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sábado, 28 de agosto de 2010

O gato Siamês


1
Maxiliano Gonçalves abriu as cortinas de cetim e em seguida as janelas de seu quarto. A agradável brisa da manhã soprou eriçando seus ralos cabelos grisalhos e o sol da aurora deram evidências deveras as suas rugas. O velho debruçou-se sobre o peitoril da janela e contemplou a virgindade daquele sábado imaculado com os pássaros cantantes, o céu de anil com pouquíssimas nuvens e um baço espectro da lua. Sobre a mesinha de uma gaveta, ao lado da cama, um copo d’água junto a um envelope com um comprimido dentro, sob o copo, um bilhete.
Maxiliano sorriu ao ler o bilhete, de seus 3 filhos, a caçula Laura Gonçalves era a mais apegada a ele e a mais querida. Enfiou o comprimido na boca e tomou dois longos goles da água morna fazendo seu pomo-de-adão mover-se para cima e para baixo. O velho havia passado por uma ponte de safena havia 2 meses, o remédio lhe fora recomendado a fim de afinar o seu sangue.
Quarenta minutos mais tarde, o velho sentiu um mal súbito e caiu morto na cozinha de casa.
Maria das Graças, a empregada, o encontrou caído perante a geladeira entreaberta. Estava pálido e com os olhos arregalados lhe dando um aspecto hediondo. Um filete de saliva havia secado no canto de seus lábios formando uma diminuta espuma, suas calças estavam manchadas pela urina, os gelados dedos da morte o tocaram de vez. A empregada berrou em desespero. Seu patrão, Maxiliano Gonçalves, viúvo, 57 anos, falecera.
2
O domingo fora a antítese daquele sábado, o céu era nebuloso, o vento era gélido, os piares dos pássaros deram lugar a um lúgubre granar de um corvo e Maxiliano Gonçalves jazia em um luxuoso caixão repleto de flores. Um véu branco cobria seu rosto que apesar de toda a mortalha impregnada, tinha um aspecto agradável.
Os 2 filhos homens do velho recebiam os pêsames dos amigos. Estavam em seus impecáveis ternos pretos e por trás de seus caros óculos escuros. Laurinha era a imagem da desolação. Segurava as mãos sem vida do pai apertando-as com força.
-Pai, por que o senhor foi morrer? – murmurava ela – Você prometeu que iria estar na minha formatura, lembra que você me disse isso antes da operação? Não é justo, você me prometeu. – As lágrimas rolavam por sua face sem o menor pudor.
Horas após o enterro, os 3 filhos reuniram-se diante de uma mesa de mogno a fim de discutir a divisão dos bens do pai. Simão, Gilberto e Laurinha. Os homens tinham as feições resignadas, de fato, os óculos em seus rostos não escondiam tristeza e sim resignação.
3
- O que aconteceu?- Ele se perguntou.
Acordou sobre uma confortável almofada em cima da poltrona de sua biblioteca.
-Mas que diabos estou fazendo aqui?- Ele conjecturava o hiato que havia em suas memórias. A última imagem que tinha de sua casa era a cozinha, mais precisamente a sua geladeira.
-Lembrei! Eu estava com sede, sim, eu estava com muita sede e de repente... Senti uma tontura e tudo se apagou.
Ele desceu de sua poltrona e estranhou a perspectiva inferior que estava tendo de sua biblioteca.  Caminhou em passos dificultosos ante um espelho redondo localizado ao lado de um velho relógio de pendulo e se assustou com o que viu.
-Meu Deus! Estou no corpo de Fido, o gato de Laurinha, mas que diabos está havendo? Será que isso é um pesadelo?
Ouviu um burburinho vindo do andar de cima e assentiu que eram seus filhos. Dirigiu-se até lá deixando o espelho que refletiu a imagem bonachona e preguiçosa de Fido para trás.
4
Os filhos discutiam quando Fido adentrou no escritório de Maxiliano e sentou-se sem ser percebido num canto qualquer.
-Não quero discutir sobre o dinheiro agora – dizia Gilberto – só o que faço questão no momento, é a cobertura da Barra e o Mercedes conversível.
-Quando você vai crescer Gilberto? – retrucou Simão – Sabe quem temos que analisar com calma todas as ações da empresa e vendê-la a um preço justo.
