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quinta-feira, 9 de junho de 2011

De volta para casa


1
            Dois homens distintos se encaravam secretamente em uma sala estranha. Uma sala branca como o nada, com os bancos e paredes acolchoadas na qual dava uma vaga sensação claustrofóbica e anafórica. Pois a cada minuto passado, as mentes de ambos trabalhavam em conjunto, assimilando a ideia de estarem em uma caixa, já que não havia portas, janelas, câmeras e saída de ar.
            De um lado da sala, um sujeito negro com as laterais da cabeça já grisalhas, uma expressão cansada e com a preocupação em seus olhos. Preocupação que não era pelo oxigênio que poderia acabar a qualquer minuto, e sim, por algo que parecia estar a quilômetros de distancia. Seu nome era Aroldo Ricardo, tinha 42 anos e a principio, não sabia como fora parar naquele lugar.
            No lado oposto de Aroldo, um homem alto e atarracado, com uma cicatriz que formava uma linha rubra em sua face. A cicatriz tracejava um percurso que ia da maçã esquerda do seu rosto a sua orelha. Os cabelos eram longos, desgrenhados e dourados. Seus olhos eram num azul faiscante e exibiam-se em certa pericia assassina, sua expressão era rude e seu olhar também denotava uma preocupação distante. Seu nome era Artur Romero, tinha 28 anos e também não fazia ideia de como fora parar naquele lugar.

2
            Aroldo jamais vira um homem como Artur em sua vida, talvez em um filme medieval ao estilo O Senhor dos Anéis, Conan, dentre outros. As roupas daquele homem eram primordiais. Vestia um felpudo e esquálido casaco de pele num rústico marrom. Suas calças eram de um tecido que Aroldo não reconhecia. O loiro usava botas longas e surradas feita a couro de búfalo e emanava um nauseante odor de sangue misturado ao suor.
            Em contrapartida, Artur também estranhava aquele homem, porém, o fitava com certa fascinação. Jamais acreditara que pudessem existir homens com a pele cor de ébano; sempre achara que as terras áridas de Adiv, não passavam de lendas dos livros de Esnen, seu reino.
            As roupas daquele homem eram de um tecido jamais visto por aqueles olhos azuis faiscantes. O homem de Adiv tinha prata em seu pulso e ouro em um de seus dedos. Vestia uma blusa esportiva branca, calça jeans e um par de tênis Adidas.
            - Com licença... – disse Aroldo meio hesitante rompendo o silêncio – Por acaso faz ideia de como viemos parar aqui?
             Fascinado, Artur Romero apenas maneou a cabeça numa negativa. Não conseguia emitir um simples monossílabo, tamanha a sua excitação em falar com aquele homem cor de ébano.
            - Merda. – Rosnou Aroldo Ricardo.
            - Qual é o seu nome? – Perguntou Artur quebrando a timidez, porém não a fascinação.
            - Aroldo e o seu?
            - Artur Romero. – Respondeu o loiro desgrenhado.
            - Romero, grande Romerito, “Eu quiero mi dinero”.
            Artur franziu a testa não entendendo nada. Aroldo percebeu e explicou:
            - Romerito do Fluminense, campeão brasileiro em 84, não se lembra?
            - Artur novamente meneou a cabeça em negativa.
            Naquele momento, Aroldo Ricardo já divagava a possibilidade de estar em um hospício. O que há de errado com esse cara? Ele pensava.
            - De onde você é? – Perguntou.
            - Província do Leste do Reino de Esnen.
            - Como? – perguntou Arnaldo sobressaltado – Onde fica isso?
            - Não conhece o grande Reino de Esnen? – Indagou Artur Romero aturdido; em sua concepção, não poderia existir uma pessoa que desconhecesse a sua terra – Somos o reino mais poderoso das terras do norte. E você? A qual reino pertence?
            Emitindo um sorriso ambíguo entre perplexidade e complacência, Aroldo Ricardo respondeu:
            - De nenhum reino, aliás, já fomo um reino há alguns séculos, sou do Rio de Janeiro.
            A cara de Artur dizia que ele desconhecia a cidade maravilhosa, contudo, aquele assunto de reino o interessou.
