Nunca fui de sonhar nas minhas noites de sono. Ao dia, é o inverso; sonho acordado. Mas, nesses últimos meses tenho tido o prazer difuso dos sonhos; é como se fosse um garoto imberbe, um aprendiz, ou como se houvesse perdido o tempo correto para aprender o alfabeto ou a leitura e a escrita e estivesse agora numa classe de aceleração; se todos da minha idade, suponho, têm o contato corriqueiro com o mundo dos nossos desejos desvelados – e, se é assim, muitos até enjoaram de sonhar, ou até não há mais por que perder minutos do dia seguinte tentando dar solenidade e objetividade ao que acontece sempre, dia após dia – eu vivo algo que pode se comparar ao sabor do primeiro beijo, ao calor das amizades da adolescência.
Depois de um bom tempo depois de sua morte, sonhei com minha avó Alice. Ela conversava comigo do mesmo jeito que sempre fez: sua devoção aos detalhes mais pormenorizados do seu passado, do seu querido Tio Quincas – que deve ter morrido uns trinta anos antes do meu nascimento, mas eu o tinha como um tio avô que só deveria morar muito longe, mas jamais morto, de tanto que minha avó o idolatrava e lhe queria bem -, do seu segundo filho que morreu ainda bebê, faziam-na revirar os olhos para o alto, como quem devia apontar as memórias para o revés do chão e das coisas do presente. No auge da narrativa, fechava os olhos; nessas horas sempre sorria, mas sem parar de falar – quem a conheceu sabe que ela não parava nunca.
Foi um dos meus primeiros sonhos depois de muitos anos, quando, lembro-me bem, sonhava sempre em estar voando baixo, lentamente, sem sentir o vento, escutando todas as conversas alheias, aquelas que ansiava desmascarar na realidade de pessoa acordada, e isso era impossível. Não havia muito que apreciar de sonhos como aqueles: era o que eu queria saber da vida das pessoas. Vai ver eu me desiludi tanto com os meus sonhos de urubu mexeriqueiro que deles abdiquei desapercebidamente minha vida.
Esse sonho que tive coma minha avó foi, inequivocamente, um augúrio. Se meus sonhos pretéritos careciam de signos mais complexos e jorravam frivolidade, os de agora, os que anunciam meus trinta anos, são o oposto. Trata-se de uma profusão de sinais sobrepostos e desorganizados, de maneira que, mesmo que sejam tudo menos a repetição idiota dos tempos que plainava sobre as amendoeiras e mangueiras do meu bairro, ainda assim, é possível notar um padrão.
Depois que eu e meus pais nos mudamos de Santíssimo, minha avó foi morar com minha Tia Mara; foi justo aí, nesse lugar, que sonhei com ela papeando comigo. Nunca fiquei tão distante dela quanto nos últimos anos de sua vida, mesmo que nesse ínterim, somente nos seus derradeiros momentos a velhice a tenha ceifado a habilidade de tagarelar. No meu sonho, eu a escutava contar da sua professora primária em Portugal, mas não dos lugares onde eu ouvi a mesma estória por diversas vezes – seu quarto ou o carro do meu pai – e sim do seu novo aposento, onde viveu seus últimos dias. Ali, minha avó foi incapaz de conversar comigo daqueles melodramas, fosse pelo tempo curto das visitas que fazia – sem contar que ela parecia mesmo interessada em conversar com a minha esposa, que sempre estava comigo -, fosse pela sua saúde debilitada. Eu sonhei que minha avó falava de um lugar onde ela pouco pôde fazê-lo; e nesse ambiente etéreo, o sonho era mesmo muito crível: tudo estava disposto como sempre esteve, naquela casa em Bangu. As paredes e o teto, seus santos, as fotos dos netos e bisnetos, a copa, a cozinha, as garrafas d’água e o banheiro; todos em tamanho e em cores reais.
Mais uns dias e sonhei que estava sentado na sala da minha primeira casa, no Bairro Jabour. Eu empurrava um carrinho de brinquedo; fazia curvas em alta velocidade, cantava os pneus. Ao levantar a cabeça, deparei-me com um cômodo gigantesco: o teto ficava a uma dezena de metros da minha cabeça, as paredes eram muros de um castelo de realeza inconteste, os quadros dispunham-se distantes uns dos outros, a escada de madeira escura estava a léguas, a janela que dava para a rua escondia-se atrás de uma cortina que mais parecia o pano desfraldado a esconder o picadeiro antes de assomarem os palhaços e os mágicos, a porta parecia a da Igreja que ficava a vinte passos do portão de casa e minha mãe, minha madrinha e meus primos conversavam longínquos como os transeuntes de qualquer centro comercial num dia de Domingo.
