1
Maxiliano Gonçalves abriu as cortinas de cetim e em seguida as janelas de seu quarto. A agradável brisa da manhã soprou eriçando seus ralos cabelos grisalhos e o sol da aurora deram evidências deveras as suas rugas. O velho debruçou-se sobre o peitoril da janela e contemplou a virgindade daquele sábado imaculado com os pássaros cantantes, o céu de anil com pouquíssimas nuvens e um baço espectro da lua. Sobre a mesinha de uma gaveta, ao lado da cama, um copo d’água junto a um envelope com um comprimido dentro, sob o copo, um bilhete.
Maxiliano sorriu ao ler o bilhete, de seus 3 filhos, a caçula Laura Gonçalves era a mais apegada a ele e a mais querida. Enfiou o comprimido na boca e tomou dois longos goles da água morna fazendo seu pomo-de-adão mover-se para cima e para baixo. O velho havia passado por uma ponte de safena havia 2 meses, o remédio lhe fora recomendado a fim de afinar o seu sangue.
Quarenta minutos mais tarde, o velho sentiu um mal súbito e caiu morto na cozinha de casa.
Maria das Graças, a empregada, o encontrou caído perante a geladeira entreaberta. Estava pálido e com os olhos arregalados lhe dando um aspecto hediondo. Um filete de saliva havia secado no canto de seus lábios formando uma diminuta espuma, suas calças estavam manchadas pela urina, os gelados dedos da morte o tocaram de vez. A empregada berrou em desespero. Seu patrão, Maxiliano Gonçalves, viúvo, 57 anos, falecera.
2
O domingo fora a antítese daquele sábado, o céu era nebuloso, o vento era gélido, os piares dos pássaros deram lugar a um lúgubre granar de um corvo e Maxiliano Gonçalves jazia em um luxuoso caixão repleto de flores. Um véu branco cobria seu rosto que apesar de toda a mortalha impregnada, tinha um aspecto agradável.
Os 2 filhos homens do velho recebiam os pêsames dos amigos. Estavam em seus impecáveis ternos pretos e por trás de seus caros óculos escuros. Laurinha era a imagem da desolação. Segurava as mãos sem vida do pai apertando-as com força.
-Pai, por que o senhor foi morrer? – murmurava ela – Você prometeu que iria estar na minha formatura, lembra que você me disse isso antes da operação? Não é justo, você me prometeu. – As lágrimas rolavam por sua face sem o menor pudor.
Horas após o enterro, os 3 filhos reuniram-se diante de uma mesa de mogno a fim de discutir a divisão dos bens do pai. Simão, Gilberto e Laurinha. Os homens tinham as feições resignadas, de fato, os óculos em seus rostos não escondiam tristeza e sim resignação.
3
- O que aconteceu?- Ele se perguntou.
Acordou sobre uma confortável almofada em cima da poltrona de sua biblioteca.
-Mas que diabos estou fazendo aqui?- Ele conjecturava o hiato que havia em suas memórias. A última imagem que tinha de sua casa era a cozinha, mais precisamente a sua geladeira.
-Lembrei! Eu estava com sede, sim, eu estava com muita sede e de repente... Senti uma tontura e tudo se apagou.
Ele desceu de sua poltrona e estranhou a perspectiva inferior que estava tendo de sua biblioteca. Caminhou em passos dificultosos ante um espelho redondo localizado ao lado de um velho relógio de pendulo e se assustou com o que viu.
-Meu Deus! Estou no corpo de Fido, o gato de Laurinha, mas que diabos está havendo? Será que isso é um pesadelo?
Ouviu um burburinho vindo do andar de cima e assentiu que eram seus filhos. Dirigiu-se até lá deixando o espelho que refletiu a imagem bonachona e preguiçosa de Fido para trás.
4
Os filhos discutiam quando Fido adentrou no escritório de Maxiliano e sentou-se sem ser percebido num canto qualquer.
-Não quero discutir sobre o dinheiro agora – dizia Gilberto – só o que faço questão no momento, é a cobertura da Barra e o Mercedes conversível.
-Quando você vai crescer Gilberto? – retrucou Simão – Sabe quem temos que analisar com calma todas as ações da empresa e vendê-la a um preço justo.
-Gente, pelo amor de Deus! –bramiu Laurinha em prantos – mal o enterramos, por que temos de falar disso agora?