            - E sob qual coroa pertencia seu reinado?
            Esse cara não pode estar falando sério. Pensava Aroldo antes de responder:
            - A coroa portuguesa, conhece? Portugal? Península ibérica?
            Artur novamente meneou a cabeça em negativa.
            - Ora como não? Falamos português, como pode desconhecer Portugal?
            - Português? – replicava Artur – Estamos conversando em Acnoc.
            - Acno... O quê? – surtou Aroldo – Bem isso já foi longe demais! – dizia em um tom de voz mais abrasivo – Minha esposa estava em trabalho de parto quando minha sogra me enviou uma mensagem e eu irei processar o responsável por isso!
            Ao ver a exaltação de Aroldo, o atarracado Artur se levantou pondo-se em alerta, pois naquele momento, ele também não confiava naquele cidadão. A fascinação havia acabado.
            - Calma ai rapaz, eu também estou preocupado com minha família e se não usarmos a cabeça, não voltaremos para casa. – Retrucava.
            Intimidado pelo tamanho de urso de Artur Romero, Aroldo não se viu com muitas opções que não fosse conter seu ímpeto. Caminhou de um lado ao outro naquele claustro branco e perene enquanto o gigante o supervisionava.
            De súbito, ele pôs-se em ataque contra as paredes acolchoadas daquela sala. Seus socos faziam ruídos surdos quando atingiam aquela superfície.
            - Me deixe sair! – ele bramia – Não são capazes de perceber que eu não sou louco? Eu não sou um louco! Meu nome é Aroldo Ricardo de Sá, tenho 42 anos, sou professor de inglês, moro na Rua Barcelos Domingos em Campo Grande e quero sair!
            - Cale a boca! – Gritou Artur.
            - Me deixe sair!- Insistia Aroldo.
            - Cale a boca!
            - Cale a boca você!
            Sem opções, Artur cerrou o punho direito com seus dedos nodulosos apertando a palma da mão formando uma espécie de marreta humana, atingiu Aroldo bem na boca do estômago em seguida.
            Aroldo por sua vez, perdeu todo o fôlego que usava para explodir em berros caindo de joelhos.
            - Não entende Aroldo? – dizia Artur enquanto o professor resfolegava - Será que você não compreende que se não mantivermos a calma, jamais sairemos daqui? Vamos por a cabeça no lugar e pensar.

3
            Eu finalmente voltava para casa após 7 meses longe servindo nas altas fronteiras do sul. Nossa comitiva já estava na Floresta Negra e em dois dias, já estaríamos na Província do Leste. Entretanto, a neve cobria toda a vastidão relvada da floresta fazendo nossos pés afundarem até as canelas como se fossem enterrados em uma cova rosa, aquilo poderia nos atrasar. Jamais havia visto uma nevasca tão avassaladora.
            A brumosa nevasca não apenas empalidecera a Cordilheira Cox como a floresta em um todo. As árvores eram penumbras contra aquele ambiente baço. Depois de anos, finalmente pude compreender o motivo pelo qual aquele lugar ganhou o nome de Floresta Negra. Os corvos crocitavam nos galhos das árvores enquanto espreitavam a nossa diligência. Uivos chegavam a nossos ouvidos em um assobio agudo e entrecortado pelo vento.
            - Os lobos de Ognem. – Disse Assis, o líder da nossa comitiva.
            Porém ele estava enganado, não eram simples lobos, eram as bestas da lua cheia, os lobisomens de Ognem.
            A noite caíra tão baça quanto o dia. A nevasca açoitava o acampamento e o vento gélido sibilava em fúria. Os estandartes sacolejavam em pleno vigor formando um ruído farfalhante. Os uivos estavam cada vez mais próximo e a comitiva, não só tremia de frio como de medo.
            Todos se puseram em alerta quando a neve que cobria a relva passou a emitir ruídos de passadas ávidas. Uma lua de sangue brilhava por de trás das nuvens cinzentas lá de cima. O vento no qual nos posicionamos contra, trazia o cheiro deles, o cheiro de morte.
