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quinta-feira, 8 de julho de 2010

Adeus, Ano Novo

Acabara de chegar à casa um pouco atrasada, é verdade, mas a tempo de cumprir com o combinado. Seu marido já estava sentado no sofá, de pernas cruzadas, bebendo uma vitamina de banana misturada a algum tipo de pó - um entre tantos outros complementos vitamínicos que havia comprado desde o início do ano.

“Ô,Maria – disse depois de matar a espessa bebida com três goladas apressadas - o programa já vai começar. Senta aí, vai”.

Maria nem teve tempo de dar aquela perscrutada básica na casa, coisa que sempre fez desde os tempos que ainda era menina e vivia com os pais. Não foi ao quarto do filho, não conferiu o serviço da doméstica nem ligou para a mãe. Aquele programa, desde um par de semanas anteriores tiranizava os assuntos; ou as tratativas do casal começavam por ele, ou qualquer outra conversa - que podia ser um bate papo sobre uma futilidade diária ou um diálogo impreterível acerca das obrigações as quais não se podem adiar - serpenteava até, invariavelmente, alocar-se naquele entretenimento audiovisual que estava prestes a começar.

Ao chegar cansada do trabalho e ver ali seu homem num estado deslumbrante, exalando uma juventude resgatada a corridas e braçadas dos seus melhores dias de mocidade, a mulher corroia-se de arrependimento. Sempre foi capaz de guardar para si as opiniões que tinha não só do seu companheiro como de qualquer outra pessoa que fizesse parte da família ou do trabalho. Não sabia medir a ocasião e o tom necessários para externar declarações peremptórias, de modo que foi, ao longo da sua vida, aprendendo a lidar com a necessidade inerente a qualquer pessoa de dizer a verdade afiada e ferina às pessoas, fosse para um premente alerta frente alguma situação periclitante ou mesmo para machucar o ego alheio. Chegara numa idade em que dizer algo a alguém - e esse algo ser sobre esse mesmo alguém - não lhe fazia nenhuma falta. Vivia bem assim, feliz, na medida em que um casamento de vinte e um anos o permite. Já fazia alguns anos que até aquela coceira que dá na ponta da língua, aquela coceirinha que faz a pessoa quase babar as palavras que estão para sair feito um cruzado, havia desaparecido.

Mas Maria estava ali, sentada com seu marido de abraços cada vez mais fortes e bigodes sujos de vitamina de banana. Depois de beijá-lo, decifrou o sabor do pó da vez: guaraná. Já tinha beijado tanto aquele bigodão úmido nesses últimos nove meses que se tornara uma especialista em suplementos alimentares. O maridão se sentia tão renovado e saudável a cada quinhentos mililitros deglutidos que logo a beijava, e esses beijos naturebas ficaram cada vez mais constantes e consistentes desde que a esposa resolveu dar vazão àquela coceirinha aziaga que hibernava tranquila.

O marido atendia pelo nome de Maurílio. Era um típico carioca suburbano: esperto, vivido, malandro e um glutão convicto de toda sorte de quitutes da baixa gastronomia. Mocotó, bolinho de aipim, torresmo, picanha, lombinho, carne seca, joelho, amendoim japonês e, para não deixar estômago e fígado trabalharem sobrecarregados sem líquidos, cerveja, muita cerveja. Quem olha o rígido senhor a correr feito um coronel reformado pelas ruas de Santíssimo não pode sequer inferir que o desportista de passos firmes e respiração compassada - “Inspira pelo nariz, expira pela boca... Nariz... Boca... Nariz... Boca... Isso Maurílio, correndo Maurílio” – era um fiel correligionário da vida sem floreios e maiores preocupações concernentes à saúde e aos bons hábitos alimentares. Um corredor se conhece pela indumentária. Quando cruzam as ruas aqueles gordinhos vestidos de algodão e bermudas cáqui já sabemos do que se tratam. São aqueles que não durarão por mais dois dias de exercícios, que já deve ser a trigésima vez que tentam perder peso, que darão uma paradinha em alguma birosca para repor as energias perdidas nas passadas sôfregas e pesadas de quem corre só para dar uma satisfação ao cônjuge ou à própria consciência. E basta o primeiro olhar àquele quarentão imponente e majestoso e já se sabe que não terá fim a corrida num salgadinho com molho de pimenta. A camiseta é da meia maratona do Rio que acabara de completar sem sustos – só uma dorzinha no músculo posterior da coxa, que serviu mesmo para adornar de épico o feito de Maurílio, que o contava a quem quisesse ouvi-lo -, um relógio em cada pulso - um para marcar tempo total do percurso e o outro para medir o ponto falho da performance do atleta, que é o seu sprint final - e nos pés um tênis de última linha de setecentos e trinta e sete reais, dado pela sua esposa nos dias dos namorados, como assim o marido semi maratonista pedira.