-Ah vamos Laurinha!- disse Simão – o velho já era pra ter batido as botas há 2 meses, aquela ponte de safena só estendeu o que era pra ter acontecido.
Laurinha ficou pasma e sequer conseguiu dizer algo, soluçava.
Gilberto passou a mão sobre o ombro da irmã dizendo:
-Não fique assim Laurinha, o tempo vai curar isso, vá por mim.
Ela meneou a cabeça e disse em seguida:
-Mas por que vocês querem vender a empresa? Sabem que ela significava muito para o papai, sabem o quanto ele lutou para deixá-la no topo e ainda mais, sabe o quanto ele odeia aquele senhor Anderson Peregrino.
-Negócios são negócios Laurinha – disse Simão – o doutor Peregrino está disposto a pagar uma boa grana pela firma e creio que nenhum de nós será capaz de administrá-la.
5
Ele assentiu toda a situação.
-Merda, eu morri. Voltei no corpo de Fido.
Maxiliano estava perplexo com a situação. Duplamente perplexo. Dizem que os gatos são um facilitador para a passagem no outro mundo, um mediador entre o mundo dos vivos e dos mortos, mas o velho jamais acreditara nisso. E, o que ele também não queria acreditar, era que seus filhos pouco se importavam com sua morte e estavam dispostos a vender a sua empresa a qualquer custo.
-Bastardos ingratos! Depois que tudo que fiz por eles.
6
Gilberto levantou-se da mesa, tirou os óculos escuros do bolso do paletó e pôs no rosto.
-Já disse, não quero discutir isso. Façam o que quiserem e depois me passem a minha parcela. Só faço questão do Mercedes e da cobertura na Barra.
-Você é muito filho da puta! – gritou Laurinha – vocês dois são. Não passam de dois filhos das putas gananciosos!
-Ah não fode Laurinha – replicou Gilberto – foda-se aquele velho, e o que o Simão disse é verdade, ele durou demais. Como dizem, já foi tarde!
Gilberto ia se dirigindo para a porta do escritório e Fido avançou sobre suas pernas. Ele chutou o gato e o bichano rolou sobre o tapete persa.
-Maldito saco de pulgas!
Simão olhou severamente para a irmã antes de também se levantar da mesa. As mãos delas cobriam o rosto molestado pela tristeza. Ele suspirou fundo e disse:
-Você precisa entender a vida, Laurinha, a dele se foi e a nossa restou, pense nisso.
Laurinha ficou solitária e desolada no escritório. Caíra novamente em prantos e debruçou-se sobre a mesa. Fido caminhou para perto e pulou em seu colo. A jovem acariciou seu animal de estimação.
-Oh, minha doce Laurinha, você sempre foi meu tesouro.
7
Gilberto estacionou o Mercedes na garagem de seu falecido pai. Falava ao celular e entrou na residência e por lá permaneceu por uns 15 minutos antes de voltar ao veículo.
-Ora Joana – dizia ele ao celular – eu já lhe falei, os inquilinos do meu pai vão deixar a cobertura mês que vem e a casa será nossa... O que? ... Claro que daremos uma festa, já andei conversando com uns amigos a respeito disso, e digo a você que vai ser o bicho.
Gilberto ainda ao celular, ligou o carro, deu ré e saiu pelas ruas do Rio de Janeiro. O vento soprava contra ele movimentando seus cabelos que iam à altura dos ombros. Os óculos escuros estavam em seu rosto e lhe davam um aspecto bem burguês.
-Ainda não sei sobre a grana da empresa, Simão que está tratando isso e que saber, nem quero me meter nisso... E você acha que vou deixar ele me passar à perna? Faça-me o favor, Joana! Antes de ele pensar em me foder, eu o fodo duas vezes... Bem vou desligar o celular antes que eu seja multado.
Gilberto ligou o rádio do carro e uma música do Ac/dc tocava na rádio. Ele cantarolou acompanhando o refrão da música.
-I’m on the highway to hell!
Fido esgueirou-se pelo banco de trás do carro que um dia fora seu e postou-se no banco do carona sem que Gilberto o notasse. Ele batia com as mãos no volante acompanhando o ritmo da música e o gato o observava com olhos vítreos. Fido desceu do banco e foi-se na direção do freio e acelerador. Passou por baixo de sua perna direita e postou-se entre ela e a esquerda. As garras saltaram de suas patas e ele cravou-as no saco do motorista. Gilberto gritou de dor e num gesto de auto-reflexo, moveu bruscamente o volante levando o carro para a contramão.