            Acredito que Alpai fora o primeiro a gritar quando os lobisomens atacaram. Espadas em desesperos foram desembainhadas formando um retinido metálico na homicida orquestra da noite. Gritos vieram em seguida. Meu coração palpitava como se quisesse sair do peito. Eu não queria morrer antes de vê-los por uma última vez. Queria ter a certeza que estavam bem. Desembainhei minha espada e pus-me a correr em desespero.
            Senti que algo me perseguia velozmente, minhas pernas não eram longas o suficiente e a neve cobrindo as minhas passadas, só dificultava a minha fuga. Esgueirei-me por entre uns arbustos saindo em uma clareira, quando tropecei em um galho que se salientava sobre a neve, ficando a mercê da besta que vinha atrás de mim.
            Jamais havia encarado olhos tão assassinos e febris. Aquele amarelo penetrante me fitando com avidez, fazia que eu percebesse que o fim era questão de minutos. Pude sentir o quente hálito putrefato da morte emanando daquelas presas afiadas. Involuntariamente, olhei para a lua sangrenta ao invés de apertar o cabo da espada e lutar por minha vida. Aquele olhos me hipnotizaram enquanto os meus ficaram contemplando a rubra senhora da noite.

4
            Aroldo Ricardo estava sentando abraçado com as pernas em uma posição fetal, quando Artur se levantou de súbito com a sua expressão empalidecida.
            - O que aconteceu? – Perguntou Aroldo.
            Artur Romero pôs a mão sob seu esquálido casaco e começou a tatear seu corpo em inspeção. Ergueu a mão diante de seus olhos e pôde ver que as pontas de seus dedos estavam manchadas de sangue.
            - Eu já sei o que aconteceu conosco. – Disse por fim.
            Aroldo desfez a sua posição fetal e pôs-se a levantar esperançoso.
            - Então diga.
            Artur olhou para ele solenemente antes de responder.
            - Estamos mortos.
            A face de Aroldo se contorceu em desilusão.
            - Sabe o que eu acho? – disse ele – Acho que você é um louco e estamos em um hospício.
            - Não sei o que é um hospício, mas não estou louco, Aroldo, tive um vislumbre de tudo o que ocorrera antes de acordar aqui, estava voltando para casa pela Floresta Negra quando os lobisomens de Ognem nos atacaram.
            - Lobisomem? – ironizou Aroldo em um sorriso que por pouco não se tornou um choro angustiante – Lobisomens não existem, Artur.
            - Talvez sejamos de tempos diferentes, ou até mesmo de mundos diferentes. Mas o caso, é que estamos em VERDENS AV SJELEM, o mundo das almas.
            - Você é louco! – bramiu Aroldo apalpando o seu corpo – Está vendo? Como posso estar morto se consigo me tocar?
            Artur mostrou seus nodulosos dedos manchados de sangue. Aproximou-se de Aroldo imperando:
            - Está vendo? É o meu sangue!
            - Fique longe de mim! – retrucou Aroldo em um grito. Virou-se para a parede acolchoada e tornou a bater contra ela emitindo uma série de ruídos surdos – Eu não sou louco! Eu quero sair daqui!
            Um ruído diferente dos socos dos professor contra as almofadas ressoou naquela parede, Aroldo parou hesitante e passou a tateá-la. O local emitia um trinado metálico. Ele pôde sentir a parede mais maleável e, tacitamente, passou a empurra-la. A parede cedeu sem dificuldades abrindo uma saída para ele e Artur. Sem hesitar, deixaram aquela sala claustrofóbica para trás.
            Um longo corredor de paredes, teto e pisos brancos os aguardavam. Os faiscantes olhos azuis de Artur Romero e os fuliginosos olhos de jabuticaba de Aroldo Roberto fitavam uma alvura que era a apoteose de todas as alvuras. Um branco infindável que de tão intenso, chegava a ofuscar lhes os olhos. Aroldo pôs-se em súbita caminhada; para ele, só interessava sair daquele lugar e voltar para sua mulher e filha que já teria nascido naquela altura do campeonato.
            Artur também se pôs em caminhada. Para ele, já não mais havia esperanças, contudo, teria que seguir para o grande criador onde seus atos heroicos seriam julgados e recompensados, e acima de tudo, teria que seguir para sanar uma dúvida que o atormentava.