-Gente, pelo amor de Deus! –bramiu Laurinha em prantos – mal o enterramos, por que temos de falar disso agora?
-Ah vamos Laurinha!- disse Simão – o velho já era pra ter batido as botas há 2 meses, aquela ponte de safena só estendeu o que era pra ter acontecido.
Laurinha ficou pasma e sequer conseguiu dizer algo, soluçava.
Gilberto passou a mão sobre o ombro da irmã dizendo:
-Não fique assim Laurinha, o tempo vai curar isso, vá por mim.
Ela meneou a cabeça e disse em seguida:
-Mas por que vocês querem vender a empresa?  Sabem que ela significava muito para o papai, sabem o quanto ele lutou para deixá-la no topo e ainda mais, sabe o quanto ele odeia aquele senhor Anderson Peregrino.
-Negócios são negócios Laurinha – disse Simão – o doutor Peregrino está disposto a pagar uma boa grana pela firma e creio que nenhum de nós será capaz de administrá-la.
5
Ele assentiu toda a situação.
-Merda, eu morri. Voltei no corpo de Fido.
Maxiliano estava perplexo com a situação. Duplamente perplexo. Dizem que os gatos são um facilitador para a passagem no outro mundo, um mediador entre o mundo dos vivos e dos mortos, mas o velho jamais acreditara nisso. E, o que ele também não queria acreditar, era que seus filhos pouco se importavam com sua morte e estavam dispostos a vender a sua empresa a qualquer custo.
-Bastardos ingratos! Depois que tudo que fiz por eles.
6
Gilberto levantou-se da mesa, tirou os óculos escuros do bolso do paletó e pôs no rosto.
-Já disse, não quero discutir isso. Façam o que quiserem e depois me passem a minha parcela. Só faço questão do Mercedes e da cobertura na Barra.
-Você é muito filho da puta! – gritou Laurinha – vocês dois são. Não passam de dois filhos das putas gananciosos!
-Ah não fode Laurinha – replicou Gilberto – foda-se aquele velho, e o que o Simão disse é verdade, ele durou demais. Como dizem, já foi tarde!
Gilberto ia se dirigindo para a porta do escritório e Fido avançou sobre suas pernas. Ele chutou o gato e o bichano rolou sobre o tapete persa.
-Maldito saco de pulgas!
Simão olhou severamente para a irmã antes de também se levantar da mesa. As mãos delas cobriam o rosto molestado pela tristeza. Ele suspirou fundo e disse:
-Você precisa entender a vida, Laurinha, a dele se foi e a nossa restou, pense nisso.
Laurinha ficou solitária e desolada no escritório. Caíra novamente em prantos e debruçou-se sobre a mesa. Fido caminhou para perto e pulou em seu colo. A jovem acariciou seu animal de estimação.
-Oh, minha doce Laurinha, você sempre foi meu tesouro.
7
Gilberto estacionou o Mercedes na garagem de seu falecido pai. Falava ao celular e entrou na residência e por lá permaneceu por uns 15 minutos antes de voltar ao veículo.
-Ora Joana – dizia ele ao celular – eu já lhe falei, os inquilinos do meu pai vão deixar a cobertura mês que vem e a casa será nossa... O que? ... Claro que daremos uma festa, já andei conversando com uns amigos a respeito disso, e digo a você que vai ser o bicho.
Gilberto ainda ao celular, ligou o carro, deu ré e saiu pelas ruas do Rio de Janeiro. O vento soprava contra ele movimentando seus cabelos que iam à altura dos ombros. Os óculos escuros estavam em seu rosto e lhe davam um aspecto bem burguês.
-Ainda não sei sobre a grana da empresa, Simão que está tratando isso e que saber, nem quero me meter nisso... E você acha que vou deixar ele me passar à perna? Faça-me o favor, Joana! Antes de ele pensar em me foder, eu o fodo duas vezes... Bem vou desligar o celular antes que eu seja multado.
Gilberto ligou o rádio do carro e uma música do Ac/dc tocava na rádio. Ele cantarolou acompanhando o refrão da música.
-I’m on the highway to hell!
Fido esgueirou-se pelo banco de trás do carro que um dia fora seu e postou-se no banco do carona sem que Gilberto o notasse. Ele batia com as mãos no volante acompanhando o ritmo da música e o gato o observava com olhos vítreos. Fido desceu do banco e foi-se na direção do freio e acelerador. Passou por baixo de sua perna direita e postou-se entre ela e a esquerda. As garras saltaram de suas patas e ele cravou-as no saco do motorista. Gilberto gritou de dor e num gesto de auto-reflexo, moveu bruscamente o volante levando o carro para a contramão.
