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domingo, 22 de maio de 2011

O assassinato de Virgínia


1
A luxuriante lua cheia ornava aquela noite fria e brumosa de outono. O orvalho descia dos céus formando um tímido véu sobre a relva rasteira. Uma película alva que ficaria evidente assim que os primeiros raios de sol da manhã surgissem.  As lâmpadas dos postes bruxuleavam como as chamas das velas ante a corrente de ar. Minha projeção ora era lançada ao meio da rua, ora a sarjeta como um teatro de sombras. Caminhava em passos claudicantes segurando uma boa e velha garrafa de uísque 12 anos. Talvez a embriaguez ajudasse a me acalentar diante da gélida e soturna brisa que soprava inapelável farfalhando as folhas das árvores.
Olhares me espreitavam da penumbra enquanto os cães uivavam em um coro lúgubre e entrecortado. Os sinos da capela badalavam a meia noite. Sentado no banquinho de madeira da praça central da cidade, fiquei a escutar aquele som metálico e cru enquanto virava o último gole de uísque que usaria em uma ocasião de maior relevância.
Suspiros lançam fumaças de minha boca como um dragão cuspindo seu bafo ardente e devastador. Uma coruja começou a piar sobre uma amendoeira enquanto me encarava com seus assassinos e vítreos olhos amarelados. Olhos que vagueavam a hipnose e por pouco, não existia a sensação de estar sendo dragado para uma realidade onírica que no fundo, não seria de todo ruim.
Porém, o que mais me perturbava naquela noite pálida e obscura, era o que fazer com o corpo de Virgínia.

2
Não me lembro do que me motivou a me embebedar no fim daquela tarde. Virgínia e eu já havíamos passados por inúmeras discussões até piores do que a que ocorrera pela manhã. Nunca precisei me entorpecer para esquecer os fatos e sequer usei isso como uma desculpa deturpadora, mas o caso, é que eu simplesmente bebi, bebi e bebi e não conseguia lembrar-me de mais nada.
Quando recobrei a consciência, já no limiar entre a noite e a madrugada, minhas mãos estavam cobertas de sangue e Virgínia jazia morta sobre a cama na qual fazíamos amor. Meus olhos se arregalaram em pavor supremo. Vê-la ensanguentada com seus olhos abertos e ausentes de luz, sua boca escancarada delineando a sua expressão apavorada e de desagradável surpresa, fizera meus brios estremecerem. Um corte desenhara um sorriso sangrento em seu pescoço, sobre a cabeceira da cama, uma faca ensanguentada. Que para meu horror absoluto, haviam as marcas de meus dedos naquele objeto que a imolara.
Vomitei sobre meus sapatos e comecei a sussurrar uma litania de palavras sem sentidos e entrecortadas por soluços. Havia ido longe de mais e não poderia consertar com um pedido de desculpas ou um buquê de rosas como já fizera anteriormente. Ela estava morta, esticada na cama e ensanguentada. Uma repugnante e doentia ereção se assolou sobre meu pau; de alguma forma, fora excitante vê-la daquele jeito. Com seus cabelos negros e lisos caindo para fora da cama. Seus brandos seios protuberantes sobre a sua babylook do Iron Maiden. A sua sexy tatuagem no umbigo e a sua calcinha vermelha exposta, pois era assim que ela dormia, sempre à vontade. Uma excitação que rompeu o horror inicial.
Quando me vi apalpando seus seios e molestando a sua vagina seca e fria, como não poderia deixar de ser, se tratando da boceta de um cadáver, percebi que tinha que continuar bebendo. Não que a bebida viesse a me ajudar em algo, não que viesse a dar uma solução para aquilo, serviria apenas como um paliativo para afastar aqueles pensamentos perversos e doentios. Foi assim que tomei em mãos a garrafa de uísque e comecei a entornar enquanto forçava a mente tentando descobrir o que me motivou a matar Virgínia.
Vazio. Apenas um vazio a ser preenchido. Desde a minha entrada no bar de Agostinho até a hora que acordei sobre a minha poltrona com duas garrafas de vodca barata sobre meu colo. Uma chuva fina passava a cair sobre mim e a coruja no galho da amendoeira soltava um último piado de despedida antes de voar para os bosques de Dias Mendes. Não posso ser preso, estou no auge de minha juventude e não quero desperdiça-la atrás das grades. Era o meu pensamento. Contudo, a primeira coisa que teria a fazer era livrar-me de seu corpo. A meu favor, pesava a aversão que a maioria da cidade tinha para com ela e o fato de Virgínia não ter nenhum parente próximo. Sua falta não seria sentida nem tão cedo, e isso me daria tempo para tomar a melhor decisão.