5
            Após uma hora de caminhada, o corredor Alvo finalmente chegara ao fim. Diante deles, uma porta que Aroldo inferiu como a de um consultório médico. Fixado a porta, uma plaquinha negra com os dizeres em dourado: ORÁCULO ENTRE SEM BATER.
            Sem pestanejar, Aroldo Ricardo girou a maçaneta e uma luz ofuscante fulgiu lá de dentro assim que a porta fora aberta.
            Os dois entraram na sala com as mãos erguidas na altura dos olhos improvisando um escudo. Assim que o fulgor cessou, Artur e Aroldo puderam observar uma figura sentada atrás de uma mesa da mesma cor – branca. A figura era de conhecimento de ambos, porém embora fosse uma única pessoa, ela não era vista de forma singular.
            O oráculo aos olhos de Aroldo tratava-se de seu velho professor da faculdade, Leandro.  A pessoa cujo ele julgava a mais inteligente que já conhecera. Aos olhos de Artur, o oráculo nada mais era que Ivan Magnusen, o grande sábio das épocas memoriais dos reinos do norte.
            Artur Romero que já tinha a certeza de estar morto pôde aquiescer com a ideia ao ver o sábio que morrera 300 anos antes de seu nascimento. Na cabeça de Aroldo, só existia a ideia de sair daquele lugar e ir para os braços de sua família. Todavia, a assimilação de estar em um hospital psiquiátrico já não era tão evidenciada quanto antes. Um silêncio de consternação.
            - Muito bem, senhores – disse o oráculo – só responderei uma questão, logo não a desperdicem.
            Aroldo olhou para Artur antes de voltar o olhar para a expressão bonachona de seu velho professor de literaturas. Uma pergunta apenas não resolveria nada, porém lhe veio à mente a mais essencial de todas. “Como eu saio daqui?”
            Artur que fitava febrilmente Ivan com sua barba dourada cobrindo toda a extensão de seu rosto severo conjecturava uma questão que poderia sanar todas as dúvidas.  Entretanto, o atarracado gigante das terras do norte, percebeu a ávida inquietação em Aroldo e o conteve bem na hora que as palavras saiam de sua boca.
            - Como eu...
            - Espere Aroldo!
            Aroldo se interrompeu diante do berro de Romero.
            - Esperar por quê? – ele retrucava – Não quer sair daqui?  Vamos perguntar como podemos sair desse pesadelo, pois está claro que nada disso pode ser real.
            - Não, isso não é um pesadelo, e sair desse lugar não trará respostas.
            - Fodam-se as respostas! Eu só quero ir para a minha família, não quer rever seus filhos e voltar para seu lar seja lá onde ele fica?
            - Não seja tolo, Aroldo, você até agora não soube perceber o que aconteceu.
            - E qual pergunta acha que devemos fazer? Se os alienígenas existem?
            - Não, mas eu tenho uma que poderá solucionar tudo.
            Contrariado, Aroldo se emudeceu. Suspirou e concebeu a Artur Romero a pergunta crucial.
            Artur pigarreou em solenidade antes de fazer a tal indagação.
            - Como podemos chegar ao responsável por tudo isso?
            O oráculo apontou para sua direita e uma porta que eles não haviam percebido estava em um canto daquela sala. A maçaneta era o único ponto negro naquele local junto de uma plaquinha com os dizeres: ESCRITOR.
            - Atrás daquela porta está a resposta. – Limitou-se o oráculo.
            Embora não tenha gostado da pergunta de Artur, Aroldo não pôde discordar que ela não havia sido criada a esmo. No fundo, tal indagação de fato fora coerente, afinal, a tal pessoa que poderia sanar todas as dúvidas, poderia responder diversas questões.
            - Que lugar é esse afinal? – Perguntou Aroldo ao oráculo, no entanto, não obteve respostas. Seguiu até a porta.
            Com dificuldades, por nunca ter lidado com uma maçaneta na vida, Artur a abriu. A mesma luz ofuscante os envolveu e eles adentraram naquele fulgor.