Um ônibus que passava a alta velocidade não conseguiu frear o veículo e a colisão fora forte. Gilberto morrera na hora.
8
Os programas sensacionalistas comparavam a tragédia da família Gonçalves com a famosa família Kennedy. Dois dias após o enterro de Gilberto, Simão e Laurinha com Fido no colo tentavam decidir o que fazer com a herança que teriam de dividir.
-Bem, Laurinha, sei que estamos passando por atribulações, mas nesse momento temos que ser fortes.
Não obstante, o gato nos braços dela o incomodava.
-Mas o que diabos esse gato fazia no carro dele? – Perguntou Simão.
-Eu não sei - respondeu Laurinha com o olhar ausente – porém os bombeiros disseram que foi um milagre ele ter escapado do acidente.
-Bem, dizem que gatos têm 7 vidas, talvez só lhe reste 6 agora.
Um sorriso amarelo brotou no rosto de Simão e ele ameaçou uma carícia em Fido, contudo o gato mostrou suas presas demonstrando que não queria ser tocado por aquele sujeito. Simão recolheu a mão, pegou uns papeis sobre a mesa e colocou em sua pasta.
-Bem, devo fechar o negócio com o Dr. Peregrino ainda nessa semana, irei te manter a par de tudo o que está acontecendo. Deseje-me sorte.
O olhar ausente de Laurinha permaneceu. Fido o observou saindo com olhar iracundo.
9
Simão estava animado com a partilha em menos pessoas, mais do que isso, sabia que Laurinha era tola, fácil de ser manipulada e fácil de ser enganada.
-Está tudo correndo bem. Laurinha certamente nem saberá o valor que venderei a empresa, fato que a morte de Gilberto me lucrou uns 7 milhões por baixo.
Tomava um revigorante banho enquanto sua casa era invadida por um ser não desejável. Um gato para ser mais exato.
Fido vasculhou o local como um soldado que estuda o perímetro antes de tomar qualquer ação. Olhou para a escada de corrimão que dava acesso ao segundo andar e ficou estático, pensativo. Naquele momento, Simão começou a cantarolar no banheiro e aquilo pareceu que o estimulou a agir mais depressa. Fido subiu a escada. Logo no início do segundo andar, havia um quarto de hóspedes com um ventilador próximo a porta. O gato estudou o fio do ventilador e uma iluminação aflorou seus pensamentos.
Com a boca, ele levou a extremidade do macho da tomada até o corrimão e deu 4 voltas pelas pequenas balizas que davam suporte. Uma boa armadilha se levar em consideração que fora tramada por um gato siamês. Todavia, era preciso atraí-lo. Simão saiu do banheiro envolto por um roupão de banho azul e ligou o moderno rádio de sua sala de estar. Música clássica explodia no ambiente. O gato visualizou sobre um pedestal naquele corredor, um jarro de aspecto caro, mas que na verdade não era muito valioso. Correu até lá e derrubou o jarro fazendo-o espatifar-se sobre o chão.
Gilberto preparava o jantar quando estranhou o ruído. Abaixou o volume do rádio. Empunhou a faca que segurava e subiu a escada cautelosamente.
-Quem está ai?
Fido, encolheu-se sob a base do ventilador do quarto de hóspedes, o fio estava em sua boca.
-Quem está ai? – Insistiu.
Subia os degraus cautelosamente, um a um. Seus poros exalavam nuvens de tensão. Chegara ao andar de cima, passara pelo quarto de hóspedes onde jogara um olhar de soslaio. Ninguém estava ali. O cabo da faca em sua mão recebia uma considerável pressão. O gato o observava com seu olhar frio e seu aspecto bonachão. Simão fitou o jarro espatifado pelo corredor. Caminhou com menos cautela até o pedestal de gesso.  Quem teria derrubado? Ele pensou. Contudo, ao fundo do corredor uma janela encontrava-se aberta com suas cortinas sacolejando devido à brisa noturna. Sorriu e o sorriso não demorou a se tornar uma estridente gargalhada. A faca já não mais estava firme. Assentira que fora o vento que derrubara o tal jarro.
