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domingo, 22 de maio de 2011

O assassinato de Virgínia


1
A luxuriante lua cheia ornava aquela noite fria e brumosa de outono. O orvalho descia dos céus formando um tímido véu sobre a relva rasteira. Uma película alva que ficaria evidente assim que os primeiros raios de sol da manhã surgissem.  As lâmpadas dos postes bruxuleavam como as chamas das velas ante a corrente de ar. Minha projeção ora era lançada ao meio da rua, ora a sarjeta como um teatro de sombras. Caminhava em passos claudicantes segurando uma boa e velha garrafa de uísque 12 anos. Talvez a embriaguez ajudasse a me acalentar diante da gélida e soturna brisa que soprava inapelável farfalhando as folhas das árvores.
Olhares me espreitavam da penumbra enquanto os cães uivavam em um coro lúgubre e entrecortado. Os sinos da capela badalavam a meia noite. Sentado no banquinho de madeira da praça central da cidade, fiquei a escutar aquele som metálico e cru enquanto virava o último gole de uísque que usaria em uma ocasião de maior relevância.
Suspiros lançam fumaças de minha boca como um dragão cuspindo seu bafo ardente e devastador. Uma coruja começou a piar sobre uma amendoeira enquanto me encarava com seus assassinos e vítreos olhos amarelados. Olhos que vagueavam a hipnose e por pouco, não existia a sensação de estar sendo dragado para uma realidade onírica que no fundo, não seria de todo ruim.
Porém, o que mais me perturbava naquela noite pálida e obscura, era o que fazer com o corpo de Virgínia.

2
Não me lembro do que me motivou a me embebedar no fim daquela tarde. Virgínia e eu já havíamos passados por inúmeras discussões até piores do que a que ocorrera pela manhã. Nunca precisei me entorpecer para esquecer os fatos e sequer usei isso como uma desculpa deturpadora, mas o caso, é que eu simplesmente bebi, bebi e bebi e não conseguia lembrar-me de mais nada.
Quando recobrei a consciência, já no limiar entre a noite e a madrugada, minhas mãos estavam cobertas de sangue e Virgínia jazia morta sobre a cama na qual fazíamos amor. Meus olhos se arregalaram em pavor supremo. Vê-la ensanguentada com seus olhos abertos e ausentes de luz, sua boca escancarada delineando a sua expressão apavorada e de desagradável surpresa, fizera meus brios estremecerem. Um corte desenhara um sorriso sangrento em seu pescoço, sobre a cabeceira da cama, uma faca ensanguentada. Que para meu horror absoluto, haviam as marcas de meus dedos naquele objeto que a imolara.
Vomitei sobre meus sapatos e comecei a sussurrar uma litania de palavras sem sentidos e entrecortadas por soluços. Havia ido longe de mais e não poderia consertar com um pedido de desculpas ou um buquê de rosas como já fizera anteriormente. Ela estava morta, esticada na cama e ensanguentada. Uma repugnante e doentia ereção se assolou sobre meu pau; de alguma forma, fora excitante vê-la daquele jeito. Com seus cabelos negros e lisos caindo para fora da cama. Seus brandos seios protuberantes sobre a sua babylook do Iron Maiden. A sua sexy tatuagem no umbigo e a sua calcinha vermelha exposta, pois era assim que ela dormia, sempre à vontade. Uma excitação que rompeu o horror inicial.
Quando me vi apalpando seus seios e molestando a sua vagina seca e fria, como não poderia deixar de ser, se tratando da boceta de um cadáver, percebi que tinha que continuar bebendo. Não que a bebida viesse a me ajudar em algo, não que viesse a dar uma solução para aquilo, serviria apenas como um paliativo para afastar aqueles pensamentos perversos e doentios. Foi assim que tomei em mãos a garrafa de uísque e comecei a entornar enquanto forçava a mente tentando descobrir o que me motivou a matar Virgínia.
Vazio. Apenas um vazio a ser preenchido. Desde a minha entrada no bar de Agostinho até a hora que acordei sobre a minha poltrona com duas garrafas de vodca barata sobre meu colo. Uma chuva fina passava a cair sobre mim e a coruja no galho da amendoeira soltava um último piado de despedida antes de voar para os bosques de Dias Mendes. Não posso ser preso, estou no auge de minha juventude e não quero desperdiça-la atrás das grades. Era o meu pensamento. Contudo, a primeira coisa que teria a fazer era livrar-me de seu corpo. A meu favor, pesava a aversão que a maioria da cidade tinha para com ela e o fato de Virgínia não ter nenhum parente próximo. Sua falta não seria sentida nem tão cedo, e isso me daria tempo para tomar a melhor decisão.

3
A chuva forte caía em Dias Mendes com pingos frios e devastadores. O contato com a pele os faziam assimilarem a flechas geladas ou lanças de gelo. Sob a proteção de meu fuliginoso impermeável de vinil, eu fazia uma cova no coração do bosque sob o auspício da brumosa madrugada enquanto o corpo de Virgínia aguardava sob um tímido tecido manchado com seu sangue. Relâmpagos faziam o céu piscar em uma tonalidade baça. Criaturas se esgueiravam por entres os arbustos e outras espreitavam de cima das árvores como uma plateia de um espetáculo dantesco.
A profundidade da cova estava suficientemente boa. Mesmo se não estivesse o coquetel suicida que tomei durante o dia não me permitiria cavar um centímetro a mais. Vomitei antes de fincar a pá naquele solo miasmático e chorei com a testa apoiada no cabo daquela ferramenta.
Assim como havia um vazio em minha mente a respeito da cronologia do meu dia, havia também um vazio em minha alma. Um sentimento amargurado em ter que enterrar uma pessoa que embora não amasse, era uma ótima companheira e sempre estivera do meu lado em inúmeros momentos de minha vida fossem eles bons ou ruins. E pior do que enterra-la, era ter a certeza de ser o seu algoz. Definitivamente, Virgínia não merecia um funeral desses, mesmo toda a cidade achando que ela mereceria um pior, ela definitivamente, não merecia ser enterrada ao relento. Sob o úmido solo pantanoso, sem uma coroa de flores e um epitáfio com uma última homenagem lapidada.
Ao coloca-la em sua cova úmida e escura, fiquei a observa-la com certa fascinação, a maneira de como a morte havia lhe deixado bela, a maneira de como a sua pele alva e empalidecida contrastava na escuridão. A maneira de como a água ia preenchendo aquele buraco fazendo seus cabelos escorrerem pelo rosto, rosto que era manchado pelos pingos de lama deixando uma marca negra naquela alvura. Cobri-la, foi a pior parte do negócio. A cada pá de lama que eu pusera por cima de seu corpo inanimado, uma dor em meu coração lancinava como se uma mão espectral atravessasse a minha caixa torácica esmagando-o em um aperto homicida.
Todavia, quando os céus relampejaram delineando todo o cenário em um mar de silhuetas irregulares entre arbustos rasteiros e troncos de árvores colossais. O fulgor do relâmpago levou a sua diminuta claridade até as irregularidades contidas naquele cenário. Inclusive a cova que fora criada de maneira tão inatual. Nesse processo, o brilho dos céus me permitiu notar algo que não havia notado quando transportei o seu corpo. Uma coisa refletiu o pálido fulgor do relâmpago. Um objeto que estava na mão cerrada de Virgínia. Desci a cova esgueirando-me na lama e abri a sua mão pegando aquele curioso objeto.
Tratava-se de um crucifixo prateado. Um objeto que me deixou com a pulga atrás da orelha, afinal, Virgínia estava longe de ser religiosa e era convicta o suficiente a não se apegar nem mesmo em sua hora derradeira. Galhos estalavam em algum lugar da escuridão. Seriam passos? Seria alguém nas proximidades? Era improvável, porém não impossível. Pus o crucifixo em meu bolso e pus a enterra-la sem ao menos dar um último adeus.

4
Após limpar toda a sujeira em nosso quarto, queimei o colchão e tudo o que havia sido manchado pelo sangue de Virgínia. O velho depósito abandonado de Dias Mendes ao menos fornecia tal serventia. Quando terminei de me banhar e sentar em minha poltrona, os relógios já marcavam 4h20 da madrugada. A adrenalina dera um jeito em minha embriaguez, passei a divagar pelas irrealidades. Eu não poderia tê-la matado puro e simplesmente. Ela devia ter feito algo para que hediondo fato fosse consumado. Todavia, mesmo que Virgínia e eu tivéssemos um embate mortal, tal coisa só aconteceria por acidente. E ela fora degolada, morrera sufocada pelo próprio sangue empapado em sua garganta. Precisava de um drinque para afastar algumas ideias, principalmente, uma ideia pervertida de me excitar ao vê-la morta e ensanguentada.
- Meu Deus! – Eu resmunguei evocando o todo poderoso.
E tal exclamação me levou a relembrar do crucifixo que Virgínia segurava. Fui ao cesto de roupas sujas e o peguei no bolso da calça encardida. O encarei com olhos febris tentando entender o porquê ela segurava aquele objeto.
- Me diga o que houve, por favor, me diga o que houve. – Eu sibilava enquanto apertava aquele pequeno pedaço de metal querendo sorver todas as informações contidas naquele objeto inanimado.
Apertei até que os nós dos meus dedos ficassem esbranquiçados.
- O que você fazia na mão de uma pagã? O que você fazia na mão de uma pessoa que só lhe usaria de ponta cabeça?
As perguntas ficaram ao vento. Nada pode ser mais impotente do que um homem sem respostas. Porém, uma tímida chama ardia nas profundezas de meu subconsciente. Uma sensação imprecisa de que já tinha visto tal crucifixo em algum lugar. Mas onde? Por que tal coisa não me soava estranha de uma hora para outra? Será que realmente eu a matei? Será que existia outra possibilidade? Diante dessas dúvidas, esforcei-me para relembrar o máximo e juntar as peças. O quebra cabeça estava armado.