Um ônibus que passava a alta velocidade não conseguiu frear o veículo e a colisão fora forte. Gilberto morrera na hora.
8
Os programas sensacionalistas comparavam a tragédia da família Gonçalves com a famosa família Kennedy. Dois dias após o enterro de Gilberto, Simão e Laurinha com Fido no colo tentavam decidir o que fazer com a herança que teriam de dividir.
-Bem, Laurinha, sei que estamos passando por atribulações, mas nesse momento temos que ser fortes.
Não obstante, o gato nos braços dela o incomodava.
-Mas o que diabos esse gato fazia no carro dele? – Perguntou Simão.
-Eu não sei - respondeu Laurinha com o olhar ausente – porém os bombeiros disseram que foi um milagre ele ter escapado do acidente.
-Bem, dizem que gatos têm 7 vidas, talvez só lhe reste 6 agora.
Um sorriso amarelo brotou no rosto de Simão e ele ameaçou uma carícia em Fido, contudo o gato mostrou suas presas demonstrando que não queria ser tocado por aquele sujeito. Simão recolheu a mão, pegou uns papeis sobre a mesa e colocou em sua pasta.
-Bem, devo fechar o negócio com o Dr. Peregrino ainda nessa semana, irei te manter a par de tudo o que está acontecendo. Deseje-me sorte.
O olhar ausente de Laurinha permaneceu. Fido o observou saindo com olhar iracundo.
9
Simão estava animado com a partilha em menos pessoas, mais do que isso, sabia que Laurinha era tola, fácil de ser manipulada e fácil de ser enganada.
-Está tudo correndo bem. Laurinha certamente nem saberá o valor que venderei a empresa, fato que a morte de Gilberto me lucrou uns 7 milhões por baixo.
Tomava um revigorante banho enquanto sua casa era invadida por um ser não desejável. Um gato para ser mais exato.
Fido vasculhou o local como um soldado que estuda o perímetro antes de tomar qualquer ação. Olhou para a escada de corrimão que dava acesso ao segundo andar e ficou estático, pensativo. Naquele momento, Simão começou a cantarolar no banheiro e aquilo pareceu que o estimulou a agir mais depressa. Fido subiu a escada. Logo no início do segundo andar, havia um quarto de hóspedes com um ventilador próximo a porta. O gato estudou o fio do ventilador e uma iluminação aflorou seus pensamentos.
Com a boca, ele levou a extremidade do macho da tomada até o corrimão e deu 4 voltas pelas pequenas balizas que davam suporte. Uma boa armadilha se levar em consideração que fora tramada por um gato siamês. Todavia, era preciso atraí-lo. Simão saiu do banheiro envolto por um roupão de banho azul e ligou o moderno rádio de sua sala de estar. Música clássica explodia no ambiente. O gato visualizou sobre um pedestal naquele corredor, um jarro de aspecto caro, mas que na verdade não era muito valioso. Correu até lá e derrubou o jarro fazendo-o espatifar-se sobre o chão.
Gilberto preparava o jantar quando estranhou o ruído. Abaixou o volume do rádio. Empunhou a faca que segurava e subiu a escada cautelosamente.
-Quem está ai?
Fido, encolheu-se sob a base do ventilador do quarto de hóspedes, o fio estava em sua boca.
-Quem está ai? – Insistiu.
Subia os degraus cautelosamente, um a um. Seus poros exalavam nuvens de tensão. Chegara ao andar de cima, passara pelo quarto de hóspedes onde jogara um olhar de soslaio. Ninguém estava ali. O cabo da faca em sua mão recebia uma considerável pressão. O gato o observava com seu olhar frio e seu aspecto bonachão. Simão fitou o jarro espatifado pelo corredor. Caminhou com menos cautela até o pedestal de gesso. Quem teria derrubado? Ele pensou. Contudo, ao fundo do corredor uma janela encontrava-se aberta com suas cortinas sacolejando devido à brisa noturna. Sorriu e o sorriso não demorou a se tornar uma estridente gargalhada. A faca já não mais estava firme. Assentira que fora o vento que derrubara o tal jarro.