-Toda essa história está deixando minha mente em frangalhos- disse ele- depois de fechar esse negócio certamente passarei um mês de férias pela Europa, não, Canadá.
Ele girou sobre os calcanhares não dando importância para os cacos do jarro sobre o tapete no corredor. Iria descer, aumentar o potente som de sua sala de estar e voltaria a preparar o jantar em sua luxuosa cozinha.
Fido aguardava o momento certo. Simão caminhava batendo com a lateral do gume da faca na palma da mão e quando ia deixando para trás a porta do quarto de hóspedes, o gato puxou o fio para trás esticando-o. Simão tropeçou e rolou a escada fazendo um ruído oco. Rolou os 15 degraus e uns metros no andar de baixo caindo de barriga para cima. De alguma maneira, a faca entrara em seu ventre. O seu roupão de banho não demorou a ter uma tonalidade escarlate na altura do abdômen. Apalpou o roupão molhado e levou os dedos manchados de sangue ante os olhos. Ao vê-los rubros, ele tomou ciência que estava em grandes apuros. Ouviu o ronronar vindo do alto da escada, ergueu a cabeça para fitar o autor daquele ruído, aquela ação parecia que lhe roubava suas últimas forças, os olhos que estavam fendidos se arregalaram num súbito e último horror. A última imagem que tivera em vida, fora o gato siamês de sua irmã caçula o encarando com seus olhos vítreos e desafiador. O mesmo gato que estava no carro de seu irmão do meio. Suas últimas palavras foram:
-Você, foi você...
Morrera com o dedo indicador apontado numa imperativa acusação para o alto da escada.
10
Duas semanas se passaram e a família Gonçalves (Laura Gonçalves) fora assunto em todos os veículos de imprensa, desde os tabloides de poucos centavos ao conceituado Jornal Nacional. Laurinha se tornou uma espécie de celebridade mórbida. Uma sobrevivente de mortes e acontecimentos bizarros em sua família.
-Oh minha doce Laurinha- Murmurava Maxiliano na confortável poltrona de sua biblioteca.
Ela estivera ausente por 12 dias, fugia do cruel assédio da imprensa e fugia do cheiro da morte que rondava o seu sangue. Fido ficara em casa sob os cuidados de Maria das Graças.
Em um sábado semelhante ao dia da morte do velho, Fido ouviu alguns risos e gemidos vindo do quarto de Laurinha. Com seu semblante de preguiça perpétua, ele caminhou até a porta que estava entreaberta do quarto dela. Adentrou deslizando seus peludos flancos pelas quinas de madeira.
Laurinha transava com um homem. Um homem mais velho do que ela. Maxiliano o reconheceu, tratava-se de Anderson Peregrino. Ele gozou e rolou para o lado na cama.
-Puxa, ainda não consigo acreditar na sorte que tivemos, tudo conspirou em nosso favor. -Disse ele.
Laurinha o olhou sem dizer nada.
-Primeiro seu pai, depois seus irmãos.
-É, poupou o meu trabalho que eu tive com meu pai.
Os músculos do gato estavam estagnados, Maxiliano tentava se mexer, mas sequer saía do lugar.
-O que está fazendo Laurinha? O que está falando? Não me diga...
-O que você fez para apagar o velho?
-Troquei o remédio dele por uma substância a base de Estricina. Deixei um bilhete meloso do tipo: Papai do meu coração, não se esqueça do seu remédio, beijos da sua filha favorita, Laurinha. E foi só esperar a notícia chegar e simular uma tristeza.
Ela começou a reeditar o teatro que fizera no sepultamento do pai.
-Sua frieza me assusta, Laura Gonçalves. – Disse ele sorrindo.
-Isso não me importa, o que importa é que agora somos o casal mais rico do país.
Anderson assentiu.
A paralisia muscular de Maxiliano/Fido havia passado para seus pensamentos. Jamais imaginara que sua querida filha caçula havia tramado a sua própria morte, mais do que isso, um sentimento de culpa (que ele não sentiu por ter matado seus filhos, que apesar de vis, jamais matariam o próprio pai) o aflorou. Quando ele começara a retomar os movimentos, a visão ia ficando turva e o som disforme.
-Não! Como pôde Laurinha? Como pôde?
O gato pulou sobre a cama, porém Maxiliano não estava mais lá. Laurinha o acariciou.


quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Sobre os sonhos: compressão e alargamento.

Nunca fui de sonhar nas minhas noites de sono. Ao dia, é o inverso; sonho acordado. Mas, nesses últimos meses tenho tido o prazer difuso dos sonhos; é como se fosse um garoto imberbe, um aprendiz, ou como se houvesse perdido o tempo correto para aprender o alfabeto ou a leitura e a escrita e estivesse agora numa classe de aceleração; se todos da minha idade, suponho, têm o contato corriqueiro com o mundo dos nossos desejos desvelados – e, se é assim, muitos até enjoaram de sonhar, ou até não há mais por que perder minutos do dia seguinte tentando dar solenidade e objetividade ao que acontece sempre, dia após dia – eu vivo algo que pode se comparar ao sabor do primeiro beijo, ao calor das amizades da adolescência.

Depois de um bom tempo depois de sua morte, sonhei com minha avó Alice. Ela conversava comigo do mesmo jeito que sempre fez: sua devoção aos detalhes mais pormenorizados do seu passado, do seu querido Tio Quincas – que deve ter morrido uns trinta anos antes do meu nascimento, mas eu o tinha como um tio avô que só deveria morar muito longe, mas jamais morto, de tanto que minha avó o idolatrava e lhe queria bem -, do seu segundo filho que morreu ainda bebê, faziam-na revirar os olhos para o alto, como quem devia apontar as memórias para o revés do chão e das coisas do presente. No auge da narrativa, fechava os olhos; nessas horas sempre sorria, mas sem parar de falar – quem a conheceu sabe que ela não parava nunca.

Foi um dos meus primeiros sonhos depois de muitos anos, quando, lembro-me bem, sonhava sempre em estar voando baixo, lentamente, sem sentir o vento, escutando todas as conversas alheias, aquelas que ansiava desmascarar na realidade de pessoa acordada, e isso era impossível. Não havia muito que apreciar de sonhos como aqueles: era o que eu queria saber da vida das pessoas. Vai ver eu me desiludi tanto com os meus sonhos de urubu mexeriqueiro que deles abdiquei desapercebidamente minha vida.

Esse sonho que tive coma minha avó foi, inequivocamente, um augúrio. Se meus sonhos pretéritos careciam de signos mais complexos e jorravam frivolidade, os de agora, os que anunciam meus trinta anos, são o oposto. Trata-se de uma profusão de sinais sobrepostos e desorganizados, de maneira que, mesmo que sejam tudo menos a repetição idiota dos tempos que plainava sobre as amendoeiras e mangueiras do meu bairro, ainda assim, é possível notar um padrão.

Depois que eu e meus pais nos mudamos de Santíssimo, minha avó foi morar com minha Tia Mara; foi justo aí, nesse lugar, que sonhei com ela papeando comigo. Nunca fiquei tão distante dela quanto nos últimos anos de sua vida, mesmo que nesse ínterim, somente nos seus derradeiros momentos a velhice a tenha ceifado a habilidade de tagarelar. No meu sonho, eu a escutava contar da sua professora primária em Portugal, mas não dos lugares onde eu ouvi a mesma estória por diversas vezes – seu quarto ou o carro do meu pai – e sim do seu novo aposento, onde viveu seus últimos dias. Ali, minha avó foi incapaz de conversar comigo daqueles melodramas, fosse pelo tempo curto das visitas que fazia – sem contar que ela parecia mesmo interessada em conversar com a minha esposa, que sempre estava comigo -, fosse pela sua saúde debilitada. Eu sonhei que minha avó falava de um lugar onde ela pouco pôde fazê-lo; e nesse ambiente etéreo, o sonho era mesmo muito crível: tudo estava disposto como sempre esteve, naquela casa em Bangu. As paredes e o teto, seus santos, as fotos dos netos e bisnetos, a copa, a cozinha, as garrafas d’água e o banheiro; todos em tamanho e em cores reais.

Mais uns dias e sonhei que estava sentado na sala da minha primeira casa, no Bairro Jabour. Eu empurrava um carrinho de brinquedo; fazia curvas em alta velocidade, cantava os pneus. Ao levantar a cabeça, deparei-me com um cômodo gigantesco: o teto ficava a uma dezena de metros da minha cabeça, as paredes eram muros de um castelo de realeza inconteste, os quadros dispunham-se distantes uns dos outros, a escada de madeira escura estava a léguas, a janela que dava para a rua escondia-se atrás de uma cortina que mais parecia o pano desfraldado a esconder o picadeiro antes de assomarem os palhaços e os mágicos, a porta parecia a da Igreja que ficava a vinte passos do portão de casa e minha mãe, minha madrinha e meus primos conversavam longínquos como os transeuntes de qualquer centro comercial num dia de Domingo.