3
A chuva forte caía em Dias Mendes com pingos frios e devastadores. O contato com a pele os faziam assimilarem a flechas geladas ou lanças de gelo. Sob a proteção de meu fuliginoso impermeável de vinil, eu fazia uma cova no coração do bosque sob o auspício da brumosa madrugada enquanto o corpo de Virgínia aguardava sob um tímido tecido manchado com seu sangue. Relâmpagos faziam o céu piscar em uma tonalidade baça. Criaturas se esgueiravam por entres os arbustos e outras espreitavam de cima das árvores como uma plateia de um espetáculo dantesco.
A profundidade da cova estava suficientemente boa. Mesmo se não estivesse o coquetel suicida que tomei durante o dia não me permitiria cavar um centímetro a mais. Vomitei antes de fincar a pá naquele solo miasmático e chorei com a testa apoiada no cabo daquela ferramenta.
Assim como havia um vazio em minha mente a respeito da cronologia do meu dia, havia também um vazio em minha alma. Um sentimento amargurado em ter que enterrar uma pessoa que embora não amasse, era uma ótima companheira e sempre estivera do meu lado em inúmeros momentos de minha vida fossem eles bons ou ruins. E pior do que enterra-la, era ter a certeza de ser o seu algoz. Definitivamente, Virgínia não merecia um funeral desses, mesmo toda a cidade achando que ela mereceria um pior, ela definitivamente, não merecia ser enterrada ao relento. Sob o úmido solo pantanoso, sem uma coroa de flores e um epitáfio com uma última homenagem lapidada.
Ao coloca-la em sua cova úmida e escura, fiquei a observa-la com certa fascinação, a maneira de como a morte havia lhe deixado bela, a maneira de como a sua pele alva e empalidecida contrastava na escuridão. A maneira de como a água ia preenchendo aquele buraco fazendo seus cabelos escorrerem pelo rosto, rosto que era manchado pelos pingos de lama deixando uma marca negra naquela alvura. Cobri-la, foi a pior parte do negócio. A cada pá de lama que eu pusera por cima de seu corpo inanimado, uma dor em meu coração lancinava como se uma mão espectral atravessasse a minha caixa torácica esmagando-o em um aperto homicida.
Todavia, quando os céus relampejaram delineando todo o cenário em um mar de silhuetas irregulares entre arbustos rasteiros e troncos de árvores colossais. O fulgor do relâmpago levou a sua diminuta claridade até as irregularidades contidas naquele cenário. Inclusive a cova que fora criada de maneira tão inatual. Nesse processo, o brilho dos céus me permitiu notar algo que não havia notado quando transportei o seu corpo. Uma coisa refletiu o pálido fulgor do relâmpago. Um objeto que estava na mão cerrada de Virgínia. Desci a cova esgueirando-me na lama e abri a sua mão pegando aquele curioso objeto.
Tratava-se de um crucifixo prateado. Um objeto que me deixou com a pulga atrás da orelha, afinal, Virgínia estava longe de ser religiosa e era convicta o suficiente a não se apegar nem mesmo em sua hora derradeira. Galhos estalavam em algum lugar da escuridão. Seriam passos? Seria alguém nas proximidades? Era improvável, porém não impossível. Pus o crucifixo em meu bolso e pus a enterra-la sem ao menos dar um último adeus.

4
Após limpar toda a sujeira em nosso quarto, queimei o colchão e tudo o que havia sido manchado pelo sangue de Virgínia. O velho depósito abandonado de Dias Mendes ao menos fornecia tal serventia. Quando terminei de me banhar e sentar em minha poltrona, os relógios já marcavam 4h20 da madrugada. A adrenalina dera um jeito em minha embriaguez, passei a divagar pelas irrealidades. Eu não poderia tê-la matado puro e simplesmente. Ela devia ter feito algo para que hediondo fato fosse consumado. Todavia, mesmo que Virgínia e eu tivéssemos um embate mortal, tal coisa só aconteceria por acidente. E ela fora degolada, morrera sufocada pelo próprio sangue empapado em sua garganta. Precisava de um drinque para afastar algumas ideias, principalmente, uma ideia pervertida de me excitar ao vê-la morta e ensanguentada.
- Meu Deus! – Eu resmunguei evocando o todo poderoso.
E tal exclamação me levou a relembrar do crucifixo que Virgínia segurava. Fui ao cesto de roupas sujas e o peguei no bolso da calça encardida. O encarei com olhos febris tentando entender o porquê ela segurava aquele objeto.
- Me diga o que houve, por favor, me diga o que houve. – Eu sibilava enquanto apertava aquele pequeno pedaço de metal querendo sorver todas as informações contidas naquele objeto inanimado.
Apertei até que os nós dos meus dedos ficassem esbranquiçados.
- O que você fazia na mão de uma pagã? O que você fazia na mão de uma pessoa que só lhe usaria de ponta cabeça?
As perguntas ficaram ao vento. Nada pode ser mais impotente do que um homem sem respostas. Porém, uma tímida chama ardia nas profundezas de meu subconsciente. Uma sensação imprecisa de que já tinha visto tal crucifixo em algum lugar. Mas onde? Por que tal coisa não me soava estranha de uma hora para outra? Será que realmente eu a matei? Será que existia outra possibilidade? Diante dessas dúvidas, esforcei-me para relembrar o máximo e juntar as peças. O quebra cabeça estava armado.