5
Pela manhã, Virgínia e eu fomos ao mercado como sempre fazíamos todo início de mês. Virgínia, como sempre, causava o mesmo reboliço e os olhares odiosos quando saía de casa. Vestia uma blusa de uma banda de black metal com a perturbadora imagem de Jesus esquartejado em um pentagrama. As senhoras resmungavam e ela parecia curtir aquele momento.
Entramos no mercadinho e para meu desembaraço, Carla estava ao caixa com seus cabelos loiros e seus sinuosos olhos cor de diamante. Virgínia odiava a maneira de como Carla lançava seus olhares, segundo ela, libidinosos para mim. Eu sempre contemporizei dizendo que Carla agia assim com todos até perceber que era só comigo. Assim que cruzamos a cortina de ar do mercadinho, a bela Carla me desejou um bom dia entoando uma voz íntima. A expressão de Virgínia se fechou de imediato e eu enrubesci, fizemos as compras sob seus resmungos.
Na hora de passar as compras, Carla me aguardava com seu solícito sorriso em seus lábios carnudos e molhados. Naquela manhã, percebi que mais do que tudo, ela fazia por mera provocação a Virgínia. De alguma forma, sabia que minha companheira a mal dizia todas as vezes que se dirigia a mim, e enquanto ela computava as compras, confabulamos sobre um assunto rápido e corriqueiro. Porém, o olhar dela deixava nas entrelinhas a sua intenção.
- Por que não marcam uma hora no motel?! – gritou Virgínia de imediato. Todos olharam para nós – Melhor, por que não tiram logo as roupas e comecem a foder aqui mesmo?!
Um alarido de vozes se formou. De alguma maneira, as palavras sujas de Virgínia afrontava aquela comunidade assim como os afrontava mediante a sua própria existência.
- Por favor, Virgínia. - Eu contemporizei.
-Por favor é o caralho! – ela insistia em gritar – Se quer foder com ela faça aqui mesmo, não fode!
Virgínia sabia mais do que ninguém, que a coisa que mais me irritava eram escândalos, e era isso que ela fazia todas as vezes que queria me irritar. Em um mercado relativamente cheio, a coisa se agravava. Olhei para Carla numa expressão desconsolada e ela me foi solidária.
Virgínia saiu aos tropeções esbarrando numas senhoras que embrulhavam suas compras nas sacolas. Duas caixas de sabão em pó chegaram a cair. As senhoras reclamaram timidamente pelo esbarrão. Uma mulher gorda que aguardava os seus filhos para ajuda-la com as compras, ameaçou a retrucar, porém, Virgínia anteviu o que ela iria dizer, assim como anteviu o que todos estavam pensando a seu respeito.
Virou-se para o mercadinho e com os dedos médios enriste, praguejou:
- Vão todos tomar em seus cus, seus cristãos de merda! Vão para o inferno!
Algumas pessoas chegaram a se benzer diante de tais palavras. Todos os olhares se voltaram contra mim. Olhares inquisidores que diziam “O que ainda está fazendo com essa mulher?” Porém, ela era uma boa companhia.

6
A primeira coisa que vi quando cheguei a casa com as compras, foram as minhas coisas todas espalhadas pelos cantos. Geniosa, Virgínia sempre quando era contrariada agia como uma criança mimada, e isso me davam nos nervos. Certo dia, após uma discussão, encontrei a minha camisa do Fluminense autografada pelos jogadores em retalhos. Deus sabe o quanto estive perto de agredi-la naquele dia, porém não fiz e não faria por menores como ver minhas coisas espalhadas. Continuamos a discussão aos berros, pois era impossível debater com ela em um tom de voz regular. Sai batendo a porta e danei a perambular sem um destino específico. Fazia tempo que não me via tão irritado, todas as vezes que a imagem dela vinha a minha mente em um vislumbre, a vontade era de explodir o mundo.

7
Entrei no bar de Agostinho e pedi uma Brahma. Precisava relaxar e uma geladinha não seria nada mau. Ao meu lado estava Sérgio, sua expressão dizia que começara a beber desde as primeiras horas da manhã. Na mesa de sinuca, próximo ao banheiro masculino – o único banheiro daquela espelunca – estavam os gêmeos Ruy e Fernando.
Velhos amigos da época de catecismo e crisma que o passar dos anos fez com que se tornassem apenas conhecidos, Fernando e Ruy cochichavam enquanto eu tomava a minha cerveja. Senti que cochichavam a meu respeito, fato que não era incomum, pois desde que iniciei meu relacionamento com Virgínia, o que mais as pessoas faziam era cochichar em minhas costas. Dei de ombros e comecei a beber, após alguns minutos, eles se aproximaram e me perguntaram se poderiam me fazer companhia. Disse que sim e os gêmeos se sentaram. Começamos a confabular enquanto bebia e...

8
... Lembrei! O crucifixo, o crucifixo que eu apertava com vivacidade era idêntico aos que Ruy e Fernando usavam. Será que eles me ajudaram a mata-la? Ou será que... Um bocejo interrompeu meu raciocínio. A manhã estaria prestes a chegar, e embora o cheiro de morte ainda estivesse adocicado de maneira perturbadora no ar, o cansaço físico e mental acabou prevalecendo. Umas horas de sono me faria bem. O vento chacoalhava as cortinas e quando menos percebi, já estava mergulhado nas profundezas do torpor acariciado pelo acalento das mãos de Hipnos.


9
Acordei por volta das 9h45. O sol radiava lá fora digno de uma manhã estival. Os pássaros cantarolavam em uma sinfonia jovial e plena. Por um instante, pensei que tudo estava bem, mas a dor de cabeça decorrente da bebedeira da noite passada teve a gentileza de me lembrar de imediato, que as coisas estavam feias. Lavei o rosto diante do espelho do banheiro e minha expressão não era nada boa. Pus a mão em meu bolso de onde tirei aquele crucifixo.
- Ruy e Fernando.- Murmurei.
Havia um silêncio pesaroso pelas ruas de Dias Mendes. Era como se as pessoas expressassem um tímido sentimento culposo por suas expressões fechadas e taciturnas. Algumas me olhavam de esguelha; a sensação era de que a qualquer momento, um policial me interpelaria pela rua acusando-me do assassinato de Virgínia. A sensação se agravou quando cruzei com Carla e ela não sorriu para mim. Agira como se estivesse olhando para a coisa mais horrenda do universo. O seu esgar de aversão para comigo, fez-me sentir o próprio Diabo caminhando em terras sagradas. Sorri para ela mesmo assim no intuito de manter as aparências, e em resposta, a vi atravessando a rua me evitando ao máximo.
Ruy e Fernando cochichavam defronte ao velho cinema abandonado da cidade. A face deles estavam mais suspeitas que a minha. Caminhei até eles com a certeza de que todos continuavam a me lançar olhares.
Quando me aproximei dos gêmeos, fora evidente o desconforto que eles demonstraram com a minha presença. Todavia, eu teria de ser meticuloso, não poderia chegar e perguntar se eles me viram, ajudaram, ou se eles mataram Virgínia. Por isso perguntei se poderiam me dizer o que eu havia feito após deixar o bar de Agostinho. Os gêmeos se entreolharam antes de me responder, pareciam que combinavam algo telepaticamente antes de qualquer precipitação. Nesse ínterim, notei que Fernando usava um crucifixo semelhante ao que Virgínia tinha em sua mão, e que Ruy usava apenas o cordão sem ter nada além de seu pescoço preso a ele. Talvez Virgínia tivesse arrancado e ele sequer havia percebido.
Fernando respondeu que havíamos saído do bar por volta das 19h. Após isso, eu havia tomado um rumo e eles outros. Óbvio que os gêmeos estavam mentindo e encará-los frente a frente, só me deu a certeza de que aqueles dois estavam envolvidos até o talo na morte de Virgínia.
Dissimularam e saíram pela tangente deixando toda a suspeita para trás como se suas culpas pudessem marcar de rubro as suas pegadas. Olhei por cima dos ombros e as pessoas estavam todas paradas me observando. Encarei-os por um longo segundo, e eles se deram conta ao seguirem suas vidas. Elas sabiam de alguma coisa, mas o que me interessavam naquele momento, eram os gêmeos Ruy e Fernando.
Segui os rubros rastros da culpa que deixaram para trás.

10
Há em Dias Mendes uma velha oficina semi desativada onde Ruy e Fernando passavam a maior parte de seu tempo quando não estavam na missa. Seguindo suas pegadas rubras, esgueirei-me pelo vasto pátio daquela oficina em busca de respostas. A manhã estival de súbito se transformou em uma manhã de outono. Um outono pálido e melancólico. Uma brisa forte e fria soprou chocalhando as ervas daninhas que cresciam sobre o terreno mal cuidado. Meus passos estalavam sobre a brita e os cascalhos. Um berro atarracado e agudo de um animal cortou o ar fazendo meu coração acelerar em batidas frenéticas. O animal em questão era um lúgubre e inoportuno gato preto. O felino me encarou por um instante e ronronou em afronto antes de se meter nas carcaças empilhadas de veículos. Ao fundo do longo terreno parcialmente abandonado cujo portão não oferecia nenhuma proteção, embora houvesse uma placa de cão antissocial, havia um pequeno galpão que julguei ser o destino daqueles dois.
A brisa gelada persistia em assoprar eriçando os pelos do meu corpo. Aproximei-me com cautela tentando fazer o menor ruído possível. A porta do galpão encontrava-se entreaberta. Pus-me atrás dela e fiquei a ouvir.
- Estou dizendo, Fernando, ele sabe, ele deve ter descoberto! – Dizia Ruy apavorado.
- Acalme-se, Ruy. – Replicava Fernando.
Os dois claramente discutiam e embora fossem gêmeos, Fernando sempre demonstrou mais segurança de si do que seu irmão 7 minutos mais jovem. Ruy era o típico idiota funcional que quando agia sozinho, só fazia merda. Talvez ele tivesse matado Virgínia por alguma atitude idiota. Pensei naquele momento.
- Ele vai nos denunciar, Fernando, eu não quero ser preso!
- Cale a boca! – gritou Fernando – Já disse para se acalmar. Ninguém será preso.
A discussão entre eles cessou quando esbarrei bruscamente numa placa de metal que escondia um buraco no muro. Rapidamente, acelerei-me para me esconder e acabei correndo para trás de um esqueleto de Volkswagen.
Eles saíram e para minha sorte, não perceberam nada.
- Eu vou matar esses malditos gatos! – Disse Fernando.
Por 20 minutos, eu permaneci escondido pensando em como aborda-los para extrair toda a verdade daquela dupla de filhos da puta. Ruy havia saído para algum lugar e naquele instante, lamentei por não ter agido.
Fernando mexia em um motor quando notou a minha presença em suas costas pensando ser o seu irmão.
-Ué, já voltou? – Ele disse pegando uma chave inglesa em uma mesa repleta de peças.
- O que você fizeram com ela, Fernando? – Eu perguntei.
Embora ele estivesse de costas, pude perceber que seus olhos se arregalaram em uma expressão de imediata surpresa.
Houve um sincero momento letárgico entre ele e eu. Minhas pernas oscilavam ansiosas pela verdade. Lentamente, ele ia se virando e sua expressão já demonstrava resignação.
- Vocês a mataram, Fernando. – Eu afirmei em uma voz incerta.
- Do que você está falando? – Ele replicava em dissimulação.
-Você e seu irmão mataram Virgínia! – Eu gritei.
Fernando franziu a testa formando um cenho.
-Você só pode estar bêbado ainda. Se bem que eu teria certo prazer em matar aquela meretriz de Satanás.
O sangue ferveu em minha cabeça e fumaças sairiam de meus ouvidos se estivéssemos em um desenho animado. Meus olhos percorreram rapidamente ao redor em busca de algo que eu pudesse usar para quebrar a cara de Fernando. Estrábicos, visualizaram uma barra de ferro com cerca de 60 cm de comprimento e de mais ou menos 2 quilos e meio. A barra estava sobre um balcão que suportava um velho esmeril.
- Se liga, cara – dizia Fernando – dê o fora antes que eu me aborreça ainda mais com você.
Todavia, seus olhos se arregalaram quando tirei do meu bolso o crucifixo semelhante ao que ele usava. O ergui contrariando todo aquele jogo sínico e escroto.
As palavras frias de Fernando se entalaram em sua garganta. Eu o encurralei em um beco úmido e sem saída.
- Encontrei isso na mão de Virgínia e percebi que o cordão de Ruy estava sem o crucifixo, exatamente este crucifixo.
Fernando fechou o semblante por um curto momento. Embora eu não tenha nenhum poder sobrenatural, pude perceber que seus pensamentos eram odiosos ao irmão.
Idiota descuidado.
Ele não percebia que eu me aproximava com ódio no coração pondo-me em uma distância fundamental.
A brisa lá fora insistia sibilante com seu gélido sopro fazendo o cata-vento de aço girar freneticamente.
- Por que vocês mataram Virgínia?
Fernando suspirou e em um movimento totalmente suspeito, descia a sua mão até a cintura com seus dedos tamborilando o próprio corpo.
Ele ia sacar uma arma. Eu pensei. Ele ia sacar uma arma e iria me matar e todo o caso seria sepultado na obscuridade do ostracismo. Eu tinha que agir depressa se não quisesse morrer ali mesmo. Minhas mãos anuíram à necessidade da sobrevivência. Absorveram todo um instinto num mundo governado sob a lei do cão. Absorto a isso, elas se fecharam com tenacidade a barra de ferro.
Antes que Fernando pudesse precipitar qualquer ação, eu em um movimento rápido que o surpreendera, lhe atingi com aquele metal maciço e avassalador bem no meio da cara. Ele caiu de imediato com a mão direita acariciando um volume sob a camisa e a mão esquerda segurando a chave inglesa. Seu corpo fizera um ruído surdo quando atingiu o chão. Caíra de maneira tão inanimada que naquele instante, pensei que o tivesse matado.
Verifiquei o volume que ele estava prestes a sacar e me estremeci ao ver que era realmente uma arma. Tomei aquele Trinta e Oito em mãos mais para desarma-lo do que para usar tal revolver em uma ação futura. No fim, assenti que havia batido forte de mais e que ele não levantaria nem tão cedo. Aquilo fora de fato frustrante, pois eu queria respostas imediatas. Por que eles a mataram? Será que ela os incomodava a tal ponto que os levaram a cometer tal coisa?