Sufocado pela abundância de espaço, eu gritei pela minha mãe. Tão logo me escutou, desamarrou seu avental de suas costas e veio me acalentar. Com três passos de girafa, me alcançou e me deu colo; ao me levantar com seus braços de Golias, parei de chorar, e o chão ficou distante e inatingível; meu medo foi arrefecendo; meus primos vieram brincar comigo e minha madrinha me trouxe uma colher de iogurte. Acordei.
Com a minha avó, estava num cômodo verossímil; com minha mãe, num exagero caudaloso de espaço e distância. Em todos os meus sonhos recentes, meu passado é de dimensões pelágicas, e eu estou sempre metido na inviabilidade quilométrica da minha semi- consciência.
Quando sonho acordado, perco, dessa feita, a noção exata dos ambientes onde ainda transcorrem ininterruptamente as minhas memórias. Elas são recontadas diariamente; como qualquer estória é reeditada a cada vez que alguém a conta, assim também o são as que habitam nosso cérebro. Entretanto, fora da subjetividade feérica, os contadores subvertem as personagens aos fluxos intermitentes da memória, ao sabor dos interlocutores – o jargão “eu aumento, mas não invento” cai bem nessas horas -; já nos sonhos, o surreal amplia os panos de fundo e tempera as paisagens, mantendo intactos os interlocutores, os narradores e suas falas. Cada vez, pois, que relembro das situações mais recônditas da minha infância, excepcionalmente das que contam da minha primeira casa, me vejo numa terra de gigantes, de prados insuperáveis e de quartos inexcedíveis. Quando minha mãe some, hoje, sonhando com o ontem, dos meus olhos para ir ao trabalho enquanto choro na janela da sala, é como se ela tivesse feito uma peregrinação, ao percorrer aquela rua enorme feito uma via expressa e interminável, onde segue até depois do horizonte; e de lá volta, para subir aquelas escadas de terraplanagem para me abraçar. E não são somente as coisas de criancinha que tomaram a poção mágica que as tornaram gigantes. A cada dia que me lembro do meu segundo grau e daquelas risadas que pareciam que nunca chegariam ao fim, me vejo numa sala absurdamente grande, disfuncional e sem propósito; os professores num tablado gigante e nós espalhados, sentados nas carteiras, como as árvores do cerrado.
Voltei a sonhar e, creio, foi sintomático. Pouco antes do meu primeiro sonho depois de anos – passeava numa praia infinita e retilínea – acordei de madrugada em minha cama e senti sufocado pelo teto do meu quarto. Tive a límpida sensação de poder tocar a lâmpada apagada se assim o quisesse – bastava esticar os braços. Olhei para os lados e senti tudo muito perto, como se tivesse sido trancado num claustro onde a porta diminuíra a ponto de não permitir a passagem de um adulto.
E mesmo sabendo que toda sapiência contém em si a presunção inerente de quem sempre será um inepto frente ao desconhecido que jamais será desvirginado, eu sou, ainda, um bom aluno. De tudo preciso saber, nem que seja para me garantir o acesso às boas conversas ou para desbaratar os que são tão presunçosos quanto eu – ou quanto qualquer um, em última análise. Ampliar o conhecimento traz sempre uma sensação de locupletamento e uma exígua a esta que, ainda que não assuma a forma de discurso, pois é meio estranho dizer para os outros o tempo todo que “só sei que nada sei”, é tão latente quanto o sorver das coisas novas. Destarte, quero dizer, nunca estamos receptíveis a tudo que possamos entender e aprender. Você pode ter uma memória de elefante e uma capacidade de raciocínio pródiga, mas jamais poderá abrir mão daquela fantasia de sabichão que veste sempre que alguém lhe ensina algo interessante, lógico, se for esse o seu caso.