5
Pela manhã, Virgínia e eu fomos ao mercado como sempre fazíamos todo início de mês. Virgínia, como sempre, causava o mesmo reboliço e os olhares odiosos quando saía de casa. Vestia uma blusa de uma banda de black metal com a perturbadora imagem de Jesus esquartejado em um pentagrama. As senhoras resmungavam e ela parecia curtir aquele momento.
Entramos no mercadinho e para meu desembaraço, Carla estava ao caixa com seus cabelos loiros e seus sinuosos olhos cor de diamante. Virgínia odiava a maneira de como Carla lançava seus olhares, segundo ela, libidinosos para mim. Eu sempre contemporizei dizendo que Carla agia assim com todos até perceber que era só comigo. Assim que cruzamos a cortina de ar do mercadinho, a bela Carla me desejou um bom dia entoando uma voz íntima. A expressão de Virgínia se fechou de imediato e eu enrubesci, fizemos as compras sob seus resmungos.
Na hora de passar as compras, Carla me aguardava com seu solícito sorriso em seus lábios carnudos e molhados. Naquela manhã, percebi que mais do que tudo, ela fazia por mera provocação a Virgínia. De alguma forma, sabia que minha companheira a mal dizia todas as vezes que se dirigia a mim, e enquanto ela computava as compras, confabulamos sobre um assunto rápido e corriqueiro. Porém, o olhar dela deixava nas entrelinhas a sua intenção.
- Por que não marcam uma hora no motel?! – gritou Virgínia de imediato. Todos olharam para nós – Melhor, por que não tiram logo as roupas e comecem a foder aqui mesmo?!
Um alarido de vozes se formou. De alguma maneira, as palavras sujas de Virgínia afrontava aquela comunidade assim como os afrontava mediante a sua própria existência.
- Por favor, Virgínia. - Eu contemporizei.
-Por favor é o caralho! – ela insistia em gritar – Se quer foder com ela faça aqui mesmo, não fode!
Virgínia sabia mais do que ninguém, que a coisa que mais me irritava eram escândalos, e era isso que ela fazia todas as vezes que queria me irritar. Em um mercado relativamente cheio, a coisa se agravava. Olhei para Carla numa expressão desconsolada e ela me foi solidária.
Virgínia saiu aos tropeções esbarrando numas senhoras que embrulhavam suas compras nas sacolas. Duas caixas de sabão em pó chegaram a cair. As senhoras reclamaram timidamente pelo esbarrão. Uma mulher gorda que aguardava os seus filhos para ajuda-la com as compras, ameaçou a retrucar, porém, Virgínia anteviu o que ela iria dizer, assim como anteviu o que todos estavam pensando a seu respeito.
Virou-se para o mercadinho e com os dedos médios enriste, praguejou:
- Vão todos tomar em seus cus, seus cristãos de merda! Vão para o inferno!
Algumas pessoas chegaram a se benzer diante de tais palavras. Todos os olhares se voltaram contra mim. Olhares inquisidores que diziam “O que ainda está fazendo com essa mulher?” Porém, ela era uma boa companhia.

6
A primeira coisa que vi quando cheguei a casa com as compras, foram as minhas coisas todas espalhadas pelos cantos. Geniosa, Virgínia sempre quando era contrariada agia como uma criança mimada, e isso me davam nos nervos. Certo dia, após uma discussão, encontrei a minha camisa do Fluminense autografada pelos jogadores em retalhos. Deus sabe o quanto estive perto de agredi-la naquele dia, porém não fiz e não faria por menores como ver minhas coisas espalhadas. Continuamos a discussão aos berros, pois era impossível debater com ela em um tom de voz regular. Sai batendo a porta e danei a perambular sem um destino específico. Fazia tempo que não me via tão irritado, todas as vezes que a imagem dela vinha a minha mente em um vislumbre, a vontade era de explodir o mundo.