Sufocado pela abundância de espaço, eu gritei pela minha mãe. Tão logo me escutou, desamarrou seu avental de suas costas e veio me acalentar. Com três passos de girafa, me alcançou e me deu colo; ao me levantar com seus braços de Golias, parei de chorar, e o chão ficou distante e inatingível; meu medo foi arrefecendo; meus primos vieram brincar comigo e minha madrinha me trouxe uma colher de iogurte. Acordei.

Com a minha avó, estava num cômodo verossímil; com minha mãe, num exagero caudaloso de espaço e distância. Em todos os meus sonhos recentes, meu passado é de dimensões pelágicas, e eu estou sempre metido na inviabilidade quilométrica da minha semi- consciência.

Quando sonho acordado, perco, dessa feita, a noção exata dos ambientes onde ainda transcorrem ininterruptamente as minhas memórias. Elas são recontadas diariamente; como qualquer estória é reeditada a cada vez que alguém a conta, assim também o são as que habitam nosso cérebro. Entretanto, fora da subjetividade feérica, os contadores subvertem as personagens aos fluxos intermitentes da memória, ao sabor dos interlocutores – o jargão “eu aumento, mas não invento” cai bem nessas horas -; já nos sonhos, o surreal amplia os panos de fundo e tempera as paisagens, mantendo intactos os interlocutores, os narradores e suas falas. Cada vez, pois, que relembro das situações mais recônditas da minha infância, excepcionalmente das que contam da minha primeira casa, me vejo numa terra de gigantes, de prados insuperáveis e de quartos inexcedíveis. Quando minha mãe some, hoje, sonhando com o ontem, dos meus olhos para ir ao trabalho enquanto choro na janela da sala, é como se ela tivesse feito uma peregrinação, ao percorrer aquela rua enorme feito uma via expressa e interminável, onde segue até depois do horizonte; e de lá volta, para subir aquelas escadas de terraplanagem para me abraçar. E não são somente as coisas de criancinha que tomaram a poção mágica que as tornaram gigantes. A cada dia que me lembro do meu segundo grau e daquelas risadas que pareciam que nunca chegariam ao fim, me vejo numa sala absurdamente grande, disfuncional e sem propósito; os professores num tablado gigante e nós espalhados, sentados nas carteiras, como as árvores do cerrado.

Voltei a sonhar e, creio, foi sintomático. Pouco antes do meu primeiro sonho depois de anos – passeava numa praia infinita e retilínea – acordei de madrugada em minha cama e senti sufocado pelo teto do meu quarto. Tive a límpida sensação de poder tocar a lâmpada apagada se assim o quisesse – bastava esticar os braços. Olhei para os lados e senti tudo muito perto, como se tivesse sido trancado num claustro onde a porta diminuíra a ponto de não permitir a passagem de um adulto.

E mesmo sabendo que toda sapiência contém em si a presunção inerente de quem sempre será um inepto frente ao desconhecido que jamais será desvirginado, eu sou, ainda, um bom aluno. De tudo preciso saber, nem que seja para me garantir o acesso às boas conversas ou para desbaratar os que são tão presunçosos quanto eu – ou quanto qualquer um, em última análise. Ampliar o conhecimento traz sempre uma sensação de locupletamento e uma exígua a esta que, ainda que não assuma a forma de discurso, pois é meio estranho dizer para os outros o tempo todo que “só sei que nada sei”, é tão latente quanto o sorver das coisas novas. Destarte, quero dizer, nunca estamos receptíveis a tudo que possamos entender e aprender. Você pode ter uma memória de elefante e uma capacidade de raciocínio pródiga, mas jamais poderá abrir mão daquela fantasia de sabichão que veste sempre que alguém lhe ensina algo interessante, lógico, se for esse o seu caso.

Todavia, se não somos capazes de desencalacrar as sofismas no primeiro contato com as mesmas, é fácil notar que é ligeiro o tempo que levamos para juntar os caquinhos e produzir um conhecimento de verdade. Tão logo estamos novamente fingindo que podemos entender tudo aquilo que assoma no televisor, no history channel, e já estamos de posse do entendimento mais encorpado daquilo que fingimos entender completamente dias antes. E é justamente aí nesse ponto que a vida nos comprime, como as paredes e o teto do meu quarto comprimiram-me, no prólogo dos meus sonhos.

