Dez anos trabalhando na mesma seção com meu velho amigo. Era mesmo meu camarada. Levei-o para jogar na minha pelada; a pelada dos meus amigos de infância e da escola. Passamos, juntos, duas viradas de ano com minha mulher e filhos, na casa onde vivi os meus melhores dias, onde construí meu lar e eduquei minhas crianças.
No quinto mês desde o nosso encontro – uma amizade quase instantânea -, me lembro, chamei-o para a praia. Não tinha família no Rio e isso me entristeceu. Falei com Marta. Ela também ficou triste. Disse-me para que o levasse conosco para um programa de família; queria conhecer aquele rapaz quase trintão de quem tanto lhe falara. Passamos em seu apartamento em Bangu e lá o apanhamos; conversava com as crianças e logo ficaram amigos. Na praia, construiu um castelinho; havia uma princesa presa numa masmorra fria, escura e úmida. Assim começou com a história e meus filhos ficaram enlevados; Martim seguia narrando a fábula, enchendo-a de personagens; havia ogros, um rei tirano, uma corte ressentida de não ver mais sua princesa, uma feira muito movimentada, uma bruxa e um príncipe arguto e ambicioso.
Marta me olhou e sorriu discretamente; não queria interromper o divertimento das crianças. Espantara-nos a destreza com que conduzia o conto e como o fazia com firmeza. As crianças interferiam; quando queriam mais um personagem ou mesmo quando não lhes agradava o papel para cada um deles criado por Martim, ele mudava o rumo dos fatos. Sem render-se ao locupletamento dos meus meninos, fez com que tudo seguisse verossímil até o final: o ogro traíra o príncipe, domara todo o povo e fizera da princesa seu mártir, mantendo-a presa na masmorra ao dizer a todo povo que ficara louca de tanto sofrer nas mãos do seu pai déspota que fora assassinado por seu filho, antes de ser destronado pela tramoia do ogro cinzento e desbotado, pelo qual tomaram partido, lá pelo meio da história, meus filhos.
Marta o interpelou, “Mas que final horrendo, Martim!”, mirando-o por cima de seus óculos de Sol.
“Ah, mãe”, disse Pedro, tremendo de excitação por ter colaborado diretamente com o prognatismo do príncipe que era belo e róseo no início,“ você não vê aqueles filmes de terror com o meu pai?”.
Marta balançou a cabeça como quem concorda a contragosto com uma criança que tem razão. E Pedro a tinha. Adorávamos os filmes de terror – ou melhor, os de suspense. Passávamos horas vendo a coleção do Hitchcock que ganháramos de presente de casamento de um velho amigo. Assim que descobrimos que um VHS poderia ser convertido para o DVD, gastamos uma grana violenta com um moleque de dezoito anos viciado em computador que se aproveitara da demanda gigantesca engendrada pelos cinéfilos órfãos do videocassete.
Martim disse que a arte, principalmente a literatura, não moldava os caracteres dos jovens, que se assim fosse os pais deveriam tapar os ouvidos das crianças toda vez que o padre proferia seu sermão, ou desligar o televisor quando percebessem a afeição magnética das crianças pelos vilões das novelas.
“O senso de justiça das crianças é até maior que o nosso. Vê o exemplo do castelinho de areia e do reino despótico do deserto do Grumari:” - foi o nome que deu ao feudo erguido à sombra daquele guarda-sol – “O Rei não era boa pessoa, mas, como era Rei, você não falaria nada se ele subjugasse o ogro e seu filho traidor. O ogro só trocou um mal por outro, e ninguém garante que ele, daqui pra frente, mesmo que tenho mentido e vilipendiado o príncipe, não seja um monarca austero. Na História, há centenas de casos de Chefes de Estado assassinos que fizeram muito pelo seu povo. Na verdade, o povo quase nunca assume a sua responsabilidade; aquela estória de cidadania...”