Todavia, se não somos capazes de desencalacrar as sofismas no primeiro contato com as mesmas, é fácil notar que é ligeiro o tempo que levamos para juntar os caquinhos e produzir um conhecimento de verdade. Tão logo estamos novamente fingindo que podemos entender tudo aquilo que assoma no televisor, no history channel, e já estamos de posse do entendimento mais encorpado daquilo que fingimos entender completamente dias antes. E é justamente aí nesse ponto que a vida nos comprime, como as paredes e o teto do meu quarto comprimiram-me, no prólogo dos meus sonhos.
Não importa que agora eu saiba de astronomia, das ciências sociais, que eu leia Dostoievski e o seu Razumikhin, que é capaz de nos fazer entortar a ética dos homens e bolinar a moral – para o bem da humanidade, nunca é demais grifar isso. As esplanadas continentais abertas nessas múltiplas facetas da vida e do entendimento da própria são tudo menos o axioma do homem que se diz livre porque pensa. O mundo parece me esmagar a cada dia que passa. Depois que descobri que o universo teve um começo e que o firmamento é um controvertido sem-fim com um final, voltei aos tempos de menininho quando pulava feito um coelho para pegar alguma estrela da cortina negra da noite. Como retroceder assim é impossível, todo o universo agora está caindo na minha cabeça, diminuindo, a ponto de sentir que não seria loucura poder acariciá-lo com a palma das mãos.
Difícil dizer onde isso começou e mais leviano ainda afirmar que a desconstrução da didática astronômica serviu de estopim para o que vivo. Dessa e de qualquer outra relação de causa e efeito, creio, não poderei lançar mão. Mas o fato é que tudo está diminuindo, desde aquilo que jamais qualquer ser humano poderá sequer imaginar até a cidade, o mar e o corredor do meu apartamento.
Quanto mais caminho para a metade da minha vida, mais o passado se amplia e mais o presente recua em todas as suas extremidades. Se parasse novamente de sonhar e voltasse a ocupar a ribalta onírica somente daqui a quinze anos, que tamanho teria meu pai? E minha mãe, nas suas idas ao trabalho? E a minha primeira bola, como a chutaria? Em contrapartida, qual seria o tamanho das coisas tangíveis? Será que até o ar me imputaria seu empuxo?
A minha avó encolheu tanto em sua vida! Imagino que ela deveria ter uns vinte centímetros a mais do que tinha ao falecer. Claro que sei que o corpo desgasta-se, que a máquina cansa e que não há carne, pele e órgãos que não pendam para o chão depois de tantos anos sob o jugo da massa de um planeta inteiro. O que me deixa digressivo é a casamata invisível onde nos metemos cuja escolha de não permanecer não nos foi conferida.
Vó Alice jamais teve a oportunidade de saber da dialética, tampouco do fim das ideologias; nunca quis meter o bedelho nessas searas e em tantas outras. Ainda que, ao contrário, ela de muito soubesse, saberia só ela das coisas que aprendera, encerrando em si mesma um cabedal de múltiplas conclusões e elucubrações; ou seja: cada um sentirá o céu arriar, o mundo compactar-se em escalas distintas, à sua maneira. E a minha sobrinha Clarice? Como será que se apoderará de um conhecimento disponível muito mais avolumado que o da minha geração? Com que idade ela vai ver o mundo começar a diminuir a sua volta?
Há um momento único na vida da pessoa em que há simetria entre o que se foi e o que se é. Justamente quando temos menos habilidades para compreender de forma mais plausível a transitoriedade e a complexidade das coisas, bem aí, somos proporcionais: o passado é vívido – todas as pessoas que depois desbotam do fundo das gavetas da memória, os rostos, a professora do primeiro ano na escola, os amigos, os conhecidos, os primeiros inimigos, os primos de terceiro grau, o primeiro beijo, o segundo e surrupiado beijo, as peladas, as festas de aniversário, as broncas dos pais – e o presente não é acometido pelo nanismo que nos espreme, a partir dali, contra o ar e as paredes. E ninguém tem a obrigação aos dezenove, dezoito anos de prever tudo isso que escrevi até aqui.
Mais interessante e deveras agastante é tomar nota que, mesmo depois de mortos, seguimos o destino de encolher cada vez mais. O que são os mortos senão aquilo que está no ínfimo interstício que há entre as pedras e os grãos de areia? Depois que o coração para de bater e o cérebro desliga, já não são mais as paredes ou o ar ou a abóboda celeste que diminuem de escala, e sim a matéria orgânica em que nos transformamos de uma hora para outra. Com estupenda celeridade, a morte completa brutalmente aquilo que aumenta de intensidade com a sutileza dos grandes artesãos, quando ainda somos seres vivos.
