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sábado, 30 de julho de 2011

O Missionário

“Eu não tive escolha. Ou era meu emprego ou a verdade”, e arrematou a tulipa de cerveja com uma golada que tragou meio copo. “Não vou ficar remoendo, não... Tenho família, uma filha...”

O Homem, que bebia ao seu lado, num boteco no Largo da Carioca, parou de falar e pôs a mão açodadamente no bolso de trás da calça, puxando a carteira. Do bolso dos níqueis, retirou uma três por quatro. Era uma menina alva como uma pomba, de cabelos lisos e olhos esbugalhados.

“Eu sei o que é isso”, disse o outro, na outra ponta do balcão, que bebia com vagar a cerveja, “também tenho uma filha. Eu acho que faria qualquer coisa por ela. Às vezes penso que se alguém fizesse alguma coisa pra ela, eu mataria!”, terminou com o resto de cerveja que restara em seu copo americano.

O Homem da outra ponta do balcão tirou do bolso uma nota de dez reais e pagou pelas duas garrafas de cerveja que bebera com o amigo enquanto conversavam. O que o ladeava pôs a mão na carteira do outro, não queria que lhe pagasse a bebida. O da extremidade do balcão insistiu, Deixa de bobeira, rapaz, ele disse. O balconista já estava de volta da caixa registradora com o troco. Era pouco, o homem da ponta do balcão lhe agraciou com uma gorjeta. Não precisava, senhor, respondeu.

Era final de expediente, e Jorge trabalhara tanto, envolto em tantos processos, tantos despachos, que nem vira o tempo passar. Por isso estava no bar, bebendo, antes de pegar o trem do metrô para casa. Saíra maquinalmente do edifício onde ficava seu escritório, na Avenida Nilo Peçanha. Até atravessar o vestíbulo, despediu-se como um robô enferrujado dos faxineiros, cumprimentou com um lance de cabeça o ascensorista, que achou estranha a débil deferência de quem sempre lhe tratara tão afetuosamente. Torciam pelo Fluminense e isso os aproximou; só falavam disso enquanto Jorge circulava pelos andares do edifício do Ministério Público Federal através do elevador.

Caminhou pela calçada; atravessou a Avenida Graça Aranha apressadamente – o sinal o admoestara com seu verde intermitente; cruzou a Avenida Rio Branco, seguindo em direção ao metrô. Só então caiu em si. Balançou a cabeça como quem acaba de acordar da sesta e arremeteu. Estava prestes a descer as escadas rolantes em meio à multidão que pelo rol de entrada da estação do Largo da Carioca acorria. Foi até a esquina e resolveu parar no bar cujo cardápio lhe apetecia desde os tempos da faculdade. Sentou-se no banco e pediu uma cerveja e um sanduíche de pernil. O garçom lhe atiçou a lembrança. Olhando-o por cima dos óculos escuros que sempre punha ao sair do trabalho, teve a certeza de que o garçom o havia reconhecido.

Dois homens conversavam ternamente, como se já estivessem ali por uma meia hora. Jorge sabia que o bar é um ímã, que torna tanto os que nele bebem pouco quanto os que nele se embebedam confidentes; homens simples desfiam teses sobre qualquer assunto; aposentados vetustos falam dos amores passados aos jovens; juízes se dignam a colóquios sórdidos com qualquer tipo que se aproxime.

Acompanhara somente o final do diálogo entre os dois. Depois de sentar-se ao balcão, apoiando o peso do torso nos antebraços sobre o aparato de vidro, de onde o garçom retirou o pernil despedaçado para lhe preparar o sanduíche, Jorge deixou sua mente evadir-se de si novamente. Bebeu, mas foi como se não o tivesse feito. Só o sabor do pernil, quiçá pelo longo tempo sem degustar da iguaria, pôde trazê-lo de volta.

A cevada amalgamada ao trigo e à proteína animal o tornou mais desperto. Até onde sua vista pôde alcançar, acompanhou com atenção os homens que o circunstavam, e que agora caminhavam em direção à Avenida Chile. O que bebia ao seu lado punha com cuidado a foto de sua filha na carteira, no exíguo compartimento dos níqueis, quase a esbarrar na multidão afoita ao sair do trabalho; o da extremidade do balcão falava enquanto tamborilava com a mão esquerda sua própria perna.

Ao perdê-los de vista, Jorge novamente caiu fleumático no nada de sua mente. Quando voltou a si, a cerveja já havia descido por completo pelo seu esôfago; sobrara-lhe um pedacinho do sanduíche. Jogou o pão fora e mastigou lentamente o que sobrara do pernil. Pagou a conta, disse até mais ao garçom, que lhe respondeu. Um lembrara do outro, de fato.