Entrava no ar o último intervalo comercial. Logo após, uma reportagem de um programa esportivo especializado em atletismo enfocaria um homem que tinha uma vida sedentária e semi alcoolizada e que mudara completamente a partir da prática esportiva. Esse exemplo de perseverança e amor ao esporte e à vida é Maurílio. Seus amigos da academia e seu personal trainner resolveram enviar ao editorial do programa a história de um quase velho que havia transformado toda sua vida para se tornar um dos melhores atletas amadores da região de Santíssimo e Senador Camará. A equipe do programa não só gostou da ideia de incentivar os telespectadores através da superação de Maurílio como enviou uma equipe de reportagem para a academia “Suor & Fitness” a fim de dramatizar a vida de quem agora vive nos conformes da salubridade. Com uma das mãos abraçava Maria e com a outra penteava o bigode. Pelo menos nisso não mudara em nada. Assim agia quando estava ansioso. A mulher de braços cruzados só conseguia pensar no desatino que cometera às vésperas do ano novo. Quieta, aborrecida e envolta pelos braços túmidos do seu benzinho, num enlace que há que se fazer força para reconhecê-lo, já que aqueles braços moles e quentinhos são coisa do passado, Maria resmunga consigo mesma; em pensamento, grita e reclama como uma velha reumática.

Numa das cada vez mais ocasionais e fugazes noites de amor do casal, mais precisamente no dia vinte e sete de Dezembro, Maria se viu retorcida e flexível numa idade em que já não cabiam estripulias sexuais. Mas para subjugar aquela barriga esticada e pétrea, teve que fazer de tudo. Nem nos idos da adolescência, quando acampava junto aos hippies quase libertinos em Araruama nas férias escolares, foi preciso extrapolar tanto os limites da coluna vertebral e das juntas. Não obstante a barriga de grávida em iminência de parir do marido, incomodavam-na os excessos, as amizades etílicas e, principalmente, aquele sorriso de contentamento que sempre derramava ao dar tapinhas leves na própria pança-caroço.

“Meu bem, tá ficando difícil, hein!” – disse exaurida depois de arrancar a fórceps o gozo daquele empapado e estático corpanzil.

Maurílio tomou como acinte o aviso da mulher, mas não demonstrou nem por um instante todo o seu embaraço. Foi como se um outro Maurílio o estivesse olhando e reparando em seus defeitos, balançando a cabeça, caçoando das feiúras lipídicas sobrepostas aos músculos como uma geléia siderúrgica. Esperou sua insatisfeita dama tomar o caminho da suíte para levantar-se e ir até o banheiro. Urinou sentado e de cabeça arriada. Quando se levantou, viu seu rosto no espelho. Acabara, então, de fazer uma daquelas promessas de ano novo. Haveria de perder peso e destruir aquela melancia transgênica que carregava. Só a comunicou do compromisso assumido consigo mesmo à hora dos foguetes e das serpentes de luz que coriscavam no céu do primeiro dia do recém chegado ano. “Que bom”, respondeu Maria, com o desdém típico que se deve dar a essas leviandades enfáticas propaladas durante o júbilo de todo primeiro de Janeiro.