11
Duas horas se passaram e Ruy não dera sinal de vida. Os primeiros sinais de uma tarde cinzenta e melancólica de meados do outono já se configuravam nos céus de Dias Mendes. Percebi que ele não voltaria para a oficina nem tão cedo, tinha que procura-lo se quisesse descobrir a verdade. Peguei a velha pick-up de Fernando e sai à procura de seu irmão deixando-o acorrentado, amordaçado e desmaiado.
Levei uma hora e meia para descobrir o paradeiro de Ruy. Desde criança, ele sempre tivera o impudor de observar as garotas nos vestiários da escola ou elas se banhando em seus biquínis na Cachoeira Azul. Uma juventude a base de uma sexualidade reprimida, fizera tal depravação ficar mais sofisticada com o passar dos anos.
Em Dias Mendes, mesmo o tempo não estando em uma temperatura elevada, pessoas iam à Cachoeira Azul só pelo simples fato de ver um radiante sol. Como já havia rodado toda a cidade, não me restavam muitas opções e seu destino se afunilava.
Tomei uma trilha paralela que levava a um pequeno precipício que permitia ver a cachoeira lá do alto. Há quem dizia que um grupo de adolescente há vários anos saltavam lá de cima até o poção formado pela queda d’água. Nesse suposto dia fatídico, um dos jovens bateu com a cabeça numa pedra no fundo da cachoeira e morreu na hora. Claro que ninguém dos tempos atuais testemunhara tal fato e sequer conhecia algum parente desses jovens, tratava-se apenas de uma história criada para desencorajar a geração de agora a fazer tamanha travessura. Com o Trinta e Oito de Fernando em mãos, eu subia a trilha seguindo os culposos rastros rubros de Ruy.
Conforme eu havia imaginado, ele estava lá. Observando umas adolescentes de 14 e 15 anos que ignoravam a água gelada da Cachoeira Azul se divertindo e aproveitando o ápice da juventude. Ruy se masturbava olhando-as de trás de um arbusto. Bastava só um empurrão e a morte de Virgínia seria vingada. Apenas um empurrão o separava da queda de 12 metros.
Como eu estava atrás de respostas e não de vingança, o puxei pelos fundilhos da calça virando-o e pondo o cano do Trinta e Oito em sua testa.
Ruy por pouco não gritou, contudo, fui rápido em por a minha mão esquerda contra sua boca e o máximo que conseguiu emitir fora um grunhido abafado.
- Escute bem – eu dizia – por mais que meus dedos estejam se coçando para puxar esse gatilho, eu não tenciono estourar os seus miolos. Porém, me dê um único motivo e você nunca mais vai bater punheta, seu verme filho da puta! Fui claro?
Ruy com os olhos arregalados na cara meneou a cabeça afirmativamente. Seu pênis que jazia para fora da calça, soltou um pequeno jato de urina molhando-o antes de amolecer. Estava apavorado.
- Eu sei o que você e seu irmão fizeram com Virgínia, quero que me conte o que aconteceu e não ouse omitir nenhuma informação. Entendeu?
Ele novamente afirmou com um gesto de cabeça antes de me dar todos os detalhes que o pavor lhe permitiu contar.
Dissera que numa das minhas idas ao banheiro no bar de Agostinho, eles puseram um pó que me fez apagar quase que instantaneamente. Carregaram-me até em casa e me puseram em minha poltrona completamente apagado. Virgínia que era viciada em Rivotril, já dormia em plena 19h45. Aquilo facilitou as coisas para eles, dissera-me Ruy. Porém quando entraram em nosso quarto com uma das facas de nossa casa em mãos, e puseram-se sobre ela para mata-la, Virgínia arregalou os olhos surpreendendo-os. Óbvio que não poderia lutar contra dois homens mais fortes do que ela. Eles a dominaram e a imobilizaram enquanto ela se debatia a gritava para que eu a ajudasse. Não obstante, eu estava entorpecido e quando soube que ela clamou por meu nome tentando se salvar, me senti péssimo. Fernando a degolou enquanto Ruy a segurava. Após isso, forjaram a cena do crime de modo que eu me sentisse culpado.
Eu queria puxar o gatilho para explodir a cabeça daquele desgraçado, porém tinha algo maior por de trás das cortinas que eu não estava sabendo.
- Por quê? – eu perguntei – Me diga apenas o porquê. – intimei enquanto ele chorava.

12
A noite não fora diferente da anterior. A luxuriante lua cheia ainda permanecia nos céus com seu amarelo sinuoso e inebriante. A escuridão era menos brumosa, porém mantinha o seu aspecto rudimentar de épocas primordiais. O inverno chegaria dentro de um mês, porém o frio já era um companheiro que Dias Mendes acostumou-se a ter. O ar era soturno e a cidade estava quieta.
A capela badalava seus sinos marcando às 19h. Os moradores em suma maioria, seguiam em uma marcha obscura e cadenciada com suas expressões fantasmagóricas e pálidas para lá.
De longe, eu observava o movimento. Escondido nas trevas aguardando o momento certo. Em minha posse, o velho casaco presente de Virgínia me protegendo do frio, o Trinta e Oito de Fernando, meu sedento senso de justiça e uma pessoa sob meus olhos odiosos e implacável domínio.
As missas do padre Manoel eram as mais frequentadas da região. O clérigo tinha certo dom em conduzir com maestria aquela massa pobre, frustrada de espirito e perspectivas. Era um homem que por de trás de seu belo e jovial rosto de 55 anos, exercia uma forte influência em todos os setores de Dias Mendes. Logo, qualquer político que tivesse intenção em se eleger, tinha como tarefa obrigatória, conquistar a simpatia do padre.