-Toda essa história está deixando minha mente em frangalhos- disse ele- depois de fechar esse negócio certamente passarei um mês de férias pela Europa, não, Canadá.
Ele girou sobre os calcanhares não dando importância para os cacos do jarro sobre o tapete no corredor. Iria descer, aumentar o potente som de sua sala de estar e voltaria a preparar o jantar em sua luxuosa cozinha.
Fido aguardava o momento certo. Simão caminhava batendo com a lateral do gume da faca na palma da mão e quando ia deixando para trás a porta do quarto de hóspedes, o gato puxou o fio para trás esticando-o. Simão tropeçou e rolou a escada fazendo um ruído oco. Rolou os 15 degraus e uns metros no andar de baixo caindo de barriga para cima. De alguma maneira, a faca entrara em seu ventre. O seu roupão de banho não demorou a ter uma tonalidade escarlate na altura do abdômen. Apalpou o roupão molhado e levou os dedos manchados de sangue ante os olhos. Ao vê-los rubros, ele tomou ciência que estava em grandes apuros. Ouviu o ronronar vindo do alto da escada, ergueu a cabeça para fitar o autor daquele ruído, aquela ação parecia que lhe roubava suas últimas forças, os olhos que estavam fendidos se arregalaram num súbito e último horror. A última imagem que tivera em vida, fora o gato siamês de sua irmã caçula o encarando com seus olhos vítreos e desafiador. O mesmo gato que estava no carro de seu irmão do meio. Suas últimas palavras foram:
-Você, foi você...
Morrera com o dedo indicador apontado numa imperativa acusação para o alto da escada.
10
Duas semanas se passaram e a família Gonçalves (Laura Gonçalves) fora assunto em todos os veículos de imprensa, desde os tabloides de poucos centavos ao conceituado Jornal Nacional. Laurinha se tornou uma espécie de celebridade mórbida. Uma sobrevivente de mortes e acontecimentos bizarros em sua família.
-Oh minha doce Laurinha- Murmurava Maxiliano na confortável poltrona de sua biblioteca.
Ela estivera ausente por 12 dias, fugia do cruel assédio da imprensa e fugia do cheiro da morte que rondava o seu sangue. Fido ficara em casa sob os cuidados de Maria das Graças.
Em um sábado semelhante ao dia da morte do velho, Fido ouviu alguns risos e gemidos vindo do quarto de Laurinha. Com seu semblante de preguiça perpétua, ele caminhou até a porta que estava entreaberta do quarto dela. Adentrou deslizando seus peludos flancos pelas quinas de madeira.
Laurinha transava com um homem. Um homem mais velho do que ela. Maxiliano o reconheceu, tratava-se de Anderson Peregrino. Ele gozou e rolou para o lado na cama.
-Puxa, ainda não consigo acreditar na sorte que tivemos, tudo conspirou em nosso favor. -Disse ele.
Laurinha o olhou sem dizer nada.
-Primeiro seu pai, depois seus irmãos.
-É, poupou o meu trabalho que eu tive com meu pai.
Os músculos do gato estavam estagnados, Maxiliano tentava se mexer, mas sequer saía do lugar.
-O que está fazendo Laurinha? O que está falando? Não me diga...
-O que você fez para apagar o velho?
-Troquei o remédio dele por uma substância a base de Estricina. Deixei um bilhete meloso do tipo: Papai do meu coração, não se esqueça do seu remédio, beijos da sua filha favorita, Laurinha. E foi só esperar a notícia chegar e simular uma tristeza.
Ela começou a reeditar o teatro que fizera no sepultamento do pai.
-Sua frieza me assusta, Laura Gonçalves. – Disse ele sorrindo.
-Isso não me importa, o que importa é que agora somos o casal mais rico do país.
Anderson assentiu.
A paralisia muscular de Maxiliano/Fido havia passado para seus pensamentos. Jamais imaginara que sua querida filha caçula havia tramado a sua própria morte, mais do que isso, um sentimento de culpa (que ele não sentiu por ter matado seus filhos, que apesar de vis, jamais matariam o próprio pai) o aflorou. Quando ele começara a retomar os movimentos, a visão ia ficando turva e o som disforme.
-Não! Como pôde Laurinha? Como pôde?
O gato pulou sobre a cama, porém Maxiliano não estava mais lá. Laurinha o acariciou.