6
Ao cruzarem o umbral, Aroldo e Artur se viram em um ambiente no qual um deles apenas podia reconhecer.
            Um quarto pouco arejado com um odor de suor impregnado e algumas roupas despojadas pelo chão. Dentre cuecas, meias e outras peças, destacava-se uma blusa que um dia fora preta com a estampa do Metallica. A cama de solteiro jazia desarrumada com o cobertor desdobrado na extremidade oposta a cabeceira. Na parede, havia o pôster do Fluminense campeão brasileiro de 2010 ao lado, o pôster de Dario Conca, craque daquele ano.
            - Dois mil e dez? – Rosnou Aroldo aturdido, estaria ele 3 anos adiante de seu tempo?
            Um computador com a tela de descanso dançando sobre o monitor permanecia ligado defronte a uma cadeira helicoidal. Inúmeras garrafas long neck de cerveja jaziam vazias sobre a mesa do PC. Ao lado do computador, uma escrivaninha com a prateleira superior repleta de livros empoeirados, servia como um suporte para a faixa purpurinada do título brasileiro do Fluminense. Uma incoerente euforia assolou o perturbado espírito de Aroldo. Fomos campeões em 2010? Ele pensou.
            - Que lugar é esse? – Perguntou Artur.
            - Parece ser o quarto de alguém.
            Passos ecoavam não tão distantes atrás da porta fechada. Alguém se aproximava vindo pelo corredor que antevia aquele cômodo. Experiente, Romero pôs-se em imediato alerta. Aroldo olhava com apreensão a maçaneta girando lentamente; a pessoa que poderia resolver tudo estava prestes a entrar em cena.
            Assim que a porta se abriu, Aroldo e Artur viram um sujeito magro de pele parda, os cabelos cortados à máquina 2 e uma pequena pança protuberante resultado de bebedeiras constantes.  Enrolado em uma toalha, o sujeito arregalou os olhos em um horror abrupto. Seu queixo pendeu para baixo em perplexidade e a única coisa que pareceu vir à cabeça dele, era fugir dali.
            O sujeito girou sobre os calcanhares e ameaçou a pôr-se em fuga daquele quarto, todavia, Artur esticou seus fortes braços e o agarrou pelo pescoço puxando-o de volta. O gigante atarracado jogou o homem para trás que se chocou contra a escrivaninha que oscilou. Uma meia dúzia de livros caíram sobre ele.
            - Não me matem, leve o que quiserem, mas não me matem.
            - Cale a boca! – Rosnou Aroldo.
            O sujeito assustado o obedeceu. Porém passou a observar Artur com certa atenção até que um brilho de fascinação cintilasse em seus olhos castanhos.
            - Não acredito que você... É impossível, você não pode existir.
            - Como assim? – Perguntou Aroldo com a pulga atrás da orelha.
            O homem fora se levantando lentamente. O medo não mais existia em sua expressão, porém a perplexidade ainda permanecia iluminando aquela face vividamente.
            - Você por acaso é do reino de Esnen?
            Artur afirmou que sim com a cabeça.
            - Não, isso não pode ser verdade. Acho que estou bebendo demais.
            - Por que isso não pode ser verdade?
            - O nome José Gustavo Varela não diz nada a você? – Indagou o homem.
            Artur replicou gesticulando negativamente. Olhou para Aroldo que também gesticulava que não.
            - Imaginei – disse o homem – José Gustavo sou eu. Sou um professor de literaturas e escritor nas horas vagas, e você – apontou para Artur – você é uma de minhas personagens.
            Os olhos de Aroldo Ricardo se arregalaram em sua perplexidade. A situação ficava mais insólita a cada momento, e sua mente, era um bolo de cartas desembaralhadas.
            - Isso já está indo longe de mais. – Rosnou.
            José olhou para Aroldo e perguntou qual era o seu nome. O professor respondeu e o escritor começou a estalar os dedos repetindo.
            - Aroldo, Aroldo, Aroldo... Aroldo Ricardo do conto HIV?
            Aroldo balançou os ombros não entendendo.
            - Meu Deus! – exclamou José Gustavo – É como no livro A canção de Susannah. Como vieram parar aqui?