A verdade é que Maurílio há muito tempo sabia que seu corpo disforme não estava em consonância com a sua própria vaidade. Se não fossem todos aqueles prazeres mundanos do paladar e a segurança de mais de duas décadas de um casamento bem alicerçado, o sobrepeso teria causado estragos na felicidade malandra em que vivia. De fato, era como se esperasse pelo aviso desde muito tempo atrás, de modo que nem teve como dar a devida importância ao fato de ter sido admoestado pela mulher, já que a mesma jamais o fizera em muito tempo de estabilidade conjugal, nem com ele, nem com ninguém da família.

O negócio é que dali em diante, a lagarta preguiçosa que teimava em desviar do caminho exíguo e retilíneo do seu casulo não só resolvera cambiar o seu futuro como o fez de supetão. Dá até para imaginar que se não fosse assim tão revolucionária aquela guinada laboriosa e obstinada, a mulher teria se dado por muito satisfeita, e de fato, foi de bom grado que viu a nova rotina, lá pelos idos de Fevereiro, firme e indelével como fora no mês anterior. Nas primeiras compras do ano bom, chegou a franzir a testa ao ver o marido entrecortar os corredores e as estantes do supermercado por onde nunca enveredara e dar um risinho disfarçado quando o pegou fingindo como uma criança que não se importava mais com os enlatados e as carnes. Contudo, cada deboche impertinente, cada piadinha sem graça que Maria vez por outra pronunciava pareciam já pressentir o quão atlético e rígido ficaria aquele homem, de maneira que não podiam infringir-lhe qualquer desencanto; estava refratário à toda sorte de brincadeirinhas. Os dias foram transcorrendo e, paulatinamente, a volúpia atlética dele alvorescia. Começou a correr. Já na primeira semana de práticas, conheceu um rapaz que o levou para a academia, onde desbravou um mundo novo de exercícios, aparelhos, esteiras e amigos sadios. A barriga obtusa foi encolhendo numa celeridade notável, ainda mais para um senhor na casa dos cinquenta anos que, no máximo, jogava sua peladinha cansada nos domingos pela manhã. Teve que mudar de roupas antes mesmo da mulher começar a levá-lo a sério de verdade. Não só as substituiu a todas como mudou de estilo; precisava de leveza para os exercícios que fazia e para aqueles que já fantasiava fazer quando o corpo estivesse no ponto exato.

O calvário de Maria ainda não dera o ar de sua graça; quando entrou na natação, nas terças e sextas-feiras, um superatleta temporão e sedento restituiu Maurílio do seu orgulho descamado. Nem nos seus tempos de namoricos e noites viradas em claro havia gozado de tantas possibilidades somente deferidas pelos corpos de capacidade equina. O holismo do desporto engendrado por tantas práticas esportivas diferentes espetou o leão velho que dormia no coração de Maurílio, que além de traçar metas de cronômetro, queria mais do que nunca devorar sua esposa na cama. Todos os dias, principalmente quando chegava das suas corridas crepusculares, entrava em casa suado – porém, bem alongado para não enrijecer o corpo para o dia seguinte – tirando a própria camisa, querendo sexo imediato. Todo março e a primeira quinzena de Abril levaram-na ao delírio conjugal. Quando ele saía para, àquele tempo, treinar para a longínqua e inverossímil meia maratona do Rio de Janeiro, nem queria saber se o seu homem estava ficando senil ao dizer, como quem está certo que vai dormir ao fim do dia, que iria correr mais de vinte quilômetros ininterruptos de aclives e asfalto abrasivo. Ela até dava um forcinha, mas porque sabia que ao retornar do treino, ele estaria enlevado pela iminência do prazer. Era tudo muito rápido assim que Maurílio chegava. Eram como virgens deflorando-se um ao outro; mal se beijavam, mal se tocavam. Tudo estava bruto e sincero; mais gostoso, estragava. Queria amar sua mulher, em determinados dias, por duas vezes em série, como não fazia desde a época que entraram sozinhos e soberanos em casa, depois da festa de casamento.