Esse lado da moeda já está bem claro para mim: o futuro é compressão. Mas essa é a metade da missa, apenas. Quando estava para morrer, minha avó completou seu último aniversário. Meus tios já haviam me avisado que a velhinha que lutara contra a falência do cérebro, que a despeito das péssimas condições do corpo avassalado pelo tempo seguia com as faculdades mentais inoxidáveis, havia perdido a lucidez. De fato, estava absorta, irreconhecível; talvez porque estivesse preocupada em reconhecer as amplidões contínuas as quais haviam acabado de se apresentar a ela. Eu teimo em acreditar que a senilidade é nada mais que isso: ela estava finalmente numa terra de Tios Quincas gigantes e entes queridos inextricáveis. Essa é a passagem cujo toda pessoa vai atravessar. Ao contrário do túnel escuro que as pessoas morrem de pavor só de pensar que um dia ele possa mesmo existir, a passagem vai se abrindo, desde o momento que o nosso passado vai virando memórias, e dessas memórias vão se empilhando as lembranças que sobraram, quase aleatoriamente, borrando os quadros imaginários que pensamos infantilmente termos pintado todos com uma tinta anti- bolor e olvido. É como pegar os restos do frango assado para fazer um empadão e depois pegar os restos do empadão de frango para botar num sanduíche: isso é memória. Minha avó, que um dia foi compressão e amplidão ao mesmo tempo, num corpo só, hoje é uma parte microscópica do planeta, entre grãos, e uma outra parte, imaterial, solta no seu solitário e ignoto cosmos, do tamanho que só o infinito pode ser.
O ceticismo do homem culto – ou, em última instância, do homem velho, que será sempre mais astuto e experiente na velhice do que foi na juventude - é resultado direto do encolhimento do mundo. Saber que, mesmo que dure muito tempo, vamos achar as respostas para as perguntas que fazemos é irrefreavelmente entediante. Ainda bem que existe o outro lado das coisas. Ao tentar controlar tudo o que está a minha volta, percebi que o futuro é mais incerto do que o julgamento divino derradeiro. Não saber ao certo com quem nos encontraremos e de que forma estaremos e estarão todos e tudo ao redor é o mistério que nem os ecos do Big Bang – cada vez menos “big” – nem as pirâmides do Egito jamais poderão exceder.
Depois de um bom tempo depois de sua morte, sonhei com minha avó Alice. Ela conversava comigo do mesmo jeito que sempre fez: sua devoção aos detalhes mais pormenorizados do seu passado, do seu querido Tio Quincas – que deve ter morrido uns trinta anos antes do meu nascimento, mas eu o tinha como um tio avô que só deveria morar muito longe, mas jamais morto, de tanto que minha avó o idolatrava e lhe queria bem -, do seu segundo filho que morreu ainda bebê, faziam-na revirar os olhos para o alto, como quem devia apontar as memórias para o revés do chão e das coisas do presente. No auge da narrativa, fechava os olhos; nessas horas sempre sorria, mas sem parar de falar – quem a conheceu sabe que ela não parava nunca.
Foi um dos meus primeiros sonhos depois de muitos anos, quando, lembro-me bem, sonhava sempre em estar voando baixo, lentamente, sem sentir o vento, escutando todas as conversas alheias, aquelas que ansiava desmascarar na realidade de pessoa acordada, e isso era impossível. Não havia muito que apreciar de sonhos como aqueles: era o que eu queria saber da vida das pessoas. Vai ver eu me desiludi tanto com os meus sonhos de urubu mexeriqueiro que deles abdiquei desapercebidamente minha vida.
Esse sonho que tive coma minha avó foi, inequivocamente, um augúrio. Se meus sonhos pretéritos careciam de signos mais complexos e jorravam frivolidade, os de agora, os que anunciam meus trinta anos, são o oposto. Trata-se de uma profusão de sinais sobrepostos e desorganizados, de maneira que, mesmo que sejam tudo menos a repetição idiota dos tempos que plainava sobre as amendoeiras e mangueiras do meu bairro, ainda assim, é possível notar um padrão.