“Claro. Eu, por exemplo, nem lembro em quem votei pra vereador, e isso só tem uns seis meses. Mas não precisa ser tão dramático; só falei que o fim foi terrível, e não foi?
Fiquei com medo de a tarde terminar mal, mas quando vi a Marta dando corda na conversa, tranquilizei-me. Era assim que demonstrava afeto. Antes de namorá-la, discutíamos sobre tudo e todos; quase nunca concordávamos e, segundo ela, apaixonou-se por mim justamente quando a chamei de burra por não concordar comigo acerca a Guerra dos Bálcãs. Ela disse que percebera em mim alguém para discutir fervorosamente até a velhice.
“Não achei terrível.”
“Nem eu”, disse Soninha, minha filha mais nova, que decidira pela continuidade do cárcere da princesa.
Sorri. Fiz questão de olhar para Marta nessa hora, enquanto eu passava protetor solar nas crianças. Ela segurou o sorriso com dificuldade. Martim nada percebeu.
“Eu sempre gostei das crianças, apesar de não ter filhos.”
Todos ficaram em silêncio. Só o barulho das ondas que resfolegavam as partículas de água no céu azul.
“As crianças – Martim quebrando o silêncio – possuem ética, nós não. O que nós fazemos é polir as palavras e deixar bem claro para o mundo todo o que nos incomoda; aquilo que não queremos que seja feito conosco. O problema é que os adultos fazem com os outros justamente aquilo que os incomoda.”
“Tá legal, Martim, o que você diz, então, daquelas crianças que desde novas são líderes? Elas são fortes de espírito, tenazes e fazem das outras crianças da mesma idade gato e sapato. Na última reunião de pais, a Tia Márcia, professora da Soninha, disse que ela brincava só do que queria, que, além disso, todas as outras crianças do seu círculo de amiguinhas faziam só o que ela ordenava”.
Soninha estava olhando o mar enquanto passava-lhe o creme protetor nas costas. Fingiu que não falavam dela.
“Ela faz isso porque é dela. Pior será se não continuar fazendo depois de velha. Ninguém ensinou isso pra ela. Nessa idade se aprende a escovar os dentes, escrever, pintar, pique-esconde, mas não isso. O que a professora não lhe disse foi se as outras crianças estavam felizes brincando com a Soninha”. A menina virou para Martim e sorriu abertamente. “Bom, pela cara dela ninguém ficou triste, não é verdade, Soninha?”
“Não”, lacônica.
“Marta, desde cedo, as crianças já mostram o que são, e todas se respeitam mutuamente. O problema é que o tímido escolhe ser advogado; o forte vira polícia; o encostado, professor; o feio quer ser ator e o triste vira empreendedor.
“Como assim? – perguntei enquanto me levantava para levar as crianças até a água.
“Como os pais, os professores, os psicólogos e todos os outros são, na maioria das vezes, aquilo que não nasceram para exercer, eles acham normal que os pequenos sigam qualquer caminho profissional, como se isso não representasse a frustração eterna. Isso é tão forte na nossa sociedade que nos desacostumamos a ver aquilo que é tão óbvio. Ninguém vê isso nas crianças; muito pelo contrário, antes dos filhos nascerem, já queremos que eles sejam médicos, advogados... É triste.”
Marta e eu nos fitamos novamente. Um vento frio veio do mar. Levei as crianças para um último banho e fomos embora.
Transcorreram-se os anos após aquele primeiro dia em família. Martim logo afamilhara-se, não antes de contar a sua origem; como fora parar em Campo Grande vindo do interior do Estado. Não tinha Pai nem mãe, só uma tia que vivia num asilo em Angra dos Reis. Não era próximo dela. Era uma estranha, dizia.
