-Gente, pelo amor de Deus! –bramiu Laurinha em prantos – mal o enterramos, por que temos de falar disso agora?
-Ah vamos Laurinha!- disse Simão – o velho já era pra ter batido as botas há 2 meses, aquela ponte de safena só estendeu o que era pra ter acontecido.
Laurinha ficou pasma e sequer conseguiu dizer algo, soluçava.
Gilberto passou a mão sobre o ombro da irmã dizendo:
-Não fique assim Laurinha, o tempo vai curar isso, vá por mim.
Ela meneou a cabeça e disse em seguida:
-Mas por que vocês querem vender a empresa?  Sabem que ela significava muito para o papai, sabem o quanto ele lutou para deixá-la no topo e ainda mais, sabe o quanto ele odeia aquele senhor Anderson Peregrino.
-Negócios são negócios Laurinha – disse Simão – o doutor Peregrino está disposto a pagar uma boa grana pela firma e creio que nenhum de nós será capaz de administrá-la.
5
Ele assentiu toda a situação.
-Merda, eu morri. Voltei no corpo de Fido.
Maxiliano estava perplexo com a situação. Duplamente perplexo. Dizem que os gatos são um facilitador para a passagem no outro mundo, um mediador entre o mundo dos vivos e dos mortos, mas o velho jamais acreditara nisso. E, o que ele também não queria acreditar, era que seus filhos pouco se importavam com sua morte e estavam dispostos a vender a sua empresa a qualquer custo.
-Bastardos ingratos! Depois que tudo que fiz por eles.
6
Gilberto levantou-se da mesa, tirou os óculos escuros do bolso do paletó e pôs no rosto.
-Já disse, não quero discutir isso. Façam o que quiserem e depois me passem a minha parcela. Só faço questão do Mercedes e da cobertura na Barra.
-Você é muito filho da puta! – gritou Laurinha – vocês dois são. Não passam de dois filhos das putas gananciosos!
-Ah não fode Laurinha – replicou Gilberto – foda-se aquele velho, e o que o Simão disse é verdade, ele durou demais. Como dizem, já foi tarde!
Gilberto ia se dirigindo para a porta do escritório e Fido avançou sobre suas pernas. Ele chutou o gato e o bichano rolou sobre o tapete persa.
-Maldito saco de pulgas!
Simão olhou severamente para a irmã antes de também se levantar da mesa. As mãos delas cobriam o rosto molestado pela tristeza. Ele suspirou fundo e disse:
-Você precisa entender a vida, Laurinha, a dele se foi e a nossa restou, pense nisso.
Laurinha ficou solitária e desolada no escritório. Caíra novamente em prantos e debruçou-se sobre a mesa. Fido caminhou para perto e pulou em seu colo. A jovem acariciou seu animal de estimação.
-Oh, minha doce Laurinha, você sempre foi meu tesouro.
7
Gilberto estacionou o Mercedes na garagem de seu falecido pai. Falava ao celular e entrou na residência e por lá permaneceu por uns 15 minutos antes de voltar ao veículo.
-Ora Joana – dizia ele ao celular – eu já lhe falei, os inquilinos do meu pai vão deixar a cobertura mês que vem e a casa será nossa... O que? ... Claro que daremos uma festa, já andei conversando com uns amigos a respeito disso, e digo a você que vai ser o bicho.
Gilberto ainda ao celular, ligou o carro, deu ré e saiu pelas ruas do Rio de Janeiro. O vento soprava contra ele movimentando seus cabelos que iam à altura dos ombros. Os óculos escuros estavam em seu rosto e lhe davam um aspecto bem burguês.
-Ainda não sei sobre a grana da empresa, Simão que está tratando isso e que saber, nem quero me meter nisso... E você acha que vou deixar ele me passar à perna? Faça-me o favor, Joana! Antes de ele pensar em me foder, eu o fodo duas vezes... Bem vou desligar o celular antes que eu seja multado.
Gilberto ligou o rádio do carro e uma música do Ac/dc tocava na rádio. Ele cantarolou acompanhando o refrão da música.
-I’m on the highway to hell!