As semanas foram se passando e a sede do marido não se amainava de jeito nenhum, nem se o percurso do seu trotar fosse mais longo que o normal, muitíssimo pelo contrário. Todos aqueles sorrisos que a mitigavam por dentro do coração, conquanto desnudassem a febre do seu corpo revisitado, foram sumindo. Pensava que, mesmo que não quisesse pensar assim, seu garanhão balzaquiano arrefeceria diante da sucessão irrefreável das noites dionisíacas. “Isso é o último suspiro”, chegou a falar baixinho no ouvido de seu parceiro, quando abraçados na cama, depois de uma dessas desventuras florescidas fora de época, no outono de suas vidas. Seu carvão foi virando brasa, e a brasa, finalmente, como previra, virou cinzas. Só não imaginava que havia um Vesúvio expelindo ganas e libido de dentro da alma do seu bigodudo. E se a vida do atleta é medida pela obediência prosaica aos mesmos rituais, o atleta do sexo assim também o era. Não obstante as limitações físicas de Maria, aquela sedução rudimentar de machão em estado de cópula já não tinha a menor graça dois meses depois do começo; sem contar o suor, que de bálsamo passou a sovaqueira, e das brabas.

Quando Maurílio não estava em casa pedindo por sexo, estava fora, ou na academia com suas novas amigas delgadas e seus novos amigos musculosos; ou estava na natação, com seus novos amigos cetáceos; ou estava correndo, com seus novos amigos peregrinos. Isso a tirava do sério, completamente. Pouco antes de completar o quinto mês do ano, baratinada, foi ao campo num domingo para saber de seu marido, que mal dera as caras em casa na última semana, sempre atrás do rendimento perfeito. Quando chegou ao boteco do Farias, tio de Maurílio e mantenedor do campo e das peladas,viu a antiga trupe do marido ali, do mesmo jeito que teimava em encontrar seu cônjuge antes de reprimi-lo modestamente pela forma paquidérmica em que jazia.

“Gegê – deu dois tapinhas nas costas do velho cachaceiro - cadê o Maurílio?”

“Que isso Maria? – respondeu-lhe, ao virar-se para trás e inclinar o pescoço para o revés e os olhos para cima – Tá nervosa, mulher? Maurílio está jogando; olha lá”

Foi Gegê apontar para o campo de jogo e ela estremeceu-se toda. Ao cortar com uma cabeçada um cruzamento, o vigoroso zagueiro Maurílio, camisa de número três, trombou violentamente com um rapaz que devia ter uns trinta anos menos que ele. O barulho do sinistro foi ouvido por todos os peladeiros, os que estavam jogando e os que estavam bebendo e comendo churrasco do lado de fora das quatro linhas. O rapazola, do jeito que caiu, ficou, enquanto o multi atleta do ano estaria correndo com a bola até agora, se o juiz não silvasse esbaforidamente o apito para adverti-lo sobre o incidente. Maurílio já havia jogado a pelada anterior, mas como os seus amigos de cevada estavam naquele mesmo antigo estado de quase prostração desportiva, daquele jeito que não concebia como, um dia, pôde ser assim também, pedira para brincar no jogo dos garotos. Quando tomou ciência de que aquela carreta velha que acabara de atropelar um pobre menino na flor da idade estava já na segunda pelada do dia, Maria se assustou – além de ter ficado fula da vida com a gargalhada que Gegê e sua turma gritaram quando seu velho amigo um homicídio culposo quase cometeu.