            - Não fazemos ideia, o oráculo nos indicou. – Respondeu Artur em um tom seco.
            - Escute – interrompeu Aroldo – não acha que vamos acreditar nessa baboseira não é?
            - Sinceramente Aroldo, nem eu estou acreditando que isso esteja acontecendo. – José se encaminhou para a mesa de seu computador, abriu uma gaveta e de lá puxou dos livros não muito grossos.
            - Esse romance se chama a Floresta Negra, é sobre um mundo medieval que retrata um embate entre dois reinos.
            - Esnen e Ognem. – Complementou Artur.
            - Exatamente! – afirmou José – E em meio a esse embate, uma sinistra doença assola o reino do norte.
            - A peste negra. – Disse Artur.
            - José assentiu e prosseguiu.
            - Se repararem, Esnen e Ognem tratam-se de Nense e Mengo escrito ao contrário. Nunca fui bom em criar nomes e tudo em Esnen tem a relação com o Fluminense, a língua Acnoc, Conca ao contrário dentre outros. Você é da infantaria real estou certo? – Perguntou a Artur.
            - Infantaria real, província do leste, oitava geração dos Romeros.
            José emitiu um sorriso amarelado.
            - O curioso nessa história, é que vocês sequer eram personagens relevantes à história, eram meros coadjuvantes usados para preencherem algumas páginas.
            Artur e José estavam em um diálogo de plena fascinação. Aroldo por um momento, havia ficado de segundo plano e apenas ouvia a confabulação não acreditando no que ouvia. Ele era apenas uma personagem de um livro? Não, era loucura demais.
            - Pelo que entendi – dizia Artur – você é o grande criador.
            - Sim... É, podemos afirmar que sim, na medida do possível. – Respondeu José Gustavo sem muita convicção.
            Artur em uma atitude surpreendente ajoelhou-se diante de José em solene reverência.
            - Meu grande senhor, em nome de minha linhagem eu o saúdo e ponho-me disposto a ser julgado pelas minhas bravuras.
            - Ei cara, não se ajoelhe –contemporizava José – não me trate com seu deus, por que seu deus também não passa de uma mera personagem... Cara é muita loucura, em todo caso, eu sinto muito por sua diligência, não pude imaginar que um dia... – o escritor sentia-se mal, a culpa pela guerra, pragas e mortes caíam sobre seus ombros - Levante-se Artur, o seu senhor não existe no mundo em que estamos, assim como você não existe, pois não pertence a realidade.
            Embora parecesse uma resposta bastante complexa para Artur, ele compreendeu de imediato, pôs-se de pé desculpando-se pela confusão.
– Então o grande criador está em meu mundo?
- Isso. – Respondeu José surpreso pela imediata compreensão daquele sujeito.
- Apenas mais uma coisa. – Falou o gigante em complacência após anuir com a informação.
- Pois não. – Replicou o solícito escritor.
- Minha família, eles sobreviveram a peste?
José não poderia dizer que sim tampouco dizer que não, no entanto, que mal faria mentir para ele? Que mal faria confortar uma alma perturbada que não deveria existir?
- Sim Artur, eles sobreviveram.
Artur sorria enquanto sua imagem embaçava até desaparecer por completo. Sua família era a única dúvida que carregava desde que a notícia da peste sobre Esnen chegara às altas fronteiras do sul.
Romero tirara um peso da consciência com aquela notícia, para onde é que tenha ido, fora com a alma em paz.

7
Já vestido, José Gustavo tentava convencer Aroldo Ricardo que ele não pertencia ao mundo real.
- Como ainda possam existir dúvidas em sua cabeça depois do que vimos?
Sentado sobre a cama com os dedos enlaçados sob o queixo, Aroldo elaborava uma defesa de modo que pudesse convencê-lo que era real; acima de tudo, que pudesse convencer a si mesmo.
- Como eu não posso ser real? Releia o trecho do conto que supostamente eu provim.
José Gustavo abriu o pequeno livro de 120 páginas e releu o tal trecho dum enredo que narrava a história de Alex Nunes, um cantor de pagode que após descobrir que tinha HIV, resultado de seus secretos casos homossexuais, pôs-se em uma louca corrida Rio de Janeiro afora com seu Lamborghini em alta velocidade.