Depois que eu e meus pais nos mudamos de Santíssimo, minha avó foi morar com minha Tia Mara; foi justo aí, nesse lugar, que sonhei com ela papeando comigo. Nunca fiquei tão distante dela quanto nos últimos anos de sua vida, mesmo que nesse ínterim, somente nos seus derradeiros momentos a velhice a tenha ceifado a habilidade de tagarelar. No meu sonho, eu a escutava contar da sua professora primária em Portugal, mas não dos lugares onde eu ouvi a mesma estória por diversas vezes – seu quarto ou o carro do meu pai – e sim do seu novo aposento, onde viveu seus últimos dias. Ali, minha avó foi incapaz de conversar comigo daqueles melodramas, fosse pelo tempo curto das visitas que fazia – sem contar que ela parecia mesmo interessada em conversar com a minha esposa, que sempre estava comigo -, fosse pela sua saúde debilitada. Eu sonhei que minha avó falava de um lugar onde ela pouco pôde fazê-lo; e nesse ambiente etéreo, o sonho era mesmo muito crível: tudo estava disposto como sempre esteve, naquela casa em Bangu. As paredes e o teto, seus santos, as fotos dos netos e bisnetos, a copa, a cozinha, as garrafas d’água e o banheiro; todos em tamanho e em cores reais.
Mais uns dias e sonhei que estava sentado na sala da minha primeira casa, no Bairro Jabour. Eu empurrava um carrinho de brinquedo; fazia curvas em alta velocidade, cantava os pneus. Ao levantar a cabeça, deparei-me com um cômodo gigantesco: o teto ficava a uma dezena de metros da minha cabeça, as paredes eram muros de um castelo de realeza inconteste, os quadros dispunham-se distantes uns dos outros, a escada de madeira escura estava a léguas, a janela que dava para a rua escondia-se atrás de uma cortina que mais parecia o pano desfraldado a esconder o picadeiro antes de assomarem os palhaços e os mágicos, a porta parecia a da Igreja que ficava a vinte passos do portão de casa e minha mãe, minha madrinha e meus primos conversavam longínquos como os transeuntes de qualquer centro comercial num dia de Domingo.
Sufocado pela abundância de espaço, eu gritei pela minha mãe. Tão logo me escutou, desamarrou seu avental de suas costas e veio me acalentar. Com três passos de girafa, me alcançou e me deu colo; ao me levantar com seus braços de Golias, parei de chorar, e o chão ficou distante e inatingível; meu medo foi arrefecendo; meus primos vieram brincar comigo e minha madrinha me trouxe uma colher de iogurte. Acordei.
Com a minha avó, estava num cômodo verossímil; com minha mãe, num exagero caudaloso de espaço e distância. Em todos os meus sonhos recentes, meu passado é de dimensões pelágicas, e eu estou sempre metido na inviabilidade quilométrica da minha semi- consciência.
Quando sonho acordado, perco, dessa feita, a noção exata dos ambientes onde ainda transcorrem ininterruptamente as minhas memórias. Elas são recontadas diariamente; como qualquer estória é reeditada a cada vez que alguém a conta, assim também o são as que habitam nosso cérebro. Entretanto, fora da subjetividade feérica, os contadores subvertem as personagens aos fluxos intermitentes da memória, ao sabor dos interlocutores – o jargão “eu aumento, mas não invento” cai bem nessas horas -; já nos sonhos, o surreal amplia os panos de fundo e tempera as paisagens, mantendo intactos os interlocutores, os narradores e suas falas. Cada vez, pois, que relembro das situações mais recônditas da minha infância, excepcionalmente das que contam da minha primeira casa, me vejo numa terra de gigantes, de prados insuperáveis e de quartos inexcedíveis. Quando minha mãe some, hoje, sonhando com o ontem, dos meus olhos para ir ao trabalho enquanto choro na janela da sala, é como se ela tivesse feito uma peregrinação, ao percorrer aquela rua enorme feito uma via expressa e interminável, onde segue até depois do horizonte; e de lá volta, para subir aquelas escadas de terraplanagem para me abraçar. E não são somente as coisas de criancinha que tomaram a poção mágica que as tornaram gigantes. A cada dia que me lembro do meu segundo grau e daquelas risadas que pareciam que nunca chegariam ao fim, me vejo numa sala absurdamente grande, disfuncional e sem propósito; os professores num tablado gigante e nós espalhados, sentados nas carteiras, como as árvores do cerrado.