7
Entrei no bar de Agostinho e pedi uma Brahma. Precisava relaxar e uma geladinha não seria nada mau. Ao meu lado estava Sérgio, sua expressão dizia que começara a beber desde as primeiras horas da manhã. Na mesa de sinuca, próximo ao banheiro masculino – o único banheiro daquela espelunca – estavam os gêmeos Ruy e Fernando.
Velhos amigos da época de catecismo e crisma que o passar dos anos fez com que se tornassem apenas conhecidos, Fernando e Ruy cochichavam enquanto eu tomava a minha cerveja. Senti que cochichavam a meu respeito, fato que não era incomum, pois desde que iniciei meu relacionamento com Virgínia, o que mais as pessoas faziam era cochichar em minhas costas. Dei de ombros e comecei a beber, após alguns minutos, eles se aproximaram e me perguntaram se poderiam me fazer companhia. Disse que sim e os gêmeos se sentaram. Começamos a confabular enquanto bebia e...

8
... Lembrei! O crucifixo, o crucifixo que eu apertava com vivacidade era idêntico aos que Ruy e Fernando usavam. Será que eles me ajudaram a mata-la? Ou será que... Um bocejo interrompeu meu raciocínio. A manhã estaria prestes a chegar, e embora o cheiro de morte ainda estivesse adocicado de maneira perturbadora no ar, o cansaço físico e mental acabou prevalecendo. Umas horas de sono me faria bem. O vento chacoalhava as cortinas e quando menos percebi, já estava mergulhado nas profundezas do torpor acariciado pelo acalento das mãos de Hipnos.


9
Acordei por volta das 9h45. O sol radiava lá fora digno de uma manhã estival. Os pássaros cantarolavam em uma sinfonia jovial e plena. Por um instante, pensei que tudo estava bem, mas a dor de cabeça decorrente da bebedeira da noite passada teve a gentileza de me lembrar de imediato, que as coisas estavam feias. Lavei o rosto diante do espelho do banheiro e minha expressão não era nada boa. Pus a mão em meu bolso de onde tirei aquele crucifixo.
- Ruy e Fernando.- Murmurei.
Havia um silêncio pesaroso pelas ruas de Dias Mendes. Era como se as pessoas expressassem um tímido sentimento culposo por suas expressões fechadas e taciturnas. Algumas me olhavam de esguelha; a sensação era de que a qualquer momento, um policial me interpelaria pela rua acusando-me do assassinato de Virgínia. A sensação se agravou quando cruzei com Carla e ela não sorriu para mim. Agira como se estivesse olhando para a coisa mais horrenda do universo. O seu esgar de aversão para comigo, fez-me sentir o próprio Diabo caminhando em terras sagradas. Sorri para ela mesmo assim no intuito de manter as aparências, e em resposta, a vi atravessando a rua me evitando ao máximo.
Ruy e Fernando cochichavam defronte ao velho cinema abandonado da cidade. A face deles estavam mais suspeitas que a minha. Caminhei até eles com a certeza de que todos continuavam a me lançar olhares.
Quando me aproximei dos gêmeos, fora evidente o desconforto que eles demonstraram com a minha presença. Todavia, eu teria de ser meticuloso, não poderia chegar e perguntar se eles me viram, ajudaram, ou se eles mataram Virgínia. Por isso perguntei se poderiam me dizer o que eu havia feito após deixar o bar de Agostinho. Os gêmeos se entreolharam antes de me responder, pareciam que combinavam algo telepaticamente antes de qualquer precipitação. Nesse ínterim, notei que Fernando usava um crucifixo semelhante ao que Virgínia tinha em sua mão, e que Ruy usava apenas o cordão sem ter nada além de seu pescoço preso a ele. Talvez Virgínia tivesse arrancado e ele sequer havia percebido.
Fernando respondeu que havíamos saído do bar por volta das 19h. Após isso, eu havia tomado um rumo e eles outros. Óbvio que os gêmeos estavam mentindo e encará-los frente a frente, só me deu a certeza de que aqueles dois estavam envolvidos até o talo na morte de Virgínia.
Dissimularam e saíram pela tangente deixando toda a suspeita para trás como se suas culpas pudessem marcar de rubro as suas pegadas. Olhei por cima dos ombros e as pessoas estavam todas paradas me observando. Encarei-os por um longo segundo, e eles se deram conta ao seguirem suas vidas. Elas sabiam de alguma coisa, mas o que me interessavam naquele momento, eram os gêmeos Ruy e Fernando.
Segui os rubros rastros da culpa que deixaram para trás.