Caminhou lentamente até a estação. Menos de um minuto. Desceu as escadas rolantes. Era o ápice do afluxo de passageiros. O dia útil chegava ao fim. Havia filas para pagar as passagens, filas nas máquinas para carregar o cartão dos usuários dioturnos do metrô e havia filas para ultrapassar as roletas. Jorge as transpôs como um sonâmbulo.

Uma mulher deslumbrante passou por ele no rol. Usava uma calça colada ao corpo, sapatos altos, uma camiseta amarela; os cabelos eram como um polvo, saltitando sobre os ombros. Seus olhos se arregalaram. Sua atitude pachorrenta celeremente desapareceu. Jorge seguiu a mulher, mas até mudar de seus passos até este momento lentos para um caminhar intrépido, a mulher o despistou. Uma dezena de transeuntes se interpôs entre Jorge e seu alvo feminino na direção das escadas rolantes que a estavam levando até a plataforma. Jorge tentou ultrapassar um senhor obeso que estava a sua frente. Avançou pela esquerda, mas deu de cara com um muro humano de caminhantes desesperados para retornar às casas. Perto da escada rolante, viu a mulher descer correndo do último degrau em direção à composição que partiria à Zona Sul. Refugou como um cavalo açoitado. Nem se pudesse alcançá-la... Jorge morava na Pavuna.

A freada inesperada, num segundo, foi interrompida pela multidão que vinha das catracas. Jorge, empurrado, compulsoriamente caminhou indeciso como um boi rumo ao abate. Olhava para o chão; estava a ponto de se perder em devaneios estéreis novamente.

Quando peristalticamente concentrou-se para acertar o pé direto no degrau que assomaria logo abaixo dele, outra mulher o deteve. Uma mulher de idade indefinida, pele carmesim; usava um vestido gris escuro no busto e notadamente mais claro da cintura para baixo; os joelhos ora apareciam, ora se escondiam por baixo da barra do vestido, como crianças num pique-esconde; os olhos, embaçados, escondiam-se por detrás de uma lente grossa; seus cabelos eram desgrenhados e encanecidos. Toda tez comprimia-se em torno dos olhos; aqueles olhos quase cerrados, olhos de uma quase cega, sugavam para sua órbita todo o rosto da mulher grisalha, como o Sol atrai despoticamente os corpos celestes que em torno dele giram; as têmporas eram gretadas como se lhe as tivessem cavado com um estilete cego; suas sobrancelhas, arqueadas num “v” em ângulo obtuso; a boca aberta, pois o lábio superior também fora atraído pela densa gravidade impressa pelos olhos defeituosos; a testa, fresada.

A mulher arqueara seu corpo para ver com a maior clareza possível os degraus que corriam. Tateou o corrimão. Quase caiu, pois numa escada rolante isso deve ser feito concomitantemente ao passo, contudo não se sentira segura para pisar o degrau.

Jorge caminhava a passos curtos e fitava-a. Ficou esperando alguém lhe oferecer ajuda, tinha medo de socorrê-la e piorar situação que já lhe parecia deveras perigosa. Ninguém apareceu. Mesmo evitando, teve que lhe oferecer sua mão. Antes que Jorge a levantasse, a mulher segurou com força seu antebraço.

“Me ajuda, meu filho?”

Sua voz era jovem, mas insegura. Jorge a olhava com intensidade, talvez por saber que a mulher não o mirava, senão quando intentava pisar algum dos degraus rolantes e refugava.

“Claro”, disse Jorge segurando-lhe o antebraço com a outra mão. “Vamos lá... Olha o degrau e... Pronto”.

Na escada, Jorge concentrou-se, desde a subida, com a descida. Não havia pessoas à frente deles. Ninguém subira na escada enquanto a senhora lutava contra a falta de visão. Atrás deles, a multidão se espremia entre os degraus. Na escada que subia para o rol e trazia os passageiros da viagem de trem, todos os observavam. Alguns pensaram se tratar de um casal esquisito. A maior parte dos que subiam olhavam para Jorge e com ele se solidarizavam; era um recado mudo de boa sorte, de parabéns, de vocês vão chegar bem à plataforma. Jorge se sentiu bem.

Enquanto desciam ficaram em silêncio. Jorge estava concentrado em realizar sua boa-ação, a mulher só olhava para baixo.

Na metade do caminho, Jorge a inquiriu.

“A senhora está acostumada a andar sozinha aqui?”

“Sim. Sempre tem alguém pra me ajudar.”

“Então... Estamos chegando. Isso, isso mesmo... Mais um pouquinho e... Pronto!”