As crianças cresceram. Martim e elas tornaram-se amicíssimos. Soninha ainda estava na escola e Pedro, no primeiro semestre da faculdade. Martim tornara-se o melhor tio, o mais amigo. Era duro quando tinha que ser. Jamais se metera nas minhas ordens ou admoestações, tampouco nas de Marta. Diferente dos meus irmãos que davam de ombros para tudo aquilo que não fosse relativo aos seus filhos, Martim tinha tempo de sobra para as crianças. Com Pedro, ia aos shows de rock. Comprou-lhe uma guitarra quando passou para o ensino médio. Matriculou-o numa aula de música. A verdade é que isso mudou a vida do meu filho. Ele se tornou mais compenetrado e culto, sem ficar esnobe. A cumplicidade entre os dois era latente. Em certos momentos me batia um ciúme, mas Marta logo ria de mim quando lhe confessava esse sentimento tolo. Não era algo que me fazia mal, tampouco, ao contrário. Gostava do meu filho, que gostava de mim – e muito, eu podia sentir – e gostava de Martim com um amigo; o melhor que ele tinha.
Soninha tornou-se uma menina linda. Era forte, tinha os olhos redondos e convexos e a boca pequena como se tudo fosse de moça em seu corpo, menos os lábios. Era decidida, justa e amiga de muitas pessoas. Tinha uma coisa que eu adorava nela desde as primeiras manifestações do seu caráter : sempre escolhia os enjeitados da escola para levá-los a nossa casa. A amizade de Soninha significava muito para seus queridos e o apreço dos outros por ela era cultivado; gostava de estar com que lhe queria bem. Dura quando devia ser – não gostava de mentiras – e afável na medida certa. Com quinze anos tornara-se o porto-seguro de muita gente, inclusive da mãe.
A minha relação com Martim fortalecera-se a tal ponto que ele se tornara meu melhor amigo. Meus amigos também se tornaram amigos dele. Onde eu estivesse, também estava Martim. Se chegasse sem ele à casa de minha mãe ou no Maracanã, as pessoas perguntavam-me por ele, como se vivesse comigo debaixo do mesmo teto. E não era exagero dizê-lo. Martim adentrava minha casa à hora que queria e a deixava também quando lhe convinha. Marta o adotara como um irmão. Viviam conversando sobre tudo. Por vezes, chegava a casa e os dois estavam em guerra discutindo sobre quem era melhor: John ou Paul; quem acabou com os Beatles, Linda ou Yoko; se ainda existia esquerda no Brasil; se havia efeito estufa ou não.
Ela adorava debater infrutuosamente e ele também. Eu passei a gostar cada vez menos disso. Como Marta não mudara nada desde aquele dia em que se enamorou por mim, minha taciturnidade crescente foi nos afastando, mas em momento algum me sentia pressionado a falar mais. Martim fazia as minhas vezes – e com maior habilidade, isso é irrefutável.
Não sentia ciúmes, juro. Meu amigo cuidava das preliminares e eu fechava noite. Parece estranho, mas Martim percebia com facilidade quando deveria se retirar mais cedo. Nunca cheguei a conversar com ele sobre o tema, nem com minha mulher, mas certos assuntos deixavam-na excitada; ela os puxava com Martim como fazia comigo. Algumas taças de vinho a mais e Marta sentava-se no meu colo enquanto falava de Kafka e Tolstoi com nosso amigo. Defendia hirtamente seus pontos de vista para depois beijar o meu pescoço de leve; parecia olhar para Martim nessas horas. Antes que aqueles colóquios começassem a remeter a uma suruba mais do que a um reles bate-papo, ele saía e nós transávamos; àquela altura do casamento, nossas melhores transas sempre decorriam de longas noites de conversa-fora com Martim.
Tudo começou a mudar quando seu primo apareceu em Campo Grande procurando por per ele. Ao entrar no prédio da Secretaria da Receita Federal, o homem moreno e alto, depois de passar pelos seguranças, dizendo-se parente de Martim Delgado, adentrou nossa sala. Ao vê-lo, Martim descompôs-se; Cláudio e Beto, que trabalhavam conosco, nada perceberam. Eu conhecia bem meu amigo; aquele silêncio gélido não combinava com ele, tampouco a impessoalidade com que recebera a visita, depois de tantos anos, de um parente que, pelo menos para mim, a quem foi dito que só restara uma tia na vida, não existia.