10
Há em Dias Mendes uma velha oficina semi desativada onde Ruy e Fernando passavam a maior parte de seu tempo quando não estavam na missa. Seguindo suas pegadas rubras, esgueirei-me pelo vasto pátio daquela oficina em busca de respostas. A manhã estival de súbito se transformou em uma manhã de outono. Um outono pálido e melancólico. Uma brisa forte e fria soprou chocalhando as ervas daninhas que cresciam sobre o terreno mal cuidado. Meus passos estalavam sobre a brita e os cascalhos. Um berro atarracado e agudo de um animal cortou o ar fazendo meu coração acelerar em batidas frenéticas. O animal em questão era um lúgubre e inoportuno gato preto. O felino me encarou por um instante e ronronou em afronto antes de se meter nas carcaças empilhadas de veículos. Ao fundo do longo terreno parcialmente abandonado cujo portão não oferecia nenhuma proteção, embora houvesse uma placa de cão antissocial, havia um pequeno galpão que julguei ser o destino daqueles dois.
A brisa gelada persistia em assoprar eriçando os pelos do meu corpo. Aproximei-me com cautela tentando fazer o menor ruído possível. A porta do galpão encontrava-se entreaberta. Pus-me atrás dela e fiquei a ouvir.
- Estou dizendo, Fernando, ele sabe, ele deve ter descoberto! – Dizia Ruy apavorado.
- Acalme-se, Ruy. – Replicava Fernando.
Os dois claramente discutiam e embora fossem gêmeos, Fernando sempre demonstrou mais segurança de si do que seu irmão 7 minutos mais jovem. Ruy era o típico idiota funcional que quando agia sozinho, só fazia merda. Talvez ele tivesse matado Virgínia por alguma atitude idiota. Pensei naquele momento.
- Ele vai nos denunciar, Fernando, eu não quero ser preso!
- Cale a boca! – gritou Fernando – Já disse para se acalmar. Ninguém será preso.
A discussão entre eles cessou quando esbarrei bruscamente numa placa de metal que escondia um buraco no muro. Rapidamente, acelerei-me para me esconder e acabei correndo para trás de um esqueleto de Volkswagen.
Eles saíram e para minha sorte, não perceberam nada.
- Eu vou matar esses malditos gatos! – Disse Fernando.
Por 20 minutos, eu permaneci escondido pensando em como aborda-los para extrair toda a verdade daquela dupla de filhos da puta. Ruy havia saído para algum lugar e naquele instante, lamentei por não ter agido.
Fernando mexia em um motor quando notou a minha presença em suas costas pensando ser o seu irmão.
-Ué, já voltou? – Ele disse pegando uma chave inglesa em uma mesa repleta de peças.
- O que você fizeram com ela, Fernando? – Eu perguntei.
Embora ele estivesse de costas, pude perceber que seus olhos se arregalaram em uma expressão de imediata surpresa.
Houve um sincero momento letárgico entre ele e eu. Minhas pernas oscilavam ansiosas pela verdade. Lentamente, ele ia se virando e sua expressão já demonstrava resignação.
- Vocês a mataram, Fernando. – Eu afirmei em uma voz incerta.
- Do que você está falando? – Ele replicava em dissimulação.
-Você e seu irmão mataram Virgínia! – Eu gritei.
Fernando franziu a testa formando um cenho.
-Você só pode estar bêbado ainda. Se bem que eu teria certo prazer em matar aquela meretriz de Satanás.
O sangue ferveu em minha cabeça e fumaças sairiam de meus ouvidos se estivéssemos em um desenho animado. Meus olhos percorreram rapidamente ao redor em busca de algo que eu pudesse usar para quebrar a cara de Fernando. Estrábicos, visualizaram uma barra de ferro com cerca de 60 cm de comprimento e de mais ou menos 2 quilos e meio. A barra estava sobre um balcão que suportava um velho esmeril.
- Se liga, cara – dizia Fernando – dê o fora antes que eu me aborreça ainda mais com você.
Todavia, seus olhos se arregalaram quando tirei do meu bolso o crucifixo semelhante ao que ele usava. O ergui contrariando todo aquele jogo sínico e escroto.
As palavras frias de Fernando se entalaram em sua garganta. Eu o encurralei em um beco úmido e sem saída.
- Encontrei isso na mão de Virgínia e percebi que o cordão de Ruy estava sem o crucifixo, exatamente este crucifixo.
Fernando fechou o semblante por um curto momento. Embora eu não tenha nenhum poder sobrenatural, pude perceber que seus pensamentos eram odiosos ao irmão.
Idiota descuidado.
Ele não percebia que eu me aproximava com ódio no coração pondo-me em uma distância fundamental.
A brisa lá fora insistia sibilante com seu gélido sopro fazendo o cata-vento de aço girar freneticamente.
- Por que vocês mataram Virgínia?
Fernando suspirou e em um movimento totalmente suspeito, descia a sua mão até a cintura com seus dedos tamborilando o próprio corpo.
Ele ia sacar uma arma. Eu pensei. Ele ia sacar uma arma e iria me matar e todo o caso seria sepultado na obscuridade do ostracismo. Eu tinha que agir depressa se não quisesse morrer ali mesmo. Minhas mãos anuíram à necessidade da sobrevivência. Absorveram todo um instinto num mundo governado sob a lei do cão. Absorto a isso, elas se fecharam com tenacidade a barra de ferro.
Antes que Fernando pudesse precipitar qualquer ação, eu em um movimento rápido que o surpreendera, lhe atingi com aquele metal maciço e avassalador bem no meio da cara. Ele caiu de imediato com a mão direita acariciando um volume sob a camisa e a mão esquerda segurando a chave inglesa. Seu corpo fizera um ruído surdo quando atingiu o chão. Caíra de maneira tão inanimada que naquele instante, pensei que o tivesse matado.
Verifiquei o volume que ele estava prestes a sacar e me estremeci ao ver que era realmente uma arma. Tomei aquele Trinta e Oito em mãos mais para desarma-lo do que para usar tal revolver em uma ação futura. No fim, assenti que havia batido forte de mais e que ele não levantaria nem tão cedo. Aquilo fora de fato frustrante, pois eu queria respostas imediatas. Por que eles a mataram? Será que ela os incomodava a tal ponto que os levaram a cometer tal coisa?