13
A capela de Dias Mendes não era necessariamente uma capela. Seu tamanho era vagamente colossal. Com seu grande salão abobadado dando um singelo estilo gótico que fazia o som da voz de padre Manoel ressoar com clareza. Um órgão era tocado nas músicas litúrgicas dando a sensação de que o município se transformara em um feudo europeu.
Quando padre Manoel proclamava a homilia, uma pessoa surgira como uma aparição na entrada principal da capela. Sob o domínio daquela pessoa, com as mãos amarradas atrás das costas, um sujeito esquálido e escandaloso. A pessoa era eu. O sujeito, Ruy.
O padre interrompeu o seu sermão quando me viu arrastando Ruy pelos cabelos com a mão esquerda e segurando a arma com a direita. Os fieis se assustaram com a cena e se levantaram formando um alarido de vozes farfalhantes. Lá fora, o vento soprava mais forte carregando a sujeira largada pelas sarjetas. Vento, que adentrou na capela abobadada fazendo os cabelos das mulheres esvoaçarem assim como algumas folhas dos rituais eucarísticos.
Atirei Ruy para frente e ele caiu desajeitado, meio de bruços e meio de joelhos pelo corredor da capela. Ergui o revólver de seu irmão e um “Oh!” soou em uníssono naquela igreja. Meus olhos estavam fixados em Ruy, mas podia claramente perceber a expressão sobressaltada das pessoas que lá estavam.
- Fale seu desgraçado! – gritei para Ruy – Fale para todos quem mandou você e seu irmão matar Virgínia?
Ruy começou a chorar e sua voz saia entrecortada por soluços. Puxei o cão do Trinta e Oito para trás fazendo um “Click”.
- É melhor falar senão te matarei aqui mesmo.
- Eu sinto muito, padre, eu não poderia... Eu não soube como ele pôde... – Ruy limitava-se a chorar.
- Diga a todos! – vociferei – Quem mandou você e seu irmão matar Virgínia?
Em prantos, Ruy apenas apontou para o mandatário do crime. O padre Manoel.
- Percebem agora o tipo de filho da puta que coloca a hóstia em suas bocas! – eu insistia em gritar erguendo o revólver de Ruy apontando para o padre – Esse desgraçado é um assassino!
No entanto, naquele momento percebi que algo estranho acontecia. Os olhos das pessoas que antes eram perplexos se tornaram inexpressivos ante aquela notícia reveladora e dantesca.  Pior, se tornaram resignados.
Padre Manoel começou a sorrir exibindo aquelas horrendas fileiras de dentes amarelados ironizando toda a situação. Eu devia ter puxado o gatilho e botado uma bala naquela cara homicida e asquerosa, porém, não o fiz, não sei por que eu não atirei logo de cara.
- Você não percebe, filho? – o padre dizia sob os olhares de cristo pregado na cruz – Não percebe o bem que esse jovem cristão junto de seu irmão fez para essas pessoas?
Meus olhos é que se arregalaram naquele instante em suma perplexidade.
- Aquela jovem era um afronto para essa comunidade, uma aberração enviada por Satanás com o único intuito de zombar das leis do Nosso Senhor.
- O que está dizendo? – perguntei num misto de choque e horror. Estava tão sobressaltado que formular palavras se tornou a coisa mais difícil do mundo. – Você está louco! Mandou assassinar uma pessoa que não fez mal nenhum a ninguém!
- Você está errado, filho – o padre replicava em uma odiosa tranquilidade – tudo o que estava acontecendo de ruim aqui em Dias Mendes se devia a presença daquela criatura de Satanás.
Nada poderia soar mais insano e doentio aos meus ouvidos, contudo, o que mais me impressionava, era o fato de que toda a cidade parecia ter cedido àquela premissa obscura e doentia. Uma espécie de histeria em massa onde o principal causador se travestia de padre.
- Não me digam que vocês concordam com esse louco? Não me digam que compartilham dessa merda que acabara de ser dita?
Ninguém respondeu, porém as expressões diziam tudo.
- Que porra de Deus é esse que permite um padre mandar matar uma pessoa? Por acaso vocês estão cegos? Perderam o mínimo senso de humanidade que lhe restavam? Esse cara é um louco e vai queimar no inferno!
-Você não sabe de nada, filho. Esse ato só comprovou o quanto somos tementes e obedientes a Deus. Foi um ato de redenção desse município. Um acontecimento para ser lembrado em datas futuras como o dia que expulsamos o Diabo de Dias Mendes.
-Não pode estar falando sério. – Retruquei.
- O próprio Altíssimo nos deu essa missão. Ele me disse através de seu anjo. Estamos vivendo uma nova era, meu jovem.
Ergui novamente a arma apontando para ele. O ódio consumia meu corpo e coloquei na cabeça que a verdadeira missão divina era devolver aquele padre dos diabos ao inferno. Porém, uma voz ressonou em destaque.
- Abaixe a arma e dê o fora.
Tratava-se do delegado Falcão. Naquele momento, pude perceber que Fernando tinha razão quando disse a Ruy na oficina, que ninguém sairia preso.
- Você não vai atirar em ninguém aqui. Vá embora, pois aqui é a casa de Deus. – Disse o delegado em um tom amistoso.
Ignorei as palavras de Falcão e atiraria nele caso se intrometesse. Embora todos ali estivessem envolvidos, meu ódio era canalizado apenas no padre.
- Se meta em meu caminho e eu atiro em você também, delegado. – Disse com confiança e avidez.
Não obstante, um a um dos que ali estavam, iam se pondo no altar solenemente. Em 5 minutos, toda a igreja fazia um escudo humano em solidariedade ao padre Manoel.
- Vai atirar em todos nós, filho? – Perguntou o Padre.
Era óbvio que eu não iria atirar em todos, por mais que quisesse, não haveria munição o suficiente. Diante daquela cena de total impotência e diante de olhares julgadores, eu não tive outra opção que não fosse abaixar a arma, admitir a derrota e deixar a abobadada capela com a soturna manta da insanidade sobre aquelas pessoas para trás. Pessoas que transitam entre mundos paralelos, duas realidades distorcendo o certo e o errado. O bem e o mal. Pessoas guiadas por uma mente evoluída no quesito loucura.
Desci as escadas da igreja e vaguei pela fria e pálida noite de outono. A luz da luxuriante lua cheia delineava a minha face exasperada.

14
Diante da sepultura de Virgínia, só me restou lamentar tudo e lhe pedir desculpas. Desculpas por compartilhar com ela um mundo no qual eu ainda busco explicações.
Fiquei ali por horas, ignorando o frio da madrugada, as picadas de insetos e ignorando principalmente a realidade das coisas. Lá eu permaneci contemplando a cova criada por mim tendo vislumbres e clarividências de um passado não tão distante. Pensamentos vagos e aleatórios. Pensamentos libidinosos de sua imagem empalidecida e ensanguentada. Uma ereção me atingiu transportando o ardor até as mais ínfimas profundidades de meu âmago. Danei a desenterra-la com as próprias mãos e quando terminei, fiz amor com seu corpo frio, enlameado e distante.
A maneira de expressar o meu último adeus.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Semana sombria, cidade soturna

O Cupido Negro

Sábado...

Paulo Rodrigues vivia em um deserto. Não em um deserto literalmente onde existem dunas, cactos e o implacável sol que rasga a tez como uma folha de papel, mas em um deserto que só existia ele e todo seu egocentrismo de uma vida isolada. Onde suas únicas companhias era uma velha foto emoldurada e sua própria insanidade.
A foto o afrontava, o intimidava e o deprimia. Entretanto, ele não conseguia livrar-se dela puro e simplesmente. Não era apenas um objeto efêmero bojando em seu carma; existia uma macabra relação que interligava ele a ela. Em sua obsessiva e insana vida, a fotografia lhe era algo inevitável.
Abriu os olhos após uma noite mal dormida e fora até a janela de seu quarto. Puxou as cortinas e se debruçou sobre o peitoril e lá ficou a contemplar os morros que circundam o bairro carioca de Campo Grande. Os raios solares lhe enviavam um agradável aquecimento, era bom tomar sol nas primeiras horas da manhã. Acendeu um cigarro e com o olhar a quilômetros, anuiu que aquele sábado seria mais uma data especial.

Maria Rodrigues e Bruno Almeida também não se deleitaram em uma boa noite de sono. Porém o grande causador da insônia do casal, era um sentimento chamado ansiedade.
Os jovens estavam completando 2 anos de namoro naquela data. Ambos no auge de seus 18 anos haveriam de comemorar de uma maneira que jamais comemoraram. Na verdade, o que planejavam fazer, era uma espécie de quebra de tabu.
Preso a valores religiosos, Maria e Bruno sempre viveram seu relacionamento em meio a uma impetuosidade controlada. Evangélicos assíduos, sexo antes do casamento sempre fora uma coisa que desde novos, lhe causavam certo assombro e um tímido reboliço mental. Porém, quando se tem 18 anos, os hormônios explodem em uma erupção cataclísmica que fazem com que qualquer dogma ou valor, seja em suma, desconsiderado.  Todavia em meio a toda essa exaltação, eles sempre conseguiram conter a avidez sexual. Até aquele sábado.
Jamais um sábado fora tão inebriante com seu reluzente céu de anil e com o imenso e radiante sol transformando os verdes dos cumes das árvores em pontos cintilantes ao céu. A lua cheia de sexta feira era um espectro baço observando tudo lá de cima.  Maria e Bruno deixaram suas casas às 15h30 e às 15h45 respectivamente. Encontraram-se na porta principal do West Shopping exatamente às 16h15 e fizeram um ordinário programa – passeio, cinema, praça de alimentação.
A purpura cor crepuscular já tomava os céus de todo o Rio de Janeiro. Minutos antes, em algum lugar a beira do mar, pessoas contemplavam o pôr do sol lançando sua imensa mancha alaranjada por cima do horizonte.
- Acho que chegou a hora. – Disse Bruno com um sorriso que extrapolava a falsa sinceridade.
Maria enrubescida, retribuiu o sorriso.
Por mais que o casal tivesse canalizado que faziam a coisa certa, havia uma vaga sensação de culpa em órbita sobre um sol de incertezas. Todavia, seria naquele dia ou fosse lá quando. O matrimônio entre eles levaria bastante tempo. Logo umas ligações entre o subconsciente de ambos os fizeram assentir que seria naquele dia.
Encaminharam-se ao ponto de táxi defronte ao shopping e entraram em um Fiat Doblo que lá estava.
O taxista girou a chave na ignição e os fitou pelo retrovisor com olhos relativamente febris. Um olhar que poderia aterrorizar qualquer pessoa se a mesma percebesse.
- Para onde?
O casal se entreolhou. Havia um constrangimento emanando de ambos. Contudo, Bruno quebrou a ligeira estagnação de sua língua.
- Motel Carbonara na Avenida Brasil.
O taxista assentiu.
O homem mantinha os olhos atentos na Avenida Brasil enquanto seguia em frente com sua corrida. Seus ouvidos captavam a conversa do casal. Tal tipo de confabulação era denominado por ele como diálogo masturbatório. E isso, só alimentava um instinto sombrio e primitivo que vivia nas profundezas de sua alma.
Ao chegar à altura de Deodoro, ele deu uma guinada no carro que atravessou a pista subindo o canteiro do outro lado, numa manobra pra lá de arriscada e surpreendente.
- O que aconteceu? – Perguntou Bruno com coração palpitante.
Maria ficara tão pálida como um defunto. Seus olhos castanhos se arregalaram a ponto de formar vagos pés de galinhas nos cantos. Estava devidamente assustada.
-É o fim da linha. – Disse o Taxista.
- Como é? – Bruno indagou aturdido.
- A viagem acabou. – replicou ele olhando para o casal por cima dos ombros.
- Escute aqui, cara, você está louco? Pois se está pensando que...
Maria já estava apavorada naquele momento; pelo retrovisor, ela pôde ver a expressão dele e não foi uma coisa nada agradável para se observar.
- Bruno, vamos descer. – Ela disse interrompendo o namorado que retrucava.
- Nada disso – insistia Bruno – ele vai ter que nos levar até lá, isso não...
- Por favor, Bruno, me ouça pelo menos uma vez! – Ela bramiu.
Bruno se emudeceu, porém mantinha seus olhares iracundos apontados para o taxista.
- Está certo, vamos descer então.
Contudo, ao levar o dedo até a maçaneta da porta, ela simplesmente não se abriu.
- Poderia destranca-la ao menos? – Bruno perguntou em um tom irônico.
Trêmula, Maria pressionava avidamente a maçaneta e a porta jazia estagnada para seu desespero, porém quando ela pensou que o taxista movia-se para destranca-la, ele ergueu-se por sobre o banco empunhando uma pistola com um silenciador na extremidade. Puxou o gatilho atingindo a cabeça de Bruno e antes que ela pudesse gritar em horror, o homem colocara uma bala bem rente às junções de suas sobrancelhas.
Maria de imediato caíra sem vida por sobre o corpo de seu namorado deixando uma hedionda mancha de sangue no acolchoado do Fiat. Ele pôs a arma no banco do carona e girou a chave novamente na ignição.