Não foi bem um gritinho de júbilo, entretanto estava bastante feliz. Era a mesma inflexão que usava com sua sobrinha ao vê-la realizar alguma tarefa ou brincadeira pela primeira vez.

“Obrigado, meu filho. Vai com Deus”

“Vai com Deus, Senhora.”

Ateu que era, sorriu. Não de si próprio. Não obstante sua condição de ímpio, sentiu-se abraçado por Deus, mas era como uma abraço de mãe, de um freira gordinha, de uma catequista velhinha. Só depois de passado o calor do amplexo dEle(a/as) pôde rir de si mesmo.

Num instante, a plataforma estava como sempre, àquele horário do dia. A mulher se perdeu na multidão que se ricocheteava em frente aos lugares onde se abririam as portas da composição vindoura. Jorge olhou para todos os cantos. Seu altruísmo agora era só seu e da mulher de cinza – com efeito, era somente de Jorge, pois no dia seguinte, a mulher iria descer pela mesma escada e contar com a ajuda de outro estranho, o que faria sua atitude de herói esvair-se da memória da simpática ceguinha.

A mente sem luz e sem cais de Jorge jazia agora no trabalho, no bar, no caminho para o metrô. Outra pessoa, renovada, estava agora a se apinhar no formigueiro . Sorria, bem de leve, mas sorria. A alma sorria mais desavergonhadamente ainda. Não podia demonstrar o quanto se sentia bem por ter feito o bem. Nem atinou que deveria ficar triste por pouco ter ajudado aos outros até então, tampouco pôde – ou não quis – concluir que não poderia ter feito outra coisa, que nem um facínora negaria seu braço à mulher.

Pensava em ajudar mais gente, aos seus vizinhos pobres, frequentar a associação de moradores, ministrar aulas de alguma coisa no curso pré-vestibular comunitário.

Foi então que sorriu de si mesmo pela primeira vez. A porta do trem se abriu. Seu sorriso fátuo não se abalara, enquanto quedava-se ao sabor dos homens e mulheres que o empurravam para o vagão superlotado.

Do jeito que entrou, ficou. Braço direito para cima, pé direito pisando outro pé de quem não podia se movimentar, senão pela força da multidão enfurecida.

Imóvel, refém dos rumores do vagão em movimento e dos colóquios que ainda se podiam escutar, tendo em vista a dificuldade para amigos, mães e filhos, casais se manterem juntos, lutando contra as torrentes de corpos humanos; fustigado pelos odores ora de cigarro, ora do miasma dos hálitos, ora das axilas malcheirosas, Jorge matutava feito um enxadrista. Para cada vaticínio humanista e beneficente que lhe aplacava o coração, seguia-se um leve sorriso indolente e censor para consigo. Como se quisesse desfrutar para sempre do prazer de ter ajudado a mulher míope, Jorge criava irrefreavelmente elucubrações de uma vida nova, cheia de doação, comunitária, mais dos outros do que de si. Tão logo se imaginava coletando cães sarnentos nas ruas, como se cochilasse numa sessão de cinema, uma mão invisível logo lhe esbofeteava de leve, como que para acordá-lo e lhe tirar um sarro do devaneio juvenil no qual acabara de embarcar. Imaginou-se plantando árvores nas ruas, Mas na hora da minha pelada?, retorquiu-se, balbuciando a pergunta entre as cabeças e ombros bem ao seu lado. Sorriu novamente. Não havia como controlar o furor de Madre Teresa que lhe subia à cabeça. Era uma visão atrás da outra, um sorriso atrás do outro, de modo que quem o olhasse ali naquele furdunço pensaria que sorrira desde o momento em que entrara no vagão até sua a saída, na estação terminal da Pavuna.


Quando deu por si, já no dia seguinte, Jorge já estava no elevador com quase uma dezena de pessoas e o ascensorista. Olhou para o relógio. Final de expediente. Virei mesmo um Zumbi, pensou.

“Quem joga Domingo, Rafael Moura ou Fred?”, perguntou ao ascensorista sem lhe dardejar o olhar, mantendo-o fixo para a porta que logo se lhe abriria.

“Fred”. Silêncio.

“Espero que não se machuque, né, Jorge...”, o ascensorista não conseguiu sustentar por muito tempo o gelo que tencionara dar no seu camarada, “Com o Fred a gente nunca sabe, só que na noite ele não desfalca a mulherada: joga todas e marca um gol atrás do outro.”

Os homens no elevador sorriram timidamente, senão Jorge, que gargalhou e jogou o diário esportivo no colo do ascensorista, assim que a porta se abriu para o andar térreo. Bateu no ombro do funcionário, que se despediu levantando sua mão esquerda.