11
Duas horas se passaram e Ruy não dera sinal de vida. Os primeiros sinais de uma tarde cinzenta e melancólica de meados do outono já se configuravam nos céus de Dias Mendes. Percebi que ele não voltaria para a oficina nem tão cedo, tinha que procura-lo se quisesse descobrir a verdade. Peguei a velha pick-up de Fernando e sai à procura de seu irmão deixando-o acorrentado, amordaçado e desmaiado.
Levei uma hora e meia para descobrir o paradeiro de Ruy. Desde criança, ele sempre tivera o impudor de observar as garotas nos vestiários da escola ou elas se banhando em seus biquínis na Cachoeira Azul. Uma juventude a base de uma sexualidade reprimida, fizera tal depravação ficar mais sofisticada com o passar dos anos.
Em Dias Mendes, mesmo o tempo não estando em uma temperatura elevada, pessoas iam à Cachoeira Azul só pelo simples fato de ver um radiante sol. Como já havia rodado toda a cidade, não me restavam muitas opções e seu destino se afunilava.
Tomei uma trilha paralela que levava a um pequeno precipício que permitia ver a cachoeira lá do alto. Há quem dizia que um grupo de adolescente há vários anos saltavam lá de cima até o poção formado pela queda d’água. Nesse suposto dia fatídico, um dos jovens bateu com a cabeça numa pedra no fundo da cachoeira e morreu na hora. Claro que ninguém dos tempos atuais testemunhara tal fato e sequer conhecia algum parente desses jovens, tratava-se apenas de uma história criada para desencorajar a geração de agora a fazer tamanha travessura. Com o Trinta e Oito de Fernando em mãos, eu subia a trilha seguindo os culposos rastros rubros de Ruy.
Conforme eu havia imaginado, ele estava lá. Observando umas adolescentes de 14 e 15 anos que ignoravam a água gelada da Cachoeira Azul se divertindo e aproveitando o ápice da juventude. Ruy se masturbava olhando-as de trás de um arbusto. Bastava só um empurrão e a morte de Virgínia seria vingada. Apenas um empurrão o separava da queda de 12 metros.
Como eu estava atrás de respostas e não de vingança, o puxei pelos fundilhos da calça virando-o e pondo o cano do Trinta e Oito em sua testa.
Ruy por pouco não gritou, contudo, fui rápido em por a minha mão esquerda contra sua boca e o máximo que conseguiu emitir fora um grunhido abafado.
- Escute bem – eu dizia – por mais que meus dedos estejam se coçando para puxar esse gatilho, eu não tenciono estourar os seus miolos. Porém, me dê um único motivo e você nunca mais vai bater punheta, seu verme filho da puta! Fui claro?
Ruy com os olhos arregalados na cara meneou a cabeça afirmativamente. Seu pênis que jazia para fora da calça, soltou um pequeno jato de urina molhando-o antes de amolecer. Estava apavorado.
- Eu sei o que você e seu irmão fizeram com Virgínia, quero que me conte o que aconteceu e não ouse omitir nenhuma informação. Entendeu?
Ele novamente afirmou com um gesto de cabeça antes de me dar todos os detalhes que o pavor lhe permitiu contar.
Dissera que numa das minhas idas ao banheiro no bar de Agostinho, eles puseram um pó que me fez apagar quase que instantaneamente. Carregaram-me até em casa e me puseram em minha poltrona completamente apagado. Virgínia que era viciada em Rivotril, já dormia em plena 19h45. Aquilo facilitou as coisas para eles, dissera-me Ruy. Porém quando entraram em nosso quarto com uma das facas de nossa casa em mãos, e puseram-se sobre ela para mata-la, Virgínia arregalou os olhos surpreendendo-os. Óbvio que não poderia lutar contra dois homens mais fortes do que ela. Eles a dominaram e a imobilizaram enquanto ela se debatia a gritava para que eu a ajudasse. Não obstante, eu estava entorpecido e quando soube que ela clamou por meu nome tentando se salvar, me senti péssimo. Fernando a degolou enquanto Ruy a segurava. Após isso, forjaram a cena do crime de modo que eu me sentisse culpado.
Eu queria puxar o gatilho para explodir a cabeça daquele desgraçado, porém tinha algo maior por de trás das cortinas que eu não estava sabendo.
- Por quê? – eu perguntei – Me diga apenas o porquê. – intimei enquanto ele chorava.