Não importa que agora eu saiba de astronomia, das ciências sociais, que eu leia Dostoievski e o seu Razumikhin, que é capaz de nos fazer entortar a ética dos homens e bolinar a moral – para o bem da humanidade, nunca é demais grifar isso. As esplanadas continentais abertas nessas múltiplas facetas da vida e do entendimento da própria são tudo menos o axioma do homem que se diz livre porque pensa. O mundo parece me esmagar a cada dia que passa. Depois que descobri que o universo teve um começo e que o firmamento é um controvertido sem-fim com um final, voltei aos tempos de menininho quando pulava feito um coelho para pegar alguma estrela da cortina negra da noite. Como retroceder assim é impossível, todo o universo agora está caindo na minha cabeça, diminuindo, a ponto de sentir que não seria loucura poder acariciá-lo com a palma das mãos.

Difícil dizer onde isso começou e mais leviano ainda afirmar que a desconstrução da didática astronômica serviu de estopim para o que vivo. Dessa e de qualquer outra relação de causa e efeito, creio, não poderei lançar mão. Mas o fato é que tudo está diminuindo, desde aquilo que jamais qualquer ser humano poderá sequer imaginar até a cidade, o mar e o corredor do meu apartamento.

Quanto mais caminho para a metade da minha vida, mais o passado se amplia e mais o presente recua em todas as suas extremidades. Se parasse novamente de sonhar e voltasse a ocupar a ribalta onírica somente daqui a quinze anos, que tamanho teria meu pai? E minha mãe, nas suas idas ao trabalho? E a minha primeira bola, como a chutaria? Em contrapartida, qual seria o tamanho das coisas tangíveis? Será que até o ar me imputaria seu empuxo?

A minha avó encolheu tanto em sua vida! Imagino que ela deveria ter uns vinte centímetros a mais do que tinha ao falecer. Claro que sei que o corpo desgasta-se, que a máquina cansa e que não há carne, pele e órgãos que não pendam para o chão depois de tantos anos sob o jugo da massa de um planeta inteiro. O que me deixa digressivo é a casamata invisível onde nos metemos cuja escolha de não permanecer não nos foi conferida.

Vó Alice jamais teve a oportunidade de saber da dialética, tampouco do fim das ideologias; nunca quis meter o bedelho nessas searas e em tantas outras. Ainda que, ao contrário, ela de muito soubesse, saberia só ela das coisas que aprendera, encerrando em si mesma um cabedal de múltiplas conclusões e elucubrações; ou seja: cada um sentirá o céu arriar, o mundo compactar-se em escalas distintas, à sua maneira. E a minha sobrinha Clarice? Como será que se apoderará de um conhecimento disponível muito mais avolumado que o da minha geração? Com que idade ela vai ver o mundo começar a diminuir a sua volta?

Há um momento único na vida da pessoa em que há simetria entre o que se foi e o que se é. Justamente quando temos menos habilidades para compreender de forma mais plausível a transitoriedade e a complexidade das coisas, bem aí, somos proporcionais: o passado é vívido – todas as pessoas que depois desbotam do fundo das gavetas da memória, os rostos, a professora do primeiro ano na escola, os amigos, os conhecidos, os primeiros inimigos, os primos de terceiro grau, o primeiro beijo, o segundo e surrupiado beijo, as peladas, as festas de aniversário, as broncas dos pais – e o presente não é acometido pelo nanismo que nos espreme, a partir dali, contra o ar e as paredes. E ninguém tem a obrigação aos dezenove, dezoito anos de prever tudo isso que escrevi até aqui.

Mais interessante e deveras agastante é tomar nota que, mesmo depois de mortos, seguimos o destino de encolher cada vez mais. O que são os mortos senão aquilo que está no ínfimo interstício que há entre as pedras e os grãos de areia? Depois que o coração para de bater e o cérebro desliga, já não são mais as paredes ou o ar ou a abóboda celeste que diminuem de escala, e sim a matéria orgânica em que nos transformamos de uma hora para outra. Com estupenda celeridade, a morte completa brutalmente aquilo que aumenta de intensidade com a sutileza dos grandes artesãos, quando ainda somos seres vivos.