Antes de reler, o escritor pigarreou.
- Aroldo Ricardo também tinha pressa naquela tarde crepuscular de fim de outono. No entanto, ao contrário de Alex Nunes, a sua pressa se devia a uma ansiedade distinta. Uma nova vida estava para vir. Sua esposa, taxada pelos médicos como infértil, estava dando a luz a sua filha. Nada impediria o professor de inglês de 42 anos de acompanhar de perto o surgimento de sua prole dada como improvável. Nenhum médico poderia desengana-lo agora, ninguém poderia detê-lo, exceto a morte rubra.
Aquela morte de 670 cavalos que ao perder a direção no sentido oposto da Avenida Brasil, atravessou a mureta atingindo em cheio o Gol geração 3 do professor residente de Campo Grande, torcedor do Fluminense.
O impacto fora fulminante e entre as latarias amassadas, fluídos e sangues escorridos, restara apenas os olhos de Aroldo brilhando em esperança de ver a sua filha. Contudo, fitavam o nada.
- Como eu posso ser essa personagem de passagem curta se me lembro da minha infância, da minha adolescência, de minha primeira namorada, da faculdade e tudo mais?
- Como eu posso saber? – respondeu José Gustavo irritado – Estou tão surpreso quanto você. E pior, estou me sentindo péssimo, afinal eu matei vocês na história.
- Eu não estou morto!
- Não interessa, o fato é que você não deveria estar nesse mundo, nessa realidade, que seja. Se você não sabe como veio parar aqui, como eu poderei saber?
- Por que o cantor não morreu na história? – Perguntou Aroldo.
- Como?
- Por que o cantor não morreu na história já que ele foi o causador de tudo? Por que teve de ser eu?
- Eu não sei! Gosto de perturbar os leitores. Uma bateria tem um polo positivo e negativo, e eu sou bom nas coisas negativas.
- Estamos em Campo Grande não é?
O escritor meneou a cabeça afirmando.
- Se eu abrir a porta de seu quarto e de sua casa consequentemente, sairei lá fora ou em algum outro cubículo acolchoado?
- Como poderei saber Aroldo. – Respondeu José em uma voz diminuta.
O professor de inglês pôs-se de pé e olhou para o escritor por um longo segundo como se aquele olhar o obrigasse a dizer que tudo aquilo não passava de uma piada bem bolada. No entanto, José sentou-se em seu computador dando-lhe as costas. Ele girou a maçaneta do quarto e do apartamento em seguida.

8
Estava lecionando no Pedro II quando recebi uma mensagem de texto de minha sogra. A bolsa de Marta havia estourado e elas já estavam a caminho do hospital.
Saí da escola com um imenso frio na barriga, nem na final da Copa do Brasil tive aquela sensação. Vislumbres de todas as decepções que tivemos sobre os diversos exames que Marta fizera comprovando sua esterilidade, vieram à tona. Meus olhos marejaram e as lágrimas foram inevitáveis. Bianca, de certo seria o símbolo vivo de que milagres acontecem.
O céu alaranjado pelo pôr do sol parecia homenagear a vinda de Bianca. Jamais havia visto um céu tão sinuoso e belo. À minha frente, apenas a Avenida Brasil que em 20 minutos, estaria congestionada pelo tradicional e enfadonho tráfego do fim da tarde. Aquela quarta feira era um típico dia que se podia considerar como um dia de sorte. Em 30 minutos, estaria no hospital ao lado de Marta. Seria o acontecimento mais feliz de minha vida desde que ela anunciou a gravidez.
A ansiedade havia diminuído pela música que tocava no CD player. Eu cantarolava e tamborilava os dedos contra o volante acompanhando o ritmo da canção, quando um barulho violento vindo da minha direita me fez perder toda a percepção de realidade.