Domingo...

O domingo acordara tão radiante quanto o sábado, apesar de estar em meados do inverno. Se há uma coisa que torna uma manhã de domingo diferente das outras manhãs, é o singular sorriso que as pessoas ostentam, estejam elas indo para as igrejas ou para os campos de peladas. Logo, o que torna o domingo tão apoteótico e especial, sem dúvida, são as suas primeiras horas. Obviamente sem deixar de mencionar os clássicos da rodada no fim da tarde, sejam eles no Maracanã ou no Engenhão.
Paulo Rodrigues por volta das 11 da manhã finalmente terminara de lavar o Fiat Doblo na qual tirava seu sustento. As manchas de sangue custaram a sair, porém, nada que um coquetel de produtos não pudesse dar conta. Seu estômago já reclamava por alimentos, talvez comprasse um galeto numa padaria próxima a sua casa. Contudo, antes de qualquer coisa, ele haveria de voltar para seu egocêntrico e desolado mundo.
Encarava com olhos vítreos algumas reportagens na qual ele colara na parede de um quarto acre e pouco iluminado.
CASAL ENCONTRADO MORTO ÀS MARGENS DO RIO GUANDU dizia uma reportagem, a mais velha da parede.
CASAL DE ADOLESCENTES DESAPARECIDOS HÁ 2 MESES ENCONTRADO MORTO dizia a outra. E assim, fora uma sucessão de jornais sobre assassinatos em um mesmo estilo até que na mais recente, ele ganhasse o apelido de
CUPIDO NEGRO FAZ MAIS DUAS VÍTIMAS.
Um dia te pegarão, Paulo, um dia te pegarão. Ele pensava enquanto contemplava a sua pistola. Todavia, por mais que cedo ou tarde ele fosse pego, sua arma sempre haveria de ter uma bala especial. Uma destinada a ele próprio.
Em outro cômodo da casa, a foto em uma moldura com a sua imagem ao lado da única mulher que ele realmente amou.


O estranho

Segunda Feira...

Leonardo Miguel lia as noticias na pequena banca de jornal da estação ferroviária de Bangu.
CUPIDO NEGRO FAZ MAIS DUAS VÍTIMAS. 20 MORTES JÁ SÃO CONTABILIZADAS EM SUAS AÇÕES CRIMINOSAS
Pessoas que também passavam os olhos pelas noticias, comentavam indignadas sobre o décimo casal que o maníaco dos namorados, como também era conhecido, havia matado. Porém, algo mais chamava a atenção de Leonardo Miguel, mais ainda do que a própria noticia do derradeiro fim de semana daqueles jovens.
Um cidadão estranho. Com cabelos ralos, rosto devidamente pálido, nariz de aquilino e com o formato dos olhos jamais vistos. Os mesmos eram quase exageradamente oblíquos. Um homem que aparentava sofrer de alguma doença grave devido ao seu aspecto indolentemente frágil.
O que será que esse cara tem? Perguntou-se Leonardo.
O estranho homem que parecia observar com singular admiração o Bangu Shopping a frente da estação, de súbito, se virou encarando Leonardo como se ele tivesse lido seus pensamentos. Por um curto momento, os olhos deles se entrecruzaram e Leonardo Miguel sentiu uma abrupta aflição esmagando-o por dentro.

Aos 23 anos de idade, Leonardo tinha que tomar certas tendências na vida. A adolescência passara num zás, e fora uma época tão especial que ele a estendeu até a fase adulta. A primeira coisa a ser feita, era arranjar um emprego. Em sua mochila, diversos currículos a serem entregues no centro da cidade. Porém, o estranho homem que estava no mesmo vagão que ele o perturbava. A feição inexpressiva com os olhos aparentando fitar sempre algo além, algo há anos luz de distância, ainda o fazia se perguntar se tal pessoa teria alguma doença. Não obstante, cada vez que conjecturava hipóteses a respeito dele, o próprio desviava o olhar ausente para fita-lo com igual curiosidade.
Erubescido, Leonardo Miguel sempre desviava os olhares a cada vez que aquele cidadão o encarava, pois a cada olhar daquele, uma estranha aflição se abatia sobre ele.

Um mar de gente trafegava pela Central do Brasil. Uma gama de rostos, sorridentes, resignados, tristes, aborrecidos, porém, todos seguindo a sua enfadonha rotina de mais um inicio de semana. Leonardo seguiria normalmente o seu curso como aquelas pessoas, no entanto, o estranho lhe era uma bizarra atração, uma atração arrebatadora que ele decidiu não contrariar. No meio daquele mar de pessoas, Miguel o seguia.
Em uma birosca na Rua da Alfandega, Leonardo entrou perseguindo o estranho. Pessoas tomavam seus cafés que variavam do cappuccino a tradicional média. Num canto, bem junto à parede, estava ele, sentado diante do balcão e despercebido como se fosse um objeto decorativo. Leonardo também se sentara diante do balcão sobre um velho banco giratório de madeira fixado a uma trave de ferro. O assentou rangeu em um trinado metálico quando ele pôs-se de qualquer jeito. Pediu uma Coca-Cola e de soslaio, ficou a observá-lo evitando ao máximo, pensamentos a respeito. Entretanto, observa-lo era difícil daquela posição; ao seu lado, um senhor com seus cabelos grisalhos bebericava sua média tomando todo o cuidado do mundo para que não derramasse uma gota sobre a sua camisa do Fluminense. Leonardo Miguel inclinou-se sobre o balcão e o banco giratório emitiu outro trinado metálico, mais agudo daquela vez. Embora desconfortável, ele podia ver com maior clareza, o estranho que tinha em mãos o frasco de açúcar.
Estaria tudo dentro da normalidade se aquele homem não exagerasse na quantidade de açúcar que inseria dentro da xícara. Era algo devidamente surreal. Nada poderia ficar bom exageradamente adocicado. Leonardo se estremeceu e por pouco, não cutucou o tricolor que estava ao seu lado para apregoar o fato. O café na xícara era uma solução negra e pastosa. O estranho a bebeu com avidez, levantou-se e saiu.
Abismado, Leonardo Miguel notou outro fator esquisito, não tão esquisito quanto ao de ingerir uma xícara de açúcar, mas de algo capaz de deixa qualquer um com a pulga atrás da orelha. O estranho simplesmente saíra sem pagar e sequer fora repreendido. Talvez tivesse pagado antes, conjecturou Leonardo em uma hipótese plausível e aceitável, porém, algo lhe dizia que não. Algo lhe dizia que aquele cidadão simplesmente pediu um café e saiu sem pagar. Ele matou a sua coca em um único gole, pagou dispensando o troco e prosseguiu com sua estranha perseguição.
O estranho caminhava por meio as pessoas, e elas, em uma ação de total inconsciência, simplesmente desviavam dele como se ele sofresse de lepra ou outra coisa que causasse repúdio. Leonardo o observava a uma boa distancia enquanto seguia-o abrindo caminho entre os transeuntes. Por pouco, não o perdera de vista, contudo, quando este chegou a Avenida Rio Branco, a perseguição tornou-se uma tarefa não tão difícil.
 Protagonista e antagonista, sempre mantinham uma distância que ambos consideravam segura. O estranho parou defronte a um arranha céu no numero 1150. Um prédio de aspecto moderno com seus vitrais refletindo o céu azul de inverno. Leonardo Miguel dissimulou e pôs-se a observá-lo atrás de uma banca de jornal. O cidadão antes de adentrar no arranha céu, lançou o antigo olhar inexpressivo para ele que sentiu a velha aflição esmagadora lhe corroendo por dentro.

Se perguntassem para Leonardo o motivo pelo qual o fizera tomar aquela atitude, decerto ele não teria uma explicação. Talvez ele não conseguisse convencê-lo a si próprio de o que o motivou a fazer o que fizera. Sua ação simplesmente fora tão irracional quanto à paixão de uma pessoa para o seu time de coração.
Leonardo Miguel Costa da Silva, 23 anos, morador de Bangu, torcedor do Vasco da Gama, ali permaneceu ignorando todos os preceitos do bom senso. Ficou aguardando a saída do estranho por longas e enfadonhas 8 horas.

O inverno em países tropicais como Brasil é uma das coisas mais peculiares que a natureza pode aprontar. Pois em alguns dias, faz-se calor sob um céu azul, em outros, frio sob um céu cinzento e pálido. Não obstante, a coisa mais singular que ocorre no inverno, e esse em qualquer canto do mundo, é que a noite sempre chega mais cedo, pintando de negro o pálido céu do fim de tarde trazendo consigo uma sensação térmica inferior.
Por volta das 17h30, quando as pessoas esticavam suas passadas em busca de um lugar a se sentar nos coletivos ou tentando ganhar segundos preciosos, súbitas luzes circundavam o prédio que o estranho entrara. Luzes baças que pareciam provir de holofotes, no entanto, se movimentavam livremente de um lado para outro chamando a atenção de uns poucos que levantaram os olhos para o alto. Leonardo fitava as luzes com máxima contemplação; jamais vira algo tão sinuoso e relativamente belo. Contudo ao baixar os olhos de volta para a entrada do prédio, o estranho lá estava, parado com sua expressão inflexiva e seus olhos oblíquos e resignados. Por um momento bastante considerável, eles se entreolharam como dois inimigos ante um embate mortal.
Leonardo Miguel se perguntou por que aquele olhar lhe causava tamanha aflição.
Quem é você? Perguntava-se. Que diabos de pessoa você é?          
O estranho se virou e seguiu seu rumo. Caminharia até a Central do Brasil assim que pegasse a Av. Presidente Vargas.

