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terça-feira, 13 de julho de 2010

Por que acordá-la?

Esta noite realmente não é como as outras. Ela que sempre caía discreta e taciturna, hoje se apresentou movimentada, barulhenta e impetuosa.
Na TV, o presidente discursava um pronunciamento em rede nacional. Sua expressão era palidamente tensa, seu olhar era temerosamente distante e profundo. Suas palavras eram tão confortáveis e ao mesmo tempo tão desencorajadoras, que nesse dualismo de tons acabei meio que confuso. O discurso presidencial era tão franco e natural quanto um papo de botequim. Aquelas palavras não estavam em um texto em sua frente e nem foram formalmente decoradas, saíam de seus lábios da mesma maneira que o ar entra em meus pulmões. Por fim, ele encerrava o pronunciamento com um pedido de desculpas e um desejo de que Deus abençoasse a todos. 
Minha mulher cruzara a sala apressada com uma mala na mão, abriu a porta e revelou a movimentada e desesperada noite que fluía do lado de fora. Um brilho que viera de um longínquo lugar ornava com certa resplandecência aquele pandemônio. Ela voltara novamente para dentro de casa, a porta ficara entreaberta deixando que os gritos de desesperos e as buzinas dos carros entrassem. Seu semblante lembrava o do presidente na televisão, sendo que sua palidez e tensão eram bem mais abrangentes.
-Vamos Edgar!- Disse ela.
Apenas gesticulei com a cabeça concordando, bati as mãos nos joelhos e levantei de minha poltrona. Enquanto minha esposa ia ligar o carro, eu subia até o quarto de Yuri, nossa filha.
Yuri sem dúvida é minha grande razão nessa vida, nós a tratamos como uma verdadeira princesa. Abri a porta de seu quarto com imenso cuidado; a porta rangeu levemente. Levei a mão até o interruptor, mas desisti da idéia de acender a luz por um instante. O abajur giratório ao lado de sua cama projetava várias figuras na parede rosa de seu quarto, estrelas, luas, sóis, todos os astros com um sorriso na face. Caminhei até a janela e puxei levemente a cortina, e lá estava à noite do lado de fora, cruelmente movimentada e hipoteticamente convidativa.
Mário sentado em sua cadeira de balanço no alpendre de sua casa parecia contemplar tudo aquilo. Com sua garrafa de uísque em mãos, ficava claro que ele não tinha pressa alguma. A buzina de nosso carro soou lá embaixo, me dirigi lentamente até a cama de Yuri, sentei cuidadosamente e acariciei seus cabelos. Contudo, a expressão serena e a respiração cadenciada emanava