Subitamente, tudo pareceu estar em um mundo auxiliar, o som do metal contra o concreto da mureta divisória ressoava amplificado em meus ouvidos. Podia ouvir perfeitamente os estilhaços da mureta chocando-se contra o asfalto, o ar sendo deslocado formando um vácuo mortal e o motor roncando como metralhadores uivantes. Vi-me em um túnel onde cenas da minha vida eram exibidas em incontáveis banners. Será que era isso que as pessoas falam que diante da morte, toda nossa vida passa pelos nossos olhos?
Senti um impacto na lateral do meu carro, os vidros das janelas se estraçalharem e a brisa vespertina em um acalento mórbido.
Algo se chocou contra minha cabeça fazendo meus ouvidos zunirem. Podia sentir o cheiro de meu próprio sangue que escapava das minhas narinas. Uma pressão passou a retesar meus músculos e ossos e pude ouvi-los rompendo e quebrando como varetas secas.
Uma luz passou a cintilar no final daquele túnel. Túnel que era a minha conexão com outro lugar. A minha própria estrada da morte, construída e pavimentada para uma única ocasião.
Meu carro e corpo estraçalhados ficavam para trás enquanto eu seguia até a luz no limiar do túnel, um último banner exibia a imagem de Marta acariciando a sua barriga de oito meses de gestação.

9
Aroldo Ricardo já estava na Barcelos Domingos quando aquele vislumbre desolador o perturbou. A horrenda clarividência o fez caminhar com menos avidez; de alguma forma, a tímida confiança que ele insistia em alimentar se esmorecia à medida que as imagens vívidas de seu acidente surgiam diante de seus olhos.
- Não, eu não posso ser uma simples personagem.
Contudo, Aroldo pouco a pouco ia percebendo que não só pertencia aquele mundo, como tinha morrido no seu.
- Quando eu cruzei aquele túnel entrando naquela luz, certamente sai naquela sala acolchoada, pois é somente isso que consigo me lembrar até então – eu dirigindo para o hospital e um carro que perdeu a direção na pista oposta me interrompendo e estraçalhando.
A Barcelos Domingos não estava tão distinta da rua que o professor conhecia. Aquilo chegou a lhe dar um curto segundo de esperança de que acordara de um coma de 4 anos, que chegaria a sua casa e veria a esposa e sua filha já crescidinha. Todavia, sua casa não passava de um monte de entulhos e escombros empilhados. O matagal alto ultrapassava a altura do muro repleto de pichações. A casa não parecia que fora demolida há alguns anos e sim, há muitos fazendo que o esquecimento reinasse naquele ambiente em seu trabalho lento e meticuloso.
O sangue escorria de seu nariz e ele olhava para aquele desolado terreno com um olhar distante, um olhar que transcendia as fronteiras das realidades ultrapassando as barreiras da compreensão. Um olhar que vislumbrava um mundo onírico existente apenas na mente de um escritor e nas mentes de algumas dúzias de leitores. Aroldo aparou uma gota de sangue que escorria de seu nariz com a palma da mão. Suas orelhas e olhos também sangravam em lágrimas de sangue. A ciência cruel de não pertencer a um local. A ciência cruel de estar morto em um mundo bem distante.
A figura de Aroldo Ricardo lentamente esmorecia diante daquela velha casa abandonada. Os transeuntes simplesmente o ignoravam como se sua presença fosse um espectro irrelevante, como se ele jamais ali estivesse em um paradoxo definitivo.
- Artur estava certo, estávamos mortos o tempo todo. José estava certo, não pertencíamos a este mundo. Mas, eu também estava certo, nós éramos reais. Por mais que neste patamar não passemos de meras personagens de um mundo fictício, para nós, a ficção não passa da mais nua e crua realidade. O oráculo nos trouxe ao responsável, um escritor mal sucedido que não tinha noção de quantas vidas estava tirando e de quantas famílias estava destruindo. Não sei se podemos reescrever algo que já está escrito e nem sei se vem ao caso pensar dessa maneira, mas seria bom se a minha história tivesse como final o famoso: “E viveram felizes para sempre.”. O túnel novamente me envolve e só espero que aquela luz que brilha lá no fundo me leve ao lugar certo dessa vez. Me leve para um lugar onde eu possa revê-las e viver meu conto de fadas pessoal, que me leve de volta pra casa.