Sorri para o homem, mas só porque pensei que Martim sorrira assim que o sujeito identificara-se (“Martim Fonseca Delgado?”, leu de um pedaço de papel amassado que levava à mão). Martim levantou-se e tirou-o para conversar no corredor. Alguns minutos se passaram e não consegui controlar minha curiosidade – não era bem isso: foi uma mistura de excitação e preocupação, senti um mau augúrio mais do que vontade de xeretar a vida alheia.
Passei pelo corredor como quem vai pedir uma garrafa de café fresco na cozinha. Martim sequer me olhou, ao oposto do primo vindouro. Parecia querer- me contar algo, como se me conhecesse e soubesse da amizade que Martim e eu devotávamos um ao outro. Fui até outra seção; enrolei para não dar na telha; puxei papo com a senhora do RH. Quando retornei a minha sala, Martim estava suando e seu primo havia sumido.
“Martim, onde está seu primo?”
“Foi embora. Nem sei se é meu primo. Nunca vi a figura. Veio me pedir dinheiro. Com certeza é algum espertalhão de Angra que ficou sabendo que minha tia tinha um sobrinho que vivia no Rio há muito tempo.”
“Mas ele sabia seu nome”, dei sequência à conversa, conquanto estivesse nítido que meu amigo não queria remoer o assunto.
“É, mas e daí? Se ele não soubesse de nada, como viria até aqui no Rio para me extorquir?”
“Era isso que ele queria?”
“Sei lá, Juca!”, gritando, como o vira fazer em pouquíssimas oportunidades - pensando bem, Martim jamais gritara antes . “Um cara desses, molambento que só, parecendo um fantasma, chamando o primo querido pelo nome completo só pode querer o quê?
Verdade. Algum proveito ele queria tirar.
E eu queria saber da verdade. Martim já dera infinitas provas de seu carinho pela minha família. Eu não desconfiava de nada daquilo que contara há anos atrás. Meu amigo tinha uma vida ilibada, e ponto final! Eu sentira uma curiosidade hercúlea, e só. Mas isso não é pouco.
No fim de semana, sem contar a Martim, fui a Angra dos Reis com Marta. Pedro ficou no alojamento da UFRJ e Soninha com sua madrinha no Recreio dos Bandeirantes, para ir à praia e a um show que haveria no Via Parque.
Quando cheguei do trabalho no dia da visita do falso primo, contei tudo que ocorrera a Marta. Ela achou tudo muito estranho; ao contrário de mim, ainda nutria algumas desconfianças em relação ao passado de Martim, mas achava que era algo bobo, que, se não queria contar-nos nada, era para não nos aborrecer com reminiscências enfadonhas. Mesmo assim, repreendeu-me duramente por meu comportamento. Logo você que vive falando mal da minha irmã e de suas fofocas, me disse. Senti-me mal depois disso. Marta tinha razão, e um remorso timidamente lúgubre me acometeu, além de não aguentar ver na minha mulher a figura materna, ralhando comigo; cortava-me o tesão cada vez mais difícil de fazê-lo emergir até minha pele e membro. Já transava com a mesma mulher havia quase duas décadas.
Chegamos à noite. Odiava viajar depois do crepúsculo, mas era necessário. Marta chegaria cansada e, com sono, dormiria feito uma pedra. E assim foi. Banhamo-nos e rapidamente Marta adormeceu. Não era o seu feitio acordar no meio da noite, ainda mais depois de uma longa sexta-feira de trabalho seguida de uma viagem longa, silenciosa, sinuosa e às escuras. Quando adormeceu, já no hotel, tentou me agarrar pelo pescoço, como um zumbi. Pedia para comê-la, mas assim fazia sempre quando estava prestas e dormir. Além disso, dizia para que ficasse no quarto, que não a deixasse só naquela cidade. Nem uma cervejinha, disse; está cheio de boteco nessa cidade. Isso dera para perceber, mesmo à noite.