Voltei a sonhar e, creio, foi sintomático. Pouco antes do meu primeiro sonho depois de anos – passeava numa praia infinita e retilínea – acordei de madrugada em minha cama e senti sufocado pelo teto do meu quarto. Tive a límpida sensação de poder tocar a lâmpada apagada se assim o quisesse – bastava esticar os braços. Olhei para os lados e senti tudo muito perto, como se tivesse sido trancado num claustro onde a porta diminuíra a ponto de não permitir a passagem de um adulto.
E mesmo sabendo que toda sapiência contém em si a presunção inerente de quem sempre será um inepto frente ao desconhecido que jamais será desvirginado, eu sou, ainda, um bom aluno. De tudo preciso saber, nem que seja para me garantir o acesso às boas conversas ou para desbaratar os que são tão presunçosos quanto eu – ou quanto qualquer um, em última análise. Ampliar o conhecimento traz sempre uma sensação de locupletamento e uma exígua a esta que, ainda que não assuma a forma de discurso, pois é meio estranho dizer para os outros o tempo todo que “só sei que nada sei”, é tão latente quanto o sorver das coisas novas. Destarte, quero dizer, nunca estamos receptíveis a tudo que possamos entender e aprender. Você pode ter uma memória de elefante e uma capacidade de raciocínio pródiga, mas jamais poderá abrir mão daquela fantasia de sabichão que veste sempre que alguém lhe ensina algo interessante, lógico, se for esse o seu caso.
Todavia, se não somos capazes de desencalacrar as sofismas no primeiro contato com as mesmas, é fácil notar que é ligeiro o tempo que levamos para juntar os caquinhos e produzir um conhecimento de verdade. Tão logo estamos novamente fingindo que podemos entender tudo aquilo que assoma no televisor, no history channel, e já estamos de posse do entendimento mais encorpado daquilo que fingimos entender completamente dias antes. E é justamente aí nesse ponto que a vida nos comprime, como as paredes e o teto do meu quarto comprimiram-me, no prólogo dos meus sonhos.
Não importa que agora eu saiba de astronomia, das ciências sociais, que eu leia Dostoievski e o seu Razumikhin, que é capaz de nos fazer entortar a ética dos homens e bolinar a moral – para o bem da humanidade, nunca é demais grifar isso. As esplanadas continentais abertas nessas múltiplas facetas da vida e do entendimento da própria são tudo menos o axioma do homem que se diz livre porque pensa. O mundo parece me esmagar a cada dia que passa. Depois que descobri que o universo teve um começo e que o firmamento é um controvertido sem-fim com um final, voltei aos tempos de menininho quando pulava feito um coelho para pegar alguma estrela da cortina negra da noite. Como retroceder assim é impossível, todo o universo agora está caindo na minha cabeça, diminuindo, a ponto de sentir que não seria loucura poder acariciá-lo com a palma das mãos.
Difícil dizer onde isso começou e mais leviano ainda afirmar que a desconstrução da didática astronômica serviu de estopim para o que vivo. Dessa e de qualquer outra relação de causa e efeito, creio, não poderei lançar mão. Mas o fato é que tudo está diminuindo, desde aquilo que jamais qualquer ser humano poderá sequer imaginar até a cidade, o mar e o corredor do meu apartamento.
Quanto mais caminho para a metade da minha vida, mais o passado se amplia e mais o presente recua em todas as suas extremidades. Se parasse novamente de sonhar e voltasse a ocupar a ribalta onírica somente daqui a quinze anos, que tamanho teria meu pai? E minha mãe, nas suas idas ao trabalho? E a minha primeira bola, como a chutaria? Em contrapartida, qual seria o tamanho das coisas tangíveis? Será que até o ar me imputaria seu empuxo?
A minha avó encolheu tanto em sua vida! Imagino que ela deveria ter uns vinte centímetros a mais do que tinha ao falecer. Claro que sei que o corpo desgasta-se, que a máquina cansa e que não há carne, pele e órgãos que não pendam para o chão depois de tantos anos sob o jugo da massa de um planeta inteiro. O que me deixa digressivo é a casamata invisível onde nos metemos cuja escolha de não permanecer não nos foi conferida.