O ato final daquela reviravolta protéica e musculosa era o programa. Quando o viu no televisor, sentiu um asco ingente. O velho arguto e beberrão, que surpreendia a família ao trazer sempre de onde não se sabe uma gíria burlesca ou uma piada engraçada, falava agora como um daqueles ajudantes de programa de televisão matutino, ou então aqueles idiotas vendedores de esteiras ergométricas e compressores eletrônicos de gordura localizada. Tudo mudara no seu homem; a eloquência esperta da malandragem, que nesse momento já trazia até uma inesperada nostalgia, fora substituída por frases feitas, pelo “esse” mongólico que chiava no microfone pelos plurais que não falava com correção nos diálogos comuns, principalmente quando falava com a mulher e filho, e pela expressão corporal de um brutamonte a bancar o culto.

O programa acabou e os telefonemas prorromperam. Maria nem precisou inventar uma desculpa qualquer; saiu batendo a porta e nem assim o herói da academia, da piscina e das pistas de atletismo a percebeu: era a hora de colher os louros de meses de perseverança.

No dia seguinte, as ligações ainda pipocavam, mas ela estava com a cabeça em outras coisas e assim atendeu a todos os telefonemas com civilidade e, para os mais íntimos, chegou a demonstrar felicidade. Estava mais ansiosa que feliz, mas não dava mesmo para notar a diferença entre uma coisa e outra - nem ela poderia dizer em que estado anímico estava. Já na noite anterior, quando teve que inventar uma enxaqueca para se livrar do cio animalesco e furioso do seu homem, afanou-se com a premência da mudança que precisava impor à própria vida, e isso só seria possível através de uma ação certeira como um arqueiro e fortuita feito um beijo roubado. Enquanto atendia os parentes envaidecidos pela saga de Maurílio e os amigos orgulhosos pelo exemplo de pertinácia quase onírica, preparava no fogão um quitute que fora exilado desde o início do ano; “que ele não chegue agora, por favor”, pensou enquanto falava pelo fio com tia Marilda, que assistira por acaso o programa do dia anterior.

Maria foi à rua e trouxe duas sacolas de compras cheias, e como se alguém quisesse saber o que levava consigo – não que não existisse algum vizinho fofoqueiro para tanto, mas naquele dia, tudo o que era fofoca haveria de ficar para depois por causa da celebridade do bairro – caminhou com passos curtinhos e velozes do táxi até a porta de casa, sabendo que não podia deixar rastros para os que vivem de mexericos, sentados nas suas cadeirinhas de praia nas calçadas. Enquanto ele trabalhava, ela preparava os adornos da sua tacada derradeira contra a ameaça de viver uma vida inteira de dores de cabeça fictícias e beijos com gosto de reforço muscular.

E como acontecia todos os dias, chegou suado e feliz, abrindo com brutalidade a porta da casa, sem precisar dar sinais do que realmente queria depois de voltar de mais uma tarde-noite de atleta; não era preciso nem uma palavrinha, nem uma sacanagem qualquer, daquelas que são ditas para abrir os trabalhos dos amantes. Se toda vez chegava em ponto de bala, para que perder tempo nos introdutórios da sedução? Pois quando abriu a porta do quarto do casal com a mesma inabilidade que fizera com a porta da sala, deu de cara com Maria vestida num corpete preto com detalhes púrpuros, de meias justas e diáfanas e cinta-liga. Seus olhos estarrecidos num átimo ficaram e como um lobo faminto partiu para cima daquele corpo oblongo, reavivado e reinventado, esbarrando no armário para depois tropeçar no pé da cama, como fazia nos tempos de bebedeira. Seu corpanzil dispôs-se por cima da mulher, que o rejeitou.

“Calma, homem! Hoje vai ser do meu jeito.”