12
A noite não fora diferente da anterior. A luxuriante lua cheia ainda permanecia nos céus com seu amarelo sinuoso e inebriante. A escuridão era menos brumosa, porém mantinha o seu aspecto rudimentar de épocas primordiais. O inverno chegaria dentro de um mês, porém o frio já era um companheiro que Dias Mendes acostumou-se a ter. O ar era soturno e a cidade estava quieta.
A capela badalava seus sinos marcando às 19h. Os moradores em suma maioria, seguiam em uma marcha obscura e cadenciada com suas expressões fantasmagóricas e pálidas para lá.
De longe, eu observava o movimento. Escondido nas trevas aguardando o momento certo. Em minha posse, o velho casaco presente de Virgínia me protegendo do frio, o Trinta e Oito de Fernando, meu sedento senso de justiça e uma pessoa sob meus olhos odiosos e implacável domínio.
As missas do padre Manoel eram as mais frequentadas da região. O clérigo tinha certo dom em conduzir com maestria aquela massa pobre, frustrada de espirito e perspectivas. Era um homem que por de trás de seu belo e jovial rosto de 55 anos, exercia uma forte influência em todos os setores de Dias Mendes. Logo, qualquer político que tivesse intenção em se eleger, tinha como tarefa obrigatória, conquistar a simpatia do padre.