Fido esgueirou-se pelo banco de trás do carro que um dia fora seu e postou-se no banco do carona sem que Gilberto o notasse. Ele batia com as mãos no volante acompanhando o ritmo da música e o gato o observava com olhos vítreos. Fido desceu do banco e foi-se na direção do freio e acelerador. Passou por baixo de sua perna direita e postou-se entre ela e a esquerda. As garras saltaram de suas patas e ele cravou-as no saco do motorista. Gilberto gritou de dor e num gesto de auto-reflexo, moveu bruscamente o volante levando o carro para a contramão.
Um ônibus que passava a alta velocidade não conseguiu frear o veículo e a colisão fora forte. Gilberto morrera na hora.
8
Os programas sensacionalistas comparavam a tragédia da família Gonçalves com a famosa família Kennedy. Dois dias após o enterro de Gilberto, Simão e Laurinha com Fido no colo tentavam decidir o que fazer com a herança que teriam de dividir.
-Bem, Laurinha, sei que estamos passando por atribulações, mas nesse momento temos que ser fortes.
Não obstante, o gato nos braços dela o incomodava.
-Mas o que diabos esse gato fazia no carro dele? – Perguntou Simão.
-Eu não sei - respondeu Laurinha com o olhar ausente – porém os bombeiros disseram que foi um milagre ele ter escapado do acidente.
-Bem, dizem que gatos têm 7 vidas, talvez só lhe reste 6 agora.
Um sorriso amarelo brotou no rosto de Simão e ele ameaçou uma carícia em Fido, contudo o gato mostrou suas presas demonstrando que não queria ser tocado por aquele sujeito. Simão recolheu a mão, pegou uns papeis sobre a mesa e colocou em sua pasta.
-Bem, devo fechar o negócio com o Dr. Peregrino ainda nessa semana, irei te manter a par de tudo o que está acontecendo. Deseje-me sorte.
O olhar ausente de Laurinha permaneceu. Fido o observou saindo com olhar iracundo.
9
Simão estava animado com a partilha em menos pessoas, mais do que isso, sabia que Laurinha era tola, fácil de ser manipulada e fácil de ser enganada.
-Está tudo correndo bem. Laurinha certamente nem saberá o valor que venderei a empresa, fato que a morte de Gilberto me lucrou uns 7 milhões por baixo.
Tomava um revigorante banho enquanto sua casa era invadida por um ser não desejável. Um gato para ser mais exato.
Fido vasculhou o local como um soldado que estuda o perímetro antes de tomar qualquer ação. Olhou para a escada de corrimão que dava acesso ao segundo andar e ficou estático, pensativo. Naquele momento, Simão começou a cantarolar no banheiro e aquilo pareceu que o estimulou a agir mais depressa. Fido subiu a escada. Logo no início do segundo andar, havia um quarto de hóspedes com um ventilador próximo a porta. O gato estudou o fio do ventilador e uma iluminação aflorou seus pensamentos.
Com a boca, ele levou a extremidade do macho da tomada até o corrimão e deu 4 voltas pelas pequenas balizas que davam suporte. Uma boa armadilha se levar em consideração que fora tramada por um gato siamês. Todavia, era preciso atraí-lo. Simão saiu do banheiro envolto por um roupão de banho azul e ligou o moderno rádio de sua sala de estar. Música clássica explodia no ambiente. O gato visualizou sobre um pedestal naquele corredor, um jarro de aspecto caro, mas que na verdade não era muito valioso. Correu até lá e derrubou o jarro fazendo-o espatifar-se sobre o chão.
Gilberto preparava o jantar quando estranhou o ruído. Abaixou o volume do rádio. Empunhou a faca que segurava e subiu a escada cautelosamente.
-Quem está ai?
Fido, encolheu-se sob a base do ventilador do quarto de hóspedes, o fio estava em sua boca.
-Quem está ai? – Insistiu.
Subia os degraus cautelosamente, um a um. Seus poros exalavam nuvens de tensão. Chegara ao andar de cima, passara pelo quarto de hóspedes onde jogara um olhar de soslaio. Ninguém estava ali. O cabo da faca em sua mão recebia uma considerável pressão. O gato o observava com seu olhar frio e seu aspecto bonachão. Simão fitou o jarro espatifado pelo corredor. Caminhou com menos cautela até o pedestal de gesso.  Quem teria derrubado? Ele pensou. Contudo, ao fundo do corredor uma janela encontrava-se aberta com suas cortinas sacolejando devido à brisa noturna. Sorriu e o sorriso não demorou a se tornar uma estridente gargalhada. A faca já não mais estava firme. Assentira que fora o vento que derrubara o tal jarro.
-Toda essa história está deixando minha mente em frangalhos- disse ele- depois de fechar esse negócio certamente passarei um mês de férias pela Europa, não, Canadá.
Ele girou sobre os calcanhares não dando importância para os cacos do jarro sobre o tapete no corredor. Iria descer, aumentar o potente som de sua sala de estar e voltaria a preparar o jantar em sua luxuosa cozinha.
Fido aguardava o momento certo. Simão caminhava batendo com a lateral do gume da faca na palma da mão e quando ia deixando para trás a porta do quarto de hóspedes, o gato puxou o fio para trás esticando-o. Simão tropeçou e rolou a escada fazendo um ruído oco. Rolou os 15 degraus e uns metros no andar de baixo caindo de barriga para cima. De alguma maneira, a faca entrara em seu ventre. O seu roupão de banho não demorou a ter uma tonalidade escarlate na altura do abdômen. Apalpou o roupão molhado e levou os dedos manchados de sangue ante os olhos. Ao vê-los rubros, ele tomou ciência que estava em grandes apuros. Ouviu o ronronar vindo do alto da escada, ergueu a cabeça para fitar o autor daquele ruído, aquela ação parecia que lhe roubava suas últimas forças, os olhos que estavam fendidos se arregalaram num súbito e último horror. A última imagem que tivera em vida, fora o gato siamês de sua irmã caçula o encarando com seus olhos vítreos e desafiador. O mesmo gato que estava no carro de seu irmão do meio. Suas últimas palavras foram:
-Você, foi você...
Morrera com o dedo indicador apontado numa imperativa acusação para o alto da escada.
10
Duas semanas se passaram e a família Gonçalves (Laura Gonçalves) fora assunto em todos os veículos de imprensa, desde os tabloides de poucos centavos ao conceituado Jornal Nacional. Laurinha se tornou uma espécie de celebridade mórbida. Uma sobrevivente de mortes e acontecimentos bizarros em sua família.
-Oh minha doce Laurinha- Murmurava Maxiliano na confortável poltrona de sua biblioteca.
Ela estivera ausente por 12 dias, fugia do cruel assédio da imprensa e fugia do cheiro da morte que rondava o seu sangue. Fido ficara em casa sob os cuidados de Maria das Graças.
Em um sábado semelhante ao dia da morte do velho, Fido ouviu alguns risos e gemidos vindo do quarto de Laurinha. Com seu semblante de preguiça perpétua, ele caminhou até a porta que estava entreaberta do quarto dela. Adentrou deslizando seus peludos flancos pelas quinas de madeira.
Laurinha transava com um homem. Um homem mais velho do que ela. Maxiliano o reconheceu, tratava-se de Anderson Peregrino. Ele gozou e rolou para o lado na cama.
-Puxa, ainda não consigo acreditar na sorte que tivemos, tudo conspirou em nosso favor. -Disse ele.
Laurinha o olhou sem dizer nada.
-Primeiro seu pai, depois seus irmãos.
-É, poupou o meu trabalho que eu tive com meu pai.
Os músculos do gato estavam estagnados, Maxiliano tentava se mexer, mas sequer saía do lugar.
-O que está fazendo Laurinha? O que está falando? Não me diga...
-O que você fez para apagar o velho?
-Troquei o remédio dele por uma substância a base de Estricina. Deixei um bilhete meloso do tipo: Papai do meu coração, não se esqueça do seu remédio, beijos da sua filha favorita, Laurinha. E foi só esperar a notícia chegar e simular uma tristeza.
Ela começou a reeditar o teatro que fizera no sepultamento do pai.
-Sua frieza me assusta, Laura Gonçalves. – Disse ele sorrindo.
-Isso não me importa, o que importa é que agora somos o casal mais rico do país.
Anderson assentiu.
A paralisia muscular de Maxiliano/Fido havia passado para seus pensamentos. Jamais imaginara que sua querida filha caçula havia tramado a sua própria morte, mais do que isso, um sentimento de culpa (que ele não sentiu por ter matado seus filhos, que apesar de vis, jamais matariam o próprio pai) o aflorou. Quando ele começara a retomar os movimentos, a visão ia ficando turva e o som disforme.
-Não! Como pôde Laurinha? Como pôde?
O gato pulou sobre a cama, porém Maxiliano não estava mais lá. Laurinha o acariciou.