Ao sair do edifício, Jorge não sabia para aonde ir. Deu três passos em direção à Avenida Antônio Carlos. Parou. Pensou. Volveu e seguiu rumo ao Largo da Carioca.

Lá chegando pediu o mesmo do dia anterior. Olhou o garçom dos dias de faculdade. O homem parecia querer lhe falar; ao menos, deu todas as condições a Jorge para que iniciasse a conversa. Jorge preferiu comer e beber, somente.

Errou novamente pelos bulevares vazios de sua mente. Estava a olhar para a sua direita, na mesma direção onde os desconhecidos que lhe haviam despertado um fiapo de interesse no dia anterior caminhavam, mas não enxergava o ir e vir dos trabalhadores na praça. Seus olhos refletiam as imagens que deveriam penetrar seus olhos.

Teve de esbugalhar os olhos e balançar a cabeça. Um borrão de gente apressada foi se desfazendo e transmutando-se numa imagem nítida. A mulher de vestido cinza andava indecisa recortando a multidão. Perscrutou-a; estava como no dia anterior, a não ser pelo vestido gris. Agora vestia um bege.

Um pastor fazia o discurso para seus fiéis, rodeado por algumas dezenas de pessoas. A mulher esbarrou numa senhora mais velha. Falou algo ao seu ouvido; a senhora crente lhe respondeu algo muito rapidamente, e as duas pararam e voltaram suas atenções à pregação. Tão logo o culto improvisado foi encerrado, a senhora mais velha pegou a quase cega pelo antebraço, caminharam pelo Largo, passaram em frente ao bar onde Jorge estava e foram até o metrô. Desceram.

Jorge assustou-se. Pagou rapidamente o seu lanche sem se despedir do garçom. Foi até a entrada do metrô, preocupado que ficara com a mulher que mal enxergava. Quem será essa mulher que a levou até a estação?, pensou. Num átimo, parou como se fora petrificado. Duas mulheres que vinham atrás lhe esbarraram, uma em cada espádua. A da sua direita reclamou. Jorge sequer a escutou. Lembrara do que a frágil ceguinha lhe dissera à mesma hora do dia anterior.

Sua pasta ficara no balcão do bar. Voltou para lá apressado, sem poder correr, sob pena de servir como bola de boliche e derrubar meia dúzia de transeuntes.

A pasta ainda estava lá, robusta, cheia de papéis. Havia levado trabalho para a casa. A imagem da mulher indefesa já lhe ocupara a cabeça, e com ela os sorrisos. Sorria de si próprio mais do nunca.

Atrás o balcão o garçom. Estava de costas, lavando uma fileira de copos americanos sujos de cerveja. Ainda com os dentes de fora, criou coragem.

“Eu não conheço o senhor?”, disse Jorge, coçando o queixo.

“Conhece sim”, respondeu o garçom, lavando o último copo, “você não mudou nada”, virou-se o balconista, escorando-se na borda pia, enxugando as mãos, “nem seus amigos. Eles sempre aparecem aqui”.

“Os da faculdade?”, perguntou Jorge, baixo e ininteligivelmente, de si para si.

“Toma”, disse Jorge, tirando do bolso cinquenta reais, “põe na conta”.

“Você não tem conta aqui, que dirá pendura.”

“Eu sei. Eu vou voltar aqui amanhã. E depois de amanh... Não, depois de amanhã é sábado. Volto aqui na segunda. Já deve ter aí”, Jorge apontou para a nota que o garçom segurava, “uns sete sanduíches de pernil”.

“Mas o senhor não precisa pagar tudo agora. Pra quê?”, respondeu o garçom, mostrando toda a sua incredulidade diante da situação, perquirindo a cédula.

“Eu sou meio esquecido. Não é por mal, eu sou assim. Nos últimos tempos isso tem ficado pior. Esses cinquenta reais vão me fazer voltar aqui. Aliás, quinze desses cinquenta são seus”

“Não precisava”, respondeu-lhe o garçom, com uma inflexão de quem já dramatizara agradecimento parecido a outros fregueses que lhe haviam dado gorjeta. “Quem doa algo – pode até ser pouco dinheiro – tem uma missão especial aqui nessa Terra. Pena que essas pessoas de bom coração não se dão conta. Você pode ser uma delas”.

Jorge sorriu. De si mesmo, como fizera nas últimas vinte e quatro horas. A viagem de volta para casa já não lhe seria tão fatigante, contudo não menos fátua que a do dia anterior, ao contrário.

“Isso não é nada, mas não é nada mesmo”.

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