Esse lado da moeda já está bem claro para mim: o futuro é compressão. Mas essa é a metade da missa, apenas. Quando estava para morrer, minha avó completou seu último aniversário. Meus tios já haviam me avisado que a velhinha que lutara contra a falência do cérebro, que a despeito das péssimas condições do corpo avassalado pelo tempo seguia com as faculdades mentais inoxidáveis, havia perdido a lucidez. De fato, estava absorta, irreconhecível; talvez porque estivesse preocupada em reconhecer as amplidões contínuas as quais haviam acabado de se apresentar a ela. Eu teimo em acreditar que a senilidade é nada mais que isso: ela estava finalmente numa terra de Tios Quincas gigantes e entes queridos inextricáveis. Essa é a passagem cujo toda pessoa vai atravessar. Ao contrário do túnel escuro que as pessoas morrem de pavor só de pensar que um dia ele possa mesmo existir, a passagem vai se abrindo, desde o momento que o nosso passado vai virando memórias, e dessas memórias vão se empilhando as lembranças que sobraram, quase aleatoriamente, borrando os quadros imaginários que pensamos infantilmente termos pintado todos com uma tinta anti- bolor e olvido. É como pegar os restos do frango assado para fazer um empadão e depois pegar os restos do empadão de frango para botar num sanduíche: isso é memória. Minha avó, que um dia foi compressão e amplidão ao mesmo tempo, num corpo só, hoje é uma parte microscópica do planeta, entre grãos, e uma outra parte, imaterial, solta no seu solitário e ignoto cosmos, do tamanho que só o infinito pode ser.

O ceticismo do homem culto – ou, em última instância, do homem velho, que será sempre mais astuto e experiente na velhice do que foi na juventude - é resultado direto do encolhimento do mundo. Saber que, mesmo que dure muito tempo, vamos achar as respostas para as perguntas que fazemos é irrefreavelmente entediante. Ainda bem que existe o outro lado das coisas. Ao tentar controlar tudo o que está a minha volta, percebi que o futuro é mais incerto do que o julgamento divino derradeiro. Não saber ao certo com quem nos encontraremos e de que forma estaremos e estarão todos e tudo ao redor é o mistério que nem os ecos do Big Bang – cada vez menos “big” – nem as pirâmides do Egito jamais poderão exceder.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Tempero

Paulinho saiu do trabalho no mesmo horário de sempre, ordinário com ele só. A pasta preta, a camisa amarela e os passos embotados da pressa cotidiana. Queria voltar para casa. Seria possível, se corresse mais um pouquinho, pegar o segundo tempo do jogo. Barcelona em campo: passes, cadência, arte... Paulinho imantado pela bola partiu desenfreado até o ponto de ônibus.

A fome bateu. Lembrou que a sua Belinha faria um peixinho frito, daquela leva da última pescaria com os amigos. Paulinho, afortunado, levara de tudo um pouco do mar. Deixou com inveja os companheiros de anzóis e boias. Quando sentiu o peso do isopor nos seus ombros, pensou num jantar. Estavam ele e Belinha à luz dos candelabros, fartando-se de lulas e robalos, cruzando olhares lânguidos e perscrutadores. Anunciava-se uma madrugada de desejos conclusos.

Mais ordinário que Paulinho era o dia: 21 de Outubro. Nem naquele mês, nem no próximo, nem no anterior existia premissa para um presente. Regalo datado, esperado, sazonal feito uma colheita, não cabia. Mas a impertinência odorífica do mar agarrou-se aos pêlos do nariz do agraciado pescador. Viu Belinha em casa, de avental, preparando a sua janta, de cabelos amarrados, à medida que se aproximava da peixaria.

Passou pelos peixeiros e as senhoras que reviravam os olhos das garoupas e periciavam os camarões. Olhando-as fixamente, seguindo a dança das facas amoladas, trombou com uma mulher. Perdeu o prumo. Cambaleou, manteve-se de pé; trapezista, deu de cara com uma lojinha de bijuterias. Na estante, um anel. Um círculo cor de cobre, trançado de Rapunzel. Não era data de ninguém; não tinha dono o dia: nem aniversário, nem exéquia; nem para lembrar, nem para esquecer. Jamais tinha dado à Belinha presente que não tivesse conexão com aniversário, Natal ou dia dos namorados. Sacou do bolso as cédulas; comprou o anel. Pô-lo no bolso da calça.

Ao chegar ao lar, o televisor estava transmitindo o jogo. Assim era Belinha. Lembrara de Paulinho. Quando ouviu sua voz, estava de costas para o marido, cabelos enfiados na mantilha, preparando a corvina. Paulinho a envolveu. Roçando suas ancas e beijando seu pescoço, ao abrir seu punho cerrado mostrou-lhe o presente. Belinha arrancou o pano da cabeça; seus cabelos libertos e o anel: Paulinho enlouqueceu. Ela o empurrou sorrindo, disse para que esperasse um pouco. Queria fazer do peixe mais um dos seus encantos, sem perceber que ela o cozinhava, mas o tempero, a essa altura, era dele.