Tanto Leonardo quanto o estranho embarcaram no trem das 18h03 destinado à Santa Cruz. Um amontoado de gente se acotovelavam nos vagões da Supervia, com suas expressões taciturnas após um longo dia de trabalhos. Os venturados que conseguiram se sentar, confabulavam criando uma litania de vozes. A rotina fizera com que alguns rostos conhecidos, se tornassem pessoas conhecidas. Imprensado em um canto junto à porta do trem e um banco, estava Miguel. Observando com uma fascinação singular o estranho que estava no lado oposto do vagão, despercebido como se fosse mais um entre muitos.
O trem foi seguindo viagem com o barulho dos trilhos fazendo uma sinfonia cadenciada. Parando de estação em estação, havia um fato notório que Leonardo Miguel havia percebido. Ninguém embarcava.
Ao chegar ao Méier, boa parte dos usuários do transporte ferroviário já tinham desembarcado. Em Bangu, estação que Leonardo teria que descer, pois era seu destino, 80% dos que embarcaram na Central já haviam deixado os vagões. Ele se perguntava por que as pessoas ignoravam aquele trem, por que elas simplesmente não adentravam aos vagões?
Quando o trem chegou a Campo Grande, só restava ele e o estranho naquele vagão. Leonardo não tinha como perceber, mas em todo trem, só havia eles.
O cidadão o observava sentado no banco oposto do qual ele se encontrava. Leonardo Miguel não sentia apenas a velha aflição que aquele olhar lhe causava, agora, aglutinado a este sentimento, existia o medo. Seu coração batia acelerado. Suas pernas estavam tão trêmulas, que ele tivera grande dificuldades para pôr-se de pé. Fora longe de mais, ele assentiu. Desceria ali mesmo, porém ao dar dois passos em direção à porta, ela se fechou bem rente ao seu nariz.
O trem pôs-se em movimento. Contudo, o alto falante que sempre anunciava a próxima estação, ficou mudo. Estaria o trem sem o próprio maquinista? Leonardo se estremeceu e não tinha certeza se queria volver-se para fitar o estranho no outro lado do vagão.
Por que está me evitando agora? Soara uma voz.
Todavia, a voz não fora captada pelos seus ouvidos, fora captada diretamente pela sua mente.
Oh meu Deus! Desde quando eu posso ouvir uma pessoa por telepatia? Perguntava-se com os olhos arregalados e o maxilar travado.
Não está curioso a meu respeito, Leonardo?
Leonardo tentava ignorar inutilmente a realidade.
Não, isso não é real, isso não pode ser real.
Vire-se e me encare nos olhos, seu covarde! Imperou o estranho.
Assim Leonardo Miguel o fez, não por vontade própria, mas porque não tinha escolhas.
Olhe nos meus olhos e eu vou tirar as suas dúvidas a meu respeito, porém eu vou lhe mostrar desde o princípio.
O tem que seguia em seu ritmo cadenciado, acelerava-se a uma velocidade surreal para aquele veículo. A estação de Benjamim do Monte passara em um desfigurado borrão pela janela do trem.
Leonardo estava catatônico e com dificuldades, tentava manter-se equilibrado. O trem já efetivava uma surreal velocidade supersônica. Pela janela, só passavam luzes desfiguradas e à medida que a velocidade ia aumentando, o borrão de luz se transformava em uma linha cintilante. Um zunido aterrador explodia em seus ouvidos que ele mal podia ouvir os próprios pensamentos.
- Nós vamos morrer! – Ele gritou mesmo sabendo que Santa Cruz já deveria estar a quilômetros atrás, talvez, anos luz atrás. – Pare esse maldito trem!
O fulgor da linha cintilante do lado de fora se intensificou a ponto de tornar a sua visão turva. Leonardo Miguel cerrou os olhos e apenas o zunido unido ao desespero lhe fazia companhia Uma pressão se abatia sobre ele, e tal pressão lhe exercia uma energia negativa; o ar ia acabando e pouco a pouco, Leonardo ia perdendo a consciência. Todavia, perder a consciência não era de todo ruim, uma vez que ele imaginava que aquele trem iria parar de uma maneira nada suave, e não querer estar acordado para vê-lo parar, era totalmente justificável.
Seu último pensamento antes das luzes se apagarem para ele foi que não só o último terminal, o de Santa Cruz, havia ficado para trás, mas sim todo o tempo na qual ele estava inserido, toda uma dimensão. O espaço tempo não fora dobrado, e sim, completamente amassado como uma folha de papel.
Eu vou tirar as suas dúvidas sobre meu respeito, porém eu vou lhe mostrar desde o princípio.

- Acho que foi um pesadelo. – murmurou Leonardo Miguel antes de abrir os olhos. – Meu Deus, que sonho mais estranho.
Entretanto, Leonardo parecia que estava sendo atacado por uma nuvem de mosquitos sedentos por sangue. Quando o mesmo abriu os olhos, percebeu que não estava na sua cama e sim sobre o chão metálico coberto pelo agora corroído carpete daquele trem.
Logo, a absurda realidade vinha à tona, e de fato, mosquitos enormes que ele jamais havia visto se banqueteavam de seu sangue. Leonardo se levantou abanando-se e afastando tais insetos. O vagão cheirava a um odor bolorento e as janelas estavam cobertas de lodo e plantas trepadeiras.
- Cadê você? Apareça! Que lugar é esse?
Não houve respostas, apenas ruídos de pássaros grasnando batendo as asas em súbita disparada.
Embora o odor acre e bolorento impregnado no vagão, ele jamais sentira um ar tão puro e imaculado em sua vida. Com dificuldades, ele pôs-se a abrir a porta do vagão. As juntas estavam enferrujadas e rangiam como se fosse um ser vivo, por sorte, não cortara os dedos naquele ato.
Quando finalmente abriu a porta, a luz do sol penetrou implacável e ele cerrou os olhos. Contudo, era um fulgor agradável típico das primeiras horas da manhã. Quando ele os abriu, os mesmos se arregalaram em suma perplexidade. Eles fitavam uma paisagem que, para os mesmos, só eram conhecidas pela TV. Onde é que o trem tivera chegado, caíra no meio de uma selva.
Meu Deus! – Ele exclamou em sussurro.
Olhou para os dois lados e percebeu que só havia aquele vagão, a outra parte do trem ficara em algum outro lugar. Logo só restava aquele único pedaço de metal envolto no infindável verde da selva.
-Mas que lugar é esse? – Ele se perguntou inseguro se ficava ou não dentro do vagão. Sob ele, o matagal alto.
A luz do sol fora coberta por algo que surgira abruptamente. Algo que lançava sombras ao vagão lá do alto.  Leonardo olhou para cima e ficou sobressaltado ao ver mais uma coisa inacreditável. Um enorme pássaro, não, não era exatamente um pássaro, era algo que se assemelhava a uma criatura pré-histórica. Uma criatura que ele tinha visto somente em um documentário do Discovery Channel.
- Eu não acredito! – Ele disse horrorizado.
A criatura sumiu de sua vista soltando um grunhido agudo, hediondo e assustador. Seu coração palpitava a ponto de lhe fazer o peito doer.
Abruptamente, veio à sua mente as palavras do estranho que lhe permitia ter uma vaga, porém soberana compreensão do que acontecera.
Eu vou tirar as suas dúvidas sobre meu respeito, porém eu vou lhe mostrar desde o princípio. Desde o principio. Desde o princípio.
Leonardo percebera que não fora tão longe em questões geográficas, talvez estivesse ainda no Rio de Janeiro, porém aquele lugar desolado e imaculado era um Rio sob uma perspectiva de milhares, talvez milhões de anos.
Ele olhou novamente para o céu onde uma bola de fogo surgira cruzando aquela imensidão azul deixando um rastro cintilante e rubro para trás. A bola de fogo vista mais de perto, se notabilizava como um disco, um disco flamejante, que ao cruzar um dos morros que cercavam o cenário, causou um estrondo fazendo todo àquele local tremer. Leonardo Miguel começava a compreender, a principio, já entedia de onde o estranho viera.

Eu sei

Terça Feira...

Numa sala de aula no colégio estadual Mário Quintana em Campo Grande, o silêncio reinava mediante a tensão de uma decisiva prova de língua portuguesa. O professor, Anderson Guimarães, consultava o relógio e constou que o tempo de seus alunos estava se esgotando.
- Senhores, vocês têm exatamente 10 minutos para terminarem a prova.
Houve um burburinho entre eles e o pavor que existia na face da alguns, simplesmente se intensificou para o deleite do professor.
Atrás de sua mesa, Anderson vez ou outra lançava olhares para uma bonita aluna de 16 anos que sentava nas primeiras fileiras da classe. Luciene Maria era uma linda ruiva dos olhos verdes. Seus cabelos eram lisos e escovados caindo até a altura dos ombros. Tímidas sardas delineavam seu rosto lhe dando um aspecto inocente. Seus lábios eram rosados e ela lembrava e muito a estonteante Lindsay Lohan. Em suma, a jovem Luciene era de fato uma adolescente bela e chamava a atenção até de homens mais velhos.
Por vezes, os olhares de ambos se encontravam, ela lhe lançava um lépido e libidinoso sorriso. Anderson se erubescia e dissimulava, porém, a cada olhar e a cada sorriso, algo dentro de suas calças passava a pulsar como se tivesse vida própria. Porém, o que mais o excitava, era que Luciene fazia aquilo por mera provocação.
O sinal tocara sinalizando o intervalo. Era o fim da prova para desespero de alguns e resignação de outros.
-Muito bem, senhores, fim da linha, não se esqueçam de assinarem e, pelo amor de Deus! Coloquem seus números da chamada, facilitem ao menos a minha vida. - Dizia o professor enquanto recolhia as provas.
Anderson ficara sem jeito quando Luciene dissimuladamente acariciou a sua mão enquanto lhe entregava a prova. Aquela menina sabia mexer com os brios de um homem já vivido. Nem mesmo a aliança em seu anelar parecia intimidá-la. Para ela, o céu era o limite.
O professor continuava a recolher as provas carteira por carteira enquanto discursava o velho: “Não caiu nada do que não tenhamos visto em sala de aula.” Porém, algo de imediato, lhe roubou a atenção.
Fabiana Guedes, uma gordinha pálida dos cabelos exageradamente enegrecidos contrastando com sua tez, assim como era exagerada à maquiagem mórbida que usava a qual lhe rendera o apelido de Mortícia, encarava seu professor com olhos febris, olhos acusadores. Ele, por sua vez, se estremeceu diante daquele olhar.