Maurílio ficou tão enlouquecido que não conseguiu perceber que o quarto cheirava a banquete recém posto e que a confusão fragrante do ar pesado vinha do criado mudo do lado da cama onde dormia sua mulher. Depois de empurrá-lo, puxou da gaveta uma meia dúzia de chocolates – era bis – e colocou um deles na boca. Não o mastigou, repousando-o, sem espremê-lo, na fenda criada entre seus dentes caninos. Para beijá-la, teria que, no mínimo, arrancar a barrinha crocante da boca dela. Quando tentou tirá-lo com as mãos, levou uma baita de uma reprimenda. “Calma, homem, venha me beijar”, e pôs novamente o chocolate entre seus dentes. Cruelmente, a cada beijinho, Maria ia dispondo mais um pedacinho do doce, empurrando meticulosamente com a língua pedacinho por pedacinho para fora da boca, na medida em que o ex-comilão a beijava desconcentrado entre grudar seus lábios nos dela e mastigar o acepipe que não colava em seu palato havia meses. Lá para o terceiro chocolate, Maurílio tentou agarrá-la e ela gritou, pôs a mão em sua calcinha e ela o chutou. Não havia jeito: se quisesse dispor daquele corpo embrulhado por erotismo, teria que embarcar na fantasia da mulher, que nunca fora daquelas coisas, mas não cabia discutir isso numa hora dessas, primeiro pela vontade de agir em vez de falar, segundo porquanto ela parecia resoluta a concluir o que planejara.

“Agora, levanta, benzinho. Fica ali, de costas para o armário”.

Não seria agora, depois de concluir que faria o que ela quisesse, que Maurílio iria questionar sua imperiosidade.

“É o seguinte: você quer que eu tire minha roupa, não quer? Então, vou arremessar umas coisinhas para você; você tem que pegar com a boca – nada de mãos, ouviu? – e comer tudo. Cada coisinha que você conseguir pegar, eu tiro uma peça de roupa, certo?”

Assentiu balançando a cabeça. Ficou de pé e viu sua malvada senhora tirar com a ponta dos dedos a toalha de mesa que cobria uma cestinha de vime que estava em cima do criado mudo. Dentro da cesta, estavam empilhados quibes, bolinhos de bacalhau e bolinhas de queijo. Pelo cheiro, percebeu que ainda estavam quentinhos e prontos para o consumo e deleite. Quis por um instante parar com aquilo tudo, mas novamente se despiu de toda vontade de dar cabo daquela dança inebriante quando seu desejo o cegou de vez: a partir daquele momento, faria de tudo para se deitar com aquela pervertida inusitada que lhe impingia artimanhas febris, mesmo que estas lhe fizessem ingerir alimentos que havia expurgado de seu estômago há quase um ano atrás.

Maria jogou o primeiro quibe. Aturdida e contraída, a boca mal se moveu e o primeiro salgadinho o atingiu bem no nariz. Ela sorriu, estava no controle da situação. “Assim eu vou ter que dormir desse jeito, toda vestida”, disse depois do terceiro salgado desperdiçado. Foi pegando o jeito e capturou os dois que vieram em seguida; mastigou-os e os engoliu. A partir daí, teve que lutar para não gritar de confusão e prazer. Um salgadinho atrás do outro. O bacalhau o fez tremer como nunca o fizera nos tempos em que o ingeria imoderadamente; mordia-o com a força usada para romper os nervos de uma carne de terceira, desnecessariamente, confuso por se sentir tão acintosamente desconcertado pelo o que retirara da sua dieta. Depois do último pitéu, sentiu-se mal por ter sido exortado pela mulher a fazer aquilo, mas enquanto isso, seu cérebro foi separando os gostos que consumira compulsoriamente e transformando-os e em nítidas sensações de felicidade. Desse pequenino transe, foi acordado pela voz do pecado.

“Pode vir, benzinho” – chamou a despida mulher. Ao beijá-la com a volúpia de um náufrago, sentiu que Maria o empurrava.

“Meu amor, antes, ainda tem mais uma coisinha...”

Ela sacou da gaveta do criado mudo um tubo de chantilly e foi despejando o creme branco e gorduroso pelo corpo: fez duas rodelinhas em torno dos seios e revestiu os bicos; das duas argolas simétricas desciam duas linhas que se encontravam, formando uma apenas, que desceu por todo o ventre até a hileia que cobria a vagina. Construída a transamazônica do desejo, Maria depositou cuidadosamente uma cereja entre as almofadas do seu sexo, calcificando-a, firme pela massa branca.