Vó Alice jamais teve a oportunidade de saber da dialética, tampouco do fim das ideologias; nunca quis meter o bedelho nessas searas e em tantas outras. Ainda que, ao contrário, ela de muito soubesse, saberia só ela das coisas que aprendera, encerrando em si mesma um cabedal de múltiplas conclusões e elucubrações; ou seja: cada um sentirá o céu arriar, o mundo compactar-se em escalas distintas, à sua maneira. E a minha sobrinha Clarice? Como será que se apoderará de um conhecimento disponível muito mais avolumado que o da minha geração? Com que idade ela vai ver o mundo começar a diminuir a sua volta?
Há um momento único na vida da pessoa em que há simetria entre o que se foi e o que se é. Justamente quando temos menos habilidades para compreender de forma mais plausível a transitoriedade e a complexidade das coisas, bem aí, somos proporcionais: o passado é vívido – todas as pessoas que depois desbotam do fundo das gavetas da memória, os rostos, a professora do primeiro ano na escola, os amigos, os conhecidos, os primeiros inimigos, os primos de terceiro grau, o primeiro beijo, o segundo e surrupiado beijo, as peladas, as festas de aniversário, as broncas dos pais – e o presente não é acometido pelo nanismo que nos espreme, a partir dali, contra o ar e as paredes. E ninguém tem a obrigação aos dezenove, dezoito anos de prever tudo isso que escrevi até aqui.
Mais interessante e deveras agastante é tomar nota que, mesmo depois de mortos, seguimos o destino de encolher cada vez mais. O que são os mortos senão aquilo que está no ínfimo interstício que há entre as pedras e os grãos de areia? Depois que o coração para de bater e o cérebro desliga, já não são mais as paredes ou o ar ou a abóboda celeste que diminuem de escala, e sim a matéria orgânica em que nos transformamos de uma hora para outra. Com estupenda celeridade, a morte completa brutalmente aquilo que aumenta de intensidade com a sutileza dos grandes artesãos, quando ainda somos seres vivos.
Esse lado da moeda já está bem claro para mim: o futuro é compressão. Mas essa é a metade da missa, apenas. Quando estava para morrer, minha avó completou seu último aniversário. Meus tios já haviam me avisado que a velhinha que lutara contra a falência do cérebro, que a despeito das péssimas condições do corpo avassalado pelo tempo seguia com as faculdades mentais inoxidáveis, havia perdido a lucidez. De fato, estava absorta, irreconhecível; talvez porque estivesse preocupada em reconhecer as amplidões contínuas as quais haviam acabado de se apresentar a ela. Eu teimo em acreditar que a senilidade é nada mais que isso: ela estava finalmente numa terra de Tios Quincas gigantes e entes queridos inextricáveis. Essa é a passagem cujo toda pessoa vai atravessar. Ao contrário do túnel escuro que as pessoas morrem de pavor só de pensar que um dia ele possa mesmo existir, a passagem vai se abrindo, desde o momento que o nosso passado vai virando memórias, e dessas memórias vão se empilhando as lembranças que sobraram, quase aleatoriamente, borrando os quadros imaginários que pensamos infantilmente termos pintado todos com uma tinta anti- bolor e olvido. É como pegar os restos do frango assado para fazer um empadão e depois pegar os restos do empadão de frango para botar num sanduíche: isso é memória. Minha avó, que um dia foi compressão e amplidão ao mesmo tempo, num corpo só, hoje é uma parte microscópica do planeta, entre grãos, e uma outra parte, imaterial, solta no seu solitário e ignoto cosmos, do tamanho que só o infinito pode ser.
O ceticismo do homem culto – ou, em última instância, do homem velho, que será sempre mais astuto e experiente na velhice do que foi na juventude - é resultado direto do encolhimento do mundo. Saber que, mesmo que dure muito tempo, vamos achar as respostas para as perguntas que fazemos é irrefreavelmente entediante. Ainda bem que existe o outro lado das coisas. Ao tentar controlar tudo o que está a minha volta, percebi que o futuro é mais incerto do que o julgamento divino derradeiro. Não saber ao certo com quem nos encontraremos e de que forma estaremos e estarão todos e tudo ao redor é o mistério que nem os ecos do Big Bang – cada vez menos “big” – nem as pirâmides do Egito jamais poderão exceder.
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