13
A capela de Dias Mendes não era necessariamente uma capela. Seu tamanho era vagamente colossal. Com seu grande salão abobadado dando um singelo estilo gótico que fazia o som da voz de padre Manoel ressoar com clareza. Um órgão era tocado nas músicas litúrgicas dando a sensação de que o município se transformara em um feudo europeu.
Quando padre Manoel proclamava a homilia, uma pessoa surgira como uma aparição na entrada principal da capela. Sob o domínio daquela pessoa, com as mãos amarradas atrás das costas, um sujeito esquálido e escandaloso. A pessoa era eu. O sujeito, Ruy.
O padre interrompeu o seu sermão quando me viu arrastando Ruy pelos cabelos com a mão esquerda e segurando a arma com a direita. Os fieis se assustaram com a cena e se levantaram formando um alarido de vozes farfalhantes. Lá fora, o vento soprava mais forte carregando a sujeira largada pelas sarjetas. Vento, que adentrou na capela abobadada fazendo os cabelos das mulheres esvoaçarem assim como algumas folhas dos rituais eucarísticos.
Atirei Ruy para frente e ele caiu desajeitado, meio de bruços e meio de joelhos pelo corredor da capela. Ergui o revólver de seu irmão e um “Oh!” soou em uníssono naquela igreja. Meus olhos estavam fixados em Ruy, mas podia claramente perceber a expressão sobressaltada das pessoas que lá estavam.
- Fale seu desgraçado! – gritei para Ruy – Fale para todos quem mandou você e seu irmão matar Virgínia?
Ruy começou a chorar e sua voz saia entrecortada por soluços. Puxei o cão do Trinta e Oito para trás fazendo um “Click”.
- É melhor falar senão te matarei aqui mesmo.
- Eu sinto muito, padre, eu não poderia... Eu não soube como ele pôde... – Ruy limitava-se a chorar.
- Diga a todos! – vociferei – Quem mandou você e seu irmão matar Virgínia?
Em prantos, Ruy apenas apontou para o mandatário do crime. O padre Manoel.
- Percebem agora o tipo de filho da puta que coloca a hóstia em suas bocas! – eu insistia em gritar erguendo o revólver de Ruy apontando para o padre – Esse desgraçado é um assassino!
No entanto, naquele momento percebi que algo estranho acontecia. Os olhos das pessoas que antes eram perplexos se tornaram inexpressivos ante aquela notícia reveladora e dantesca.  Pior, se tornaram resignados.
Padre Manoel começou a sorrir exibindo aquelas horrendas fileiras de dentes amarelados ironizando toda a situação. Eu devia ter puxado o gatilho e botado uma bala naquela cara homicida e asquerosa, porém, não o fiz, não sei por que eu não atirei logo de cara.
- Você não percebe, filho? – o padre dizia sob os olhares de cristo pregado na cruz – Não percebe o bem que esse jovem cristão junto de seu irmão fez para essas pessoas?
Meus olhos é que se arregalaram naquele instante em suma perplexidade.
- Aquela jovem era um afronto para essa comunidade, uma aberração enviada por Satanás com o único intuito de zombar das leis do Nosso Senhor.
- O que está dizendo? – perguntei num misto de choque e horror. Estava tão sobressaltado que formular palavras se tornou a coisa mais difícil do mundo. – Você está louco! Mandou assassinar uma pessoa que não fez mal nenhum a ninguém!
- Você está errado, filho – o padre replicava em uma odiosa tranquilidade – tudo o que estava acontecendo de ruim aqui em Dias Mendes se devia a presença daquela criatura de Satanás.
Nada poderia soar mais insano e doentio aos meus ouvidos, contudo, o que mais me impressionava, era o fato de que toda a cidade parecia ter cedido àquela premissa obscura e doentia. Uma espécie de histeria em massa onde o principal causador se travestia de padre.
- Não me digam que vocês concordam com esse louco? Não me digam que compartilham dessa merda que acabara de ser dita?
Ninguém respondeu, porém as expressões diziam tudo.
- Que porra de Deus é esse que permite um padre mandar matar uma pessoa? Por acaso vocês estão cegos? Perderam o mínimo senso de humanidade que lhe restavam? Esse cara é um louco e vai queimar no inferno!
-Você não sabe de nada, filho. Esse ato só comprovou o quanto somos tementes e obedientes a Deus. Foi um ato de redenção desse município. Um acontecimento para ser lembrado em datas futuras como o dia que expulsamos o Diabo de Dias Mendes.
-Não pode estar falando sério. – Retruquei.
- O próprio Altíssimo nos deu essa missão. Ele me disse através de seu anjo. Estamos vivendo uma nova era, meu jovem.
Ergui novamente a arma apontando para ele. O ódio consumia meu corpo e coloquei na cabeça que a verdadeira missão divina era devolver aquele padre dos diabos ao inferno. Porém, uma voz ressonou em destaque.
- Abaixe a arma e dê o fora.
Tratava-se do delegado Falcão. Naquele momento, pude perceber que Fernando tinha razão quando disse a Ruy na oficina, que ninguém sairia preso.
- Você não vai atirar em ninguém aqui. Vá embora, pois aqui é a casa de Deus. – Disse o delegado em um tom amistoso.
Ignorei as palavras de Falcão e atiraria nele caso se intrometesse. Embora todos ali estivessem envolvidos, meu ódio era canalizado apenas no padre.
- Se meta em meu caminho e eu atiro em você também, delegado. – Disse com confiança e avidez.
Não obstante, um a um dos que ali estavam, iam se pondo no altar solenemente. Em 5 minutos, toda a igreja fazia um escudo humano em solidariedade ao padre Manoel.
- Vai atirar em todos nós, filho? – Perguntou o Padre.
Era óbvio que eu não iria atirar em todos, por mais que quisesse, não haveria munição o suficiente. Diante daquela cena de total impotência e diante de olhares julgadores, eu não tive outra opção que não fosse abaixar a arma, admitir a derrota e deixar a abobadada capela com a soturna manta da insanidade sobre aquelas pessoas para trás. Pessoas que transitam entre mundos paralelos, duas realidades distorcendo o certo e o errado. O bem e o mal. Pessoas guiadas por uma mente evoluída no quesito loucura.
Desci as escadas da igreja e vaguei pela fria e pálida noite de outono. A luz da luxuriante lua cheia delineava a minha face exasperada.

14
Diante da sepultura de Virgínia, só me restou lamentar tudo e lhe pedir desculpas. Desculpas por compartilhar com ela um mundo no qual eu ainda busco explicações.
Fiquei ali por horas, ignorando o frio da madrugada, as picadas de insetos e ignorando principalmente a realidade das coisas. Lá eu permaneci contemplando a cova criada por mim tendo vislumbres e clarividências de um passado não tão distante. Pensamentos vagos e aleatórios. Pensamentos libidinosos de sua imagem empalidecida e ensanguentada. Uma ereção me atingiu transportando o ardor até as mais ínfimas profundidades de meu âmago. Danei a desenterra-la com as próprias mãos e quando terminei, fiz amor com seu corpo frio, enlameado e distante.
A maneira de expressar o meu último adeus.

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