As terças, Anderson sempre aproveitava uma carona com seu amigo, o professor de geografia Sebastião Vilela. Seu carro, um Gol bolinha branco, era utilizado por sua esposa nesse dia da semana, que por sinal, havia amassado a lataria dianteira numa pequena colisão há algumas semanas.
Sebastião notou a face pálida e assustada do amigo. Anderson engolia um Tic Tac atrás do outro.
- Pelo amor de Deus, Anderson! O que está havendo?
- Acho que uma aluna descobriu. – Guimarães respondeu.
- Descobriu o quê?
- Que eu ando comendo a Luciene!
Vilela que estava prestes a engatar a segunda no seu Celta prata, de imediato pisou no freio e os pneus guincharam no estacionamento do colégio.
- Descobriu como? – Perguntou ele aturdido.
- Eu não faço ideia, cara. – Respondeu Anderson pondo na boca outro punhado de Tic Tacs.
- Calma, calma e calma. Vamos por a cabeça no lugar. Primeiro, quem descobriu? Segundo, como você soube que essa pessoa tem ciência dessa verdade?
- Fabiana Guedes.
- Cara, sou péssimo em nomes.
- Aquela que anda como uma gótica.
Sebastião assentiu.
E como soube que ela descobriu? – Indagou Vilela.
Anderson abriu a palma da mão e sacudiu a embalagem de Tic Tac antes de responder o interrogatório do amigo. Nenhuma bala caíra. Havia comido todas.
- Estava verificando as provas que apliquei na 1303, e me deparei com isso. – Guimarães tirou do bolsou um pedaço de papel com letras de revistas e jornais coladas.
Sebastião tomou o papel em mãos e pôde ler:
EU SEI
Por um momento, as palavras se entalaram na garganta do professor de geografia. Por fim, ele disse; contudo sem muita convicção.
- Sinceramente, isso não prova muita coisa que alguém saiba que Luciene e você...
- Cara, se isso não prova muita coisa, o que mais provará? Um flagrante?
- Por que suspeita de Fabiana?
- O jeito que ela me encarou dizia tudo.
Sebastião tornou a assentir e pôs seu Celta em movimento novamente.
Após 10 minutos de silêncio sepulcral, a confabulação sobre o caso de Anderson voltou a ecoar naquele automóvel.
- Chegou a conversar com Luciene a respeito? – Indagou Sebastião.
- Não, creio que só pioraria as coisas. Ainda mais se alguém nos visse. – Replicou Anderson.
- Fez bem, mas como ela deve ter descoberto? – Sebastião já entoava como se de fato, Fabiana soubesse da verdade. – Por acaso Luciene e ela são amigas?
- Duvido muito. Fabiana é muito isolada, pelo que sei, seus únicos amigos na escola são aqueles maconheiros que vivem matando aula atrás da biblioteca.
Sebastião assentia enquanto tamborilava com os dedos no volante.
- E além do mais – continuava Anderson – Luciene embora adolescente, tem uma maturidade bem acima para uma garota de sua idade. Duvido muito que ela tenha contado para alguém.
- Puta merda! Você deve ter dado algum mole, tem certeza que não vacilou?
- Não que eu saiba – respondia Guimarães enquanto matutava – A não ser que...
- A não ser o quê?
- Bem, teve um dia que eu a apanhei em frente a regional de Campo Grande.
- Ali é um pouco perto do colégio. – Comentou Sebastião.
Anderson aquiesceu.
- Cara, se essa porra vier à tona, estarei fodido de verde e amarelo.
- Vira essa boca pra lá, Anderson, ainda mais agora que sua esposa está grávida.
- E você acha que eu estou preocupado com isso? – rosnou Anderson – Imagina o escândalo que essa merda vai se tornar. Ainda mais com essa merda de que tudo é pedofilia. Certamente será o fim da minha carreira e da minha vida como cidadão.
- O que você fará a respeito?
- Não sei Tião amigo velho, sinceramente eu não sei. O que você sugere?
- Você aplicou prova para eles hoje não foi? – perguntou Sebastião numa retórica – Sugiro que você dê um bom conceito a ela independente de sua atuação. Ela é uma boa aluna?
- Não, quero dizer, é uma aluna regular, mas está longe de ser um fiasco e longe de ser boa.
- Isso é muito bom. Quando dará aula para eles de novo?
- Quinta de literaturas e sexta de língua portuguesa.
- Entendi.

Em casa, Anderson sequer tocou na comida e sequer trocou 3 palavras com sua esposa. Sentado ante a escrivaninha, ele contemplava o bilhete que soava tão acusatório. Seus olhos conjecturavam as piores hipóteses antevendo um futuro bastante ruim. Por fim, ele amassou o bilhete e o jogou na lixeira ao seu lado esquerdo. Abriu a sua pasta e fez algo que jamais fizera desde que ingressara no magistério, corrigiu as provas que dera no mesmo dia.
O desempenho de Fabiana havia sido regular, Anderson queimou a cabeça para transformar um 4,5 em 5,5. Contudo, estava feito. Deitou-se na cama e o sono só chegou lá pelas tantas da madrugada.

Quinta Feira...

Anderson estacionou o seu Gol no estacionamento do Mário Quintana e por ora, não tinha certeza se gostaria de sair do automóvel. Por 5 minutos de total indecisão, ele apenas se encarava diante do retrovisor. Por fim, desceu do carro.
Quando o professor de Língua Portuguesa estava a ponto de girar a maçaneta da sala dos professores, a voz do diretor soou clamando por seu nome no fim daquele corredor.
Anderson fez uma Mea culpa com a sua expressão contorcida. Severo, o diretor queria conversar com ele naquele exato momento.
Nunca uma distância fora tão claudicante como fora para Anderson Guimarães da sala dos professores até a diretoria. Seu coração pulsava a ponto de se fazer o peito doer. Por um curto instante, aquele corredor se tornou turvo e se duplicou. Ele estava a um triz de desmaiar e lamentou muito não ter caído desfalecido ali mesmo. Tirou o Tic Tac do bolso e colocou um punhado daquelas balinhas coloridas na boca. Abriu a porta da sala da direção e já formulava uma defesa naquele curto segundo.
No entanto, o assunto que o diretor tinha para com ele, era completamente distinto do que ele imaginava.
- Meu Deus, Anderson! Você está se sentindo bem? – Perguntou o diretor.
- Hã? Sim, só dormi um pouco mal.
- Cara você está pálido, parece que viu um fantasma.
Anderson emanou um sorriso amarelo.
O diretor tomou 5 minutos do tempo de Anderson falando sobre um assunto sem relevância a esta narrativa.
O professor tinha o costume de ser o primeiro a entrar na sala de aula. Fazia isso meia hora antes do sinal da entrada tocar. Naquela quinta feira em especial, ao entrar na classe, um grande sobressalto o atropelou como uma locomotiva em alta velocidade. Por um dado momento tudo perdeu a sustentação, seus joelhos oscilaram e seus dedos mal aguentavam o peso de sua pasta que caiu no chão de imediato. Ele dera um passo em falso para trás; na lousa, em letras que quase a preenchia por completo, estava escrito:
EU SEI
Conforme os alunos iam chegando, o desespero ia aumentando em Anderson a cada adolescente que passava cochichando. Ele tinha vontade de aguçar a sua audição para ouvir o que de fato eles falavam. Apesar de tudo, Guimarães tinha que manter-se calmo e seguir com a aula como se nada de estranho estivesse acontecendo.
Luciene lhe lançava olhares libidinosos e ele simplesmente os evitava.
- Bem, senhores, corrigi a prova de terça feira e fiquei bastante decepcionado.
Luciene cochichava com uma menina ao seu lado com um sorriso a quem de qualquer preocupação com o seu resultado da prova. Anderson a olhou de esguelha.
- Acredito que não caiu nada que não tenhamos visto e revisado, logo, não há qualquer desculpa.
A sua jovem amante continuava com seu cochicho com sua colega de classe e o professor, num gesto que ninguém esperava, gritou para ela:
-Luciene, por que está conversando enquanto eu estou falando? A sua nota também foi bem abaixo das expectativas. Deveria levar os estudos mais a sério!
Anderson sequer manteve os olhares sobre Luciene Maria, dissimuladamente, ele os levou até Fabiana que jazia com sua expressão impassível e com os velhos olhos acusadores que tanto o intimidava.
No instante que ele a olhou, sua voz perdeu a confiança se tornando trêmula e vacilante.
-Eu- eu –s-só esp-erro q-que vocês es-tudem e c-corram atrás do prejuízo. – Pigarreou para manter a compostura e prosseguiu com seu sermão. – E lembrem-se, vocês não têm que provar nada para mim, terão que provar para vocês mesmos.
Anderson entregava as provas carteira por carteira. Luciene o olhou querendo entender o que estava havendo. Ele jamais gritara com alguém, por que gritaria com ela? Porém ele apenas deixou a sua prova sobre aquela superfície lisa e envernizada
Ao chegar à vez de Fabiana, Anderson se viu em outro dilema, elogiar ou não a aluna que sempre estivera abaixo da média por seu suposto conceito positivo. Um elogio poderia significar Oi estou em suas mãos, por favor, não conte nada a ninguém, eu lhe imploro!  Porém havia a possibilidade de Estou sendo legal com você, vamos manter isso em segredo e só irá ganhar comigo.
- Melhorou bastante, Fabiana. – Ele disse por fim.
Entretanto a jovem rosnou algo que o preocupou e muito.
- Por acaso isso fará diferença?
Enfim, ele iniciou a aula de literaturas, estava tão desconcentrado que falou merda atrás de merda. Professores assim como qualquer profissional têm seus direitos de ter um péssimo dia, mas o dia de Anderson estava horrível e pior, estava somente começando.
Apesar do martírio que era compartilhar um ambiente relativamente pequeno com uma aluna que aparentava ter ciência de um segredo que poderia arruinar a sua vida, Anderson quando olhou para o relógio, notou que as horas passaram num zás. Faltavam 5 minutos para o término da aula e ele simplesmente dispensou a turma com um Até amanhã.
Sentou-se em sua mesa e levou as duas mãos ao rosto enquanto os alunos ajeitavam as coisas para deixar a sala. Estava mentalmente desalentado, por entre os dedos, fitou Fabiana encarando-o com olhos febris. Naquele momento, ele já podia dizer com certa propriedade que não tinha dúvidas que ela sabia de seu segredo.
Um a um os alunos iam deixando a classe enquanto o professor colocava um punhado de balinhas na palma da mão, levava até a boca e ofegava lamentando algo.
- Professor? – Soou uma voz solícita.
Ele ergueu os olhos para o autor daquela voz, e para sua desagradável surpresa, tratava-se de uma autora, Luciene Maria.
- Pois não Luciene. – Ele disse em um dissimulado tom atencioso.
- Será que poderíamos ter uma conversa? – Ela perguntou.
Naquele exato instante, Fabiana passava lançando de soslaio, um cruel e julgador olhar.
Subjugado, Anderson dissimulou sob aqueles olhos intimidadores e respondeu:
- Pode ser outra hora, Luciene?  Não estou me sentindo bem no momento.
Ela assentiu e concordou deixar o que tinha de falar para depois.
Assim que todos deixaram a sala, Anderson Guimarães esmurrou a mesa praguejando.
- Merda!
Sem condições psicológicas para trabalhar naquela quinta feira, o professor alegou uma indisposição e saiu mais cedo. No entanto, Anderson não fora para casa, ficara estacionado em uma praça próxima ao colégio em que lecionava.
- Por que ela simplesmente não conta? – ele se perguntava – Qual a sua intenção em querer brincar comigo dessa forma? O que ela está querendo?
Ao mesmo tempo em que se perguntava, Guimarães conjecturava respostas para tais indagações. Respostas que só o confundiam ao invés de esclarecê-lo. Porém em meio a tantas dúvidas e hipóteses, a única que ficava clara era que ele tinha de dar um fim naquilo antes que toda a situação o levasse a loucura, que por sinal já o acariciava como a sua única companheira. Anderson decidiu ali ficar e esperar por Fabiana.
Assim que os relógios badalaram meio dia, o turno da manhã do Mário Quintana e do colégio Miécimo da Silva praticamente já se encontrava nos arredores daquela praça. Alguns seguiam o caminho de suas casas, outros aguardavam os ônibus, e é claro, o grupo dos vagabundos que insistia em ficar por ali até que o cu fizesse bico. Guimarães avistou Fabiana Guedes e permaneceu em alerta espreitando cada movimento dela.
Um ônibus passou e parou naquele ponto. Uma dezena de estudantes embarcou incluindo Fabiana. O professor girou a chave na ignição e pôs-se a segui-la.
A estranha adolescente desceu no ponto final do ônibus defronte a estação ferroviária de Campo Grande. Lá, um grupo de pessoas colavam cartazes com a foto de um homem jovem, aparentemente com 23 anos de idade. Acima da foto estava escrito:
DESAPARECIDO
Abaixo da fotografia havia o nome do cidadão.  Leonardo Miguel Costa da Silva
Tudo estava correndo como Anderson imaginava, e se ele estivesse de bem com seus palpites, saberia o destino de Fabiana. E ele haveria de estar de bem com seus pressentimentos e palpites.