“Não! Começa por cima, pelos peitos!”

E lá foi ele, de coração na mão, com as veias latejando. O chantilly foi invadindo seu corpo – não todo ele, já que o bigode o reteve em parte – e sua língua atravessando aquele território prestes a ser conquistado e saqueado. Depois de chegar ao final da estrada e lá estacionar a língua, não antes de engolir qualquer resquício de creme e a cereja, teve que ser retirado a força pela mulher, que lhe puxava os cabelos para finalmente dar início ao último ato do espetáculo. É que Maurílio, que havia pouco revisitara os sabores dos salgados, separadamente, agora degustava de uma emulsão meio doce do chantilly, meio acre e salgada de sua mulher. Simplesmente ficou maluco o homem. E, totalmente enlevados, fizeram amor de uma única tacada.

No dia seguinte, Maria acordou virada de lado para o criado mudo, como sempre fazia; abriu os olhos e viu o tubo de chantilly vazio, a cesta revirada e os papéis de bis amassados. Com os olhos inchados, sorriu. Virou-se de lado e viu que a cama estava vazia; seu marido não estava lá. Botou a camisola e saiu procurá-lo pela casa, mas não o encontrou. Sentou no sofá e começou a chorar. Não havia dúvida: se Maurílio saíra tão cedo era para correr ou para nadar ou para levantar peso ou para fazer qualquer coisa que a deixaria maluca pelo resto da vida – ou a deixaria desquitada, em última análise. Só parou de chorar alguns minutos depois, quando ouviu o portão do seu quintal se abrir. Seu corpo tremeu; iria dizer-lhe que era um imbecil, que sua vida era uma merda e que ele não percebia que tinha se tornado um chato de galocha, motivo de piadas entre os amigos das antigas; iria, pela primeira vez na vida, verbalizar e dar forma ao que sentia, num procedimento bem distinto daquele que usara para advertir polidamente o ex-gorducho no final do ano anterior. Quando a porta se abriu, ela a chamava.

“Maria, me ajuda aqui. Estou todo enrolado, cheio de bolsas!”

Com uma pezada – as mãos estavam ocupadas -, abriu a porta. Maria pegou as sacolas de mercado e, ensandecida, examinou-as uma por uma. As bolsas estavam cheias de pães, presunto, queijo prato, salgadinhos semi-prontos, patês, biscoitos recheados, achocolatados, massa de pastel e saquinhos de miojo.

“Que cara é essa, mulher? Viu um fantasma ou o quê?”

“Não foi nada” – disse ela, disfarçando sua agonia num sorriso amarelo, para depois abraçá-lo com força e beijá-lo apaixonadamente. Pegou os pães, recheou-os de presunto, queijo e margarina e pô-los no forno, enquanto o cheiro do café invadia os recintos, perfumando a casa.

“Estou fazendo um misto pra gente” – disse tremendo de pavor, temendo a reação dele, que estava sentado no sofá da sala.

“Ainda bem, porque estou morrendo de fome. Enquanto isso, me traz o biscoito e o patê”.

Ela sorriu e todo júbilo que lhe invadira a alma na noite anterior deu meia volta preencheu-a por completo. “Espera um pouquinho”, e assim, andando na ponta dos pés, foi até a dispensa da cozinha e, não só pegou o que lhe fora pedido pelo marido, como trouxe tudo ajeitadinho, patê no biscoito, na bandeja.

2 comentários:

  1. Gostei muito. Meio Carlos Heitor Cony. Lembrei de "Estômago", você viu esse filme? Acho que poderia render um curta bem interessante. beijos, tati

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  2. Não vi não, Tati. Mas se pode dar um curta,aí já e contigo, né? hehe

    Beijo!

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