Saí. Não tinha referência, somente “Martim Fonseca Delgado”. Inventara uma viagem romântica só para saciar minha curiosidade. Talvez não somente isso, mas era o que pensara desde o momento que a sudorese desmesurada descascou o escudo do meu amigo naquele escritório. Parei num restaurante e pedi uma água tônica. Perguntei ao garçom se era da cidade. Sim, era. Não sabia nada sobre Martim, tampouco da sua tia e primo. Pedi-lhe que averiguasse com seus colegas e nada. Disse-lhe que era amigo de Martim; ninguém o conhecia. Pedi-lhe a conta e fui até a rua que fica à beira-mar e deparei-me com uma aglomeração. Um barco acabara de voltar do mar com muitos peixes frescos e lulas. Esperei o furdunço dissipar-se e fui até os pescadores. Eram quatro; três adultos jovens e uma criança. Perguntei sobre Martim e sua tia. Nada. Entretanto, disseram-me para ir ao bar do Seu Eriberto, que ficava perto do hotel onde me hospedara. Lá estavam os mais velhos e cachaceiros moradores da cidade. Se o que procurava estava vivo, ali seria o melhor lugar para coletar informações. Para agradecê-los, levei um robalo. Fritá-lo-ia para minha mulher no dia seguinte.
No bar, logo vi que se tratava de uma chafurda. Não pelas mesas e cachaças dispostas nas estantes de madeira velha, mas pela clientela. O fedor não era somente do queijo curtido ou da sujeira dos banheiros. A falta de asseio dos borrachos impregnava o ar; o barulho era lancinante; cada qual tentava falar mais alto que o outro para se fazer escutar em meio a tantos bêbados. No balcão, um sujeito alto e espadaúdo conversava com o balconista. Interpelei-os.
“Com licença.”
“Como?”
“Com licença.”
“Fala alto, porra!
“Meu nome é João Carlos e estou procurando alguém da família Delgado ou Fonseca?
O grandalhão não escutou, mas o vendedor, sim.
“Vem até aqui do outro lado”, e me levou até a parte interna do balcão, de onde tirou uma chave como daquelas com que se abrem portas velhas. Subimos as escadas até dar de cara com uma porta. Estava escuro. Com dificuldade, abriu a fechadura e demos com um alpendre velho e empoeirado. A luz dos postes preenchia parte do lugar com halo forte. O homem puxou duas cadeiras de ferro enferrujado escrito “Brahma” no espaldar.
“Eu sabia que iria chegar esse dia”, disse o homem, para depois sorrir.
“Dia de quê, Senhor?”
“O dia que alguém viria desenterrar o velho Martim”
Senti meus intestinos rodopiarem. Arrependi-me de pronto. Pedi desculpas ao meu amigo Martim em silêncio, enquanto me preparava para levantar. O vendedor não me deixou e segurou-me pelo braço com força.
“Meu nome é Oswaldo, muito prazer. E o Senhor?
“João Carlos”
“Deve então ser Joca, Juca...”
“Juca”, disse-lhe, já me levantando aparvalhadamente, mas fui novamente compelido a ficar sentado por aqueles braços fortes.
“Se perguntou, é porque quer saber, então vou direto ao assunto para não perder seu tempo. Martim era diretor da Escola Municipal... Escola Municipal... Ah, deixa! Esqueci a porra do nome, é mole? haha. Bom, ele era diretor. Até aí tudo bem, tirando o fato de ser muito novo. Havia acabado de entrar no magistério e virou diretor. Alguma ele armou... Se armou! Eu não o conhecia bem antes de trabalhar com ele. Fui servente naquela época. Era uma merda de ofício, mas só tinha isso pra fazer. Angra não era o que é hoje. Quem não trabalhava para a prefeitura não trabalhava, entende?”
Coçou o queixo durante uma pequena pausa. Já não queria ouvir mais nada; ou melhor, não queria saber da verdade; mas, ouvir? Como queria!
“Tudo ia bem, até que um pai de uma aluna lá disse que o Martim havia acobertado um professor que passava a rola nas meninas. Uma semana depois, outro pai disse que o Martim não acobertava nada, que era ele mesmo que comia as crianças. Eu gostei daquilo. Adorei! Veio até TV na época pra cá. O pior veio depois: todo homem que trabalhava na escola passou a ser taxado de estuprador; e nessas horas, o povo acha mais fácil que um servente de merda passe a rola num menininho que um professor. De repente, estava trabalhando na Sodoma da Costa Verde. Todos me olhavam de canto. Todo mundo que trabalhou naquela escola ficou marcado. Mas isso já faz tempo, Seu Juca.”
Essa estória é absurda, pensei.
“No final das contas, não deu porra nenhuma pra ninguém. O Martim foi embora daqui e nunca mais voltou. Ele tem uma Tia chamada Maria do Amparo. Vive de amasso com um pescador chamado Luis Bumba.”
“E como ele é?”
“Alto. Tem a pele feito cobre, de tanto Sol que pega. Todo pescador é assim.”
Dei uns trocados ao homem. Ele aceitou dizendo que aquele papo o fizera perder alguns clientes. Sorriu e eu também, mas de nervoso que estava. Não sei se por agitação ou por não querer mais saber da verdade, esqueci de perguntá-lo sobre a tia e o primo, onde moravam, como achá-los.
Voltei ao quarto do hotel. Deitei de dorso para Marta, que me abraçou.
No dia seguinte, pagamos uma escuna que nos levou a várias ilhas paradisíacas. Tudo parecia virgem como nos primeiros dias da Terra e assim me senti, puro, com Marta. As lembranças da noite anterior foram se apagando a cada maravilha que surgia naquela baía suntuosa. O desejo profícuo de Marta ao viajar comigo passou a ser o meu também; beijávamo-nos como adolescentes, causando certa ojeriza aos os outros que embarcaram conosco no píer; as crianças sorriam e olhavam estupefatas para os pais. Éramos quase velhos, pensaram.
No hotel novamente. Dormi. Decerto, pus-me a dormir forçosamente, como quem não quer romoer maus pansamentos e produzir estórias mirabolantes e perfidiosas rolando no colchão. No entanto, sabia que se deitasse na cama dormiria com relativa celeridade, mesmo que uma parte minha quisesse elucubrar. O dia fora cansativo, mas belo e chistoso. Não queria vasculhar o passado do meu amigo de longa data, não depois daquele mar turquesa, ladeado por ilhas olivas e nuvens argentas nas arestas e cobalto no centro. Tudo ornando Marta, perfumando-a.
Nunca contei a Marta das minhas descobertas; a Martim, nem que fomos a Angra. Parece que nem Marta o informou da viagem. Se ficou sabendo, não comentou nada comigo. Nas semanas posteriores, a rotina me fizera quase nunca rememorar aquele bar fedorento; Ao inverso, contava a todos os amigos e parentes das ilhas e dos casarões incrustados nelas. Tive sucesso com o robalo que preparei artesanalmente no quarto do hotel, quando ficamos da sacada do hotel abraçados aproveitando o maral que vinha da enseada forrada pelo plenilúnio.
É difícil dizer quando a parte ignominiosa daquele fim de semana começou a me atormentar. O primeiro sintoma, o esquecimento; claro, que o dos momentos jubilosos ao lado da minha mulher; se não estivesse aqui escrevendo e recontando os fatos, não sei onde estariam enterrados na minha memória prodigiosamente seletiva o peixe frito e a lua cheia; e a Marta daquela viagem também se esvaíra completamente da minha mente.
Um leviatã ciumento e asqueroso apoderara-se de mim. Martim começara a roubar meus instantes preciosos de pai zeloso e de marido ora boquirroto, ora parceiro de minha mulher - como um côjuge sempre o é. O ônus da convivência diária começara a entornar-se todo de uma vez sobre minha cabeça; já Martim esquivava-se como toda visita alvissareira faz, assim que sua companhia latente começa aborrece os anfitriões. A concorrência tornara-se desleal. Sentia-me acuado, desrespeitado. Quis voltar aos tempos de parlatórios com Marta e ela não se interessava mais; desaprendeu a ter comigo, ao passo que com Martim seguia falando de tudo; tinham cada vez mais e acerca de tópicos cada vez mais estranhos a mim. Isso me intrigava, já que, no ambiente de trabalho, Martim não revelava qualquer interesse ou mesmo que soubesse de algo do que danava a falar em minha sala de estar com minha mulher. Era como se guardasse tudo para ela. Um ciúme dúplice traspassava-me; perdia amigo e mulher à medida que ambos se sintonizavam mais; sentia vontade de matar Martim e o invejava por ter de Marta o que me escorria das mãos. Já percebia que cruzavam olhares lânguidos. Será que isso teve início agora? Há quanto tempo tramavam às minhas costas?
Passei a patrulhar a vida de Martim. Pensei em um detetive, mas os dois que contatei eram rudes, pareciam ter saído dos filmes policiais da Tela Quente. Aqueles clichês, o cigarro, o bloquinho de notas... Passei a odiar aquela raça rapineira. Um amigo policial – um dos poucos que não tinham também a Martim na conta dos colegas – ofereceu o serviço de um larápio que lhe devia um favor, mas que, segundo ele, sabia das coisas; se houvesse traição, logo descobriria. Em uma semana e meia seguindo-o, o detetive disse a meu amigo que Martim ia da casa para o trabalho e só; só estivera com Marta quando reunimos toda a família para comemorar o aniversário de Pedro. Agradeci ao PM amigo e lhe pedi que guardasse esse segredo e que se esquecesse, se possível, que lhe pedira favor tão sórdido. Ele entendeu; também já havia recorrido à persecução de um terceiro para desbaratar a traição da mulher. Quando quis saber o desfecho do episódio, desligou o telefone celular. Nunca mais lhe liguei ou falei com ele.
Meu ódio foi me consumindo mais e mais à medida que aprendia cada vez melhor a encortinar meus sentimentos.Entrementes, um ator temporão nascera em mim. A conveniência faz o ladrão, pensei. Não haveria nada que não pudesse aprender ou utilizar de expediente para tirar a limpo o que se escondia por detrás dos perfidiosos amantes... Amantes, isso que se tornaram.
Aos poucos fui juntando os cacos. Uma conspiração maliciosa e fria sustentara esse triângulo afetuoso até aqui. Por que Marta sequer quis tomar nota das informações que colhi sobre Martim quando fomos a Angra? Ela sabia que saíra para vasculhar a vida de Martim, ou será que essa que me traiu debaixo do meu nariz durante anos pensava mesmo que iria arrumar uma viagem cálida e repentina ao mar? Nunca fora dessas coisas. Mais do que ninguém, Marta podia ler na minha mudança de hábitos que eu fora atrás da verdade. Ela estava acordada quando cheguei da rua. Eu fingi que não percebi quando me abraçou. Como sabia que estava ali, a partir daquele momento? E ela, com desfaçatez, me envolveu num gesto peristáltico, típico de casal, daqueles que, mesmo dormindo, não se deixa de fazer.
Marta e Martim me traem. Como se somente isso não bastasse para matá-los, humilhá-los; roubaram-me o afeto dos meus filhos; lenta e premeditadamente, jogaram-me para longe da vida deles; Se não fosse o costume, nem teriam de recorrer a mim para coisas básicas, como um beijo, um “parabéns, pai, pelo seu aniversário”, um conselho ou a mesada. Tudo o que se tornara minha vida já poderia ser feito sem minha aquiescência. Até as fodas da minha mulher.
Marta e Martim...
Amanhã é Sábado. Vou até Angra novamente.