Nos arredores da Paróquia da Nossa Senhora dos Desterros, mais exatamente sob a sombra de uma enorme árvore e bem próxima a uma das saídas do Shopping Campo Grande, roqueiros se encontravam dividindo o espaço com mendigos e outros tipos de vagabundos. Basicamente não faziam nada além do que fumar, beber cachaça e falar asneiras. O espaço fora apelidado pelos mesmos de Q.D. Fabiana encontrava-se lá quase todo santo dia, para horror e desaprovação de seus pais. Ela passava tantas horas lá que só ia embora quando a noite caísse. Naquela quinta feira, ela não fez diferente; apesar dos pesares, as companhias a agradavam e acima de tudo, a entretinha. Todavia, o que ela não imaginava era que alguém estava observando-a desde cedo.
As horas passaram de maneira tão enfadonha que Anderson estava prestes a arrancar os cabelos. Todavia, a obsessão em segui-la o manteve firme, mesmo ele não tendo a mínima ideia do que faria. Os sinos da paróquia badalaram às 18 horas. A noite já caíra iniciando o soturno reinado da lua. Os roqueiros, em sua maioria vestidos de preto, se agitavam preparando-se para irem para suas casas. Guimarães pôs-se em alerta ao ver Fabiana despedindo-se de seus amigos, ligou o motor do carro e lentamente ia se aproximando.
A adolescente pegara uma van na Cesário de Melo num ponto próximo ao hospital Rocha Faria. Em 40 minutos, o veículo a deixaria nos arredores de sua casa. Fabiana residia em um sub-bairro emergente de Campo Grande. Um lugar onde a iluminação pública estaria para ser instalada e as ruas haveriam de ser asfaltadas. Da estrada até a sua casa, era uns 10 minutos de caminhada. Em dias de chuva forte, o tempo para completar tal percurso dobrava devido à lama.
A gélida brisa do inverno farfalhava as folhas das árvores que ladeavam a rua na qual Fabiana caminhava até seu lar. A escuridão era relativamente perturbadora para qualquer pessoa, porém não era para ela. As trevas lhe eram algo fascinante e sinuoso. Criaturas rastejavam pelo terreno irregular enquanto a sombria lua amarelada observava tudo lá de cima.
Fabiana cantarolava um refrão que explodia nos fones de seu MP3 quando algo surgira tão rápido que ela não pôde ouvir devido ao alto volume. O sorrateiro ataque a atingiu violentamente pelas costas.
Anderson a perseguia na escuridão, pensamentos confusos o perturbavam, suas mãos soavam sobre o volante e seu coração palpitava a ponto de fazê-lo ofegar. De súbito, ele pisou fundo no acelerador e guinou o carro na direção de sua aluna.
Houve um baque surdo na dianteira do automóvel e ele pôde ver o volumoso vulto de Fabiana rolando por cima de seu Gol branco assim como pôde escutar o barulho do corpo dela percorrendo toda a lataria. Anderson parou e por um curto instante ficou estagnado com as mãos fixas no volante, olhos vítreos fitando o nada e a respiração quase nula. Reinava um silêncio brutal onde apenas o cricri dos grilos era ouvidos junto de seu coração acelerado e ritmado. Tum Tum, Tum Tum, Tum Tum.
Não acredito que fiz isso. Ele pensou. Não acredito que eu fiz isso.
O professor ligou os faróis do carro e pelo retrovisor, pôde ver a silhueta de sua aluna imóvel no chão.
Desesperado e confuso, Anderson ameaçou a manobrar o carro e dar o fora dali o mais depressa possível. No entanto, uma coerente voz na qual conhecemos como voz da razão, clamava das profundezas de seu subconsciente para que ele voltasse à humanidade. O bom e velho existencialismo racional que nos difere nos animais.
Você está louco? Por acaso quer passar o resto de sua vida na cadeia? Por acaso pensa que tirar uma vida é simplesmente assim? Pare e pense seu idiota, você acha que vai garantir o seu emprego atrás das grades? Vai ajuda-la!
- Oh meu Deus! O que eu fiz? – Ele disse abrindo a porta do carro.
Correu até a sua aluna e se horrorizou ao vê-la caída com uma faixa de sangue escorrendo por debaixo de seus cabelos. A música que ela ouvia saia abafado pelo fone em seu ouvido.
- Meu Deus! – Exclamou ele apalpando-a em busca de qualquer sinal vital. Qualquer coisa que lhe desse uma oportunidade de esclarecer a qualquer pessoas que tudo não passou de um acidente, afinal, era uma rua escura, perfeitamente cabível uma alegação dessas.
Porém não havia nada que Anderson Guimarães pudesse anuir como sinal vital. Fabiana estava morta. Ele a matara.
O horror em sua essência o dominou e ele gritou. Não obstante, seu gritou aterrorizado fora abafado pelas mãos postas ante a boca. Lágrimas desciam de seus olhos perplexos.
Anderson manobrou o carro e deixou aquela rua e o corpo de sua aluna para trás. Talvez fosse mais coerente chamar uma ambulância e alegar um acidente, porém logo viriam perguntas, assim ele pensava, e no fim, tudo acabaria para ele.
Pálido tomara uma ducha assim que chegara a casa e sequer olhou para a esposa. Nem na época de sua adolescência, Anderson demorara tanto em um banho como demorara naquela noite. Esfregou a mão desembaçando uma parte do espelho e encarou a sua imagem refletida. Não vira nada além do que a imagem de um assassino.
Com a cabeça relativamente mais fria, o professor começou uma preparação para eliminar ou dissimular possíveis provas. Verificou a lataria de seu carro e constou que não havia nada do que um quase imperceptível arranhão. Por sorte, atingira Fabiana na parte do amassado que sua esposa causara numa colisão leve.
Dormir seria uma tarefa impossível; todas as vezes que fechava os olhos, a imagem de sua aluna caída morta com uma faixa de sangue escorrendo por baixo dos cabelos o perturbava e muito. Pegou o telefone e por pouco, não telefonou para o amigo, Sebastião. Assentiu que era melhor não compartilhar aquele segredo com ninguém. Sentou-se na poltrona localizada na varanda de seu apartamento na Tijuca e com uma garrafa de Red Label em mãos, danou a se embebedar.

Sexta Feira...

A luz do sol da manhã atingiu o rosto de Anderson que passara a fria madrugada do lado de fora. Seu hálito era puro uísque e o branco de seus olhos estava tão vermelhos quanto uma conjuntivite. A principio, o professor tencionou não ir à escola, porém, concordou consigo mesmo que se agisse mais naturalmente possível, menos suspeita levantaria. Mesmo sem condições, ele ia pondo-se de pé para trabalhar. A garrafa de Red Label rolou sobre seu colo e por pouco não se espatifou na queda. Cambaleante, Anderson apenas lavou o rosto e escovou os dentes antes de sair de casa.
Naquela sexta, o professor de língua portuguesa, Anderson Guimarães, não estava em sala de aula meia hora antes do sinal de entrada como de costume. Muito pelo contrário, ele estava bastante atrasado. Havia certa expectativa dos alunos em gozarem dois tempos vagos. O ultimo dia de aula estimulava uma singular euforia em todos. A classe conversava em um tom exaltado formando um alarido de vozes. Porém a algazarra de súbito cessou; para desapontamento de quase toda a turma, o professor chegara à sala de aula.
Burburinhos se formavam, pois eles cochichavam sobre o horrível aspecto de seu professor que os encarava com um olhar peculiar. Algumas risadinhas foram dadas ao fundo da classe, porém logo o silêncio reinou absoluto.
Com todos o olhando com olhos sobressaltados, Anderson se deu conta no quanto estava mal. A primeira coisa que fizera fora olhar para a carteira vazia de Fabiana Guedes. Suspirou e sentou-se diante de sua mesa onde levou as duas mãos a cabeça que martelava num ritmo incessante. Abriu a gaveta ao léu e lá, havia algo que fizera seus olhos avermelhados se arregalarem. Uma folha de caderno que não deveria estar naquele interior jazia sobre alguns materiais. Anderson Guimarães tomou o papel em mãos e uma tremedeira passou a tomar conta de seu corpo de tal forma, que seus dedos quase rasgavam involuntariamente aquele papel. Por um momento, ele olhou por cima daquela folha encarando horrorizado seus alunos. Desceu os olhares novamente para o papel como se tal gesto pudesse mudar o que lá estava escrito.
Sobre aquela folha de caderno, recortes de jornais e revistas formavam uma frase que o estremecia. Uma frase que o horrorizou e o conduziu até as mais profanas e insólitas zonas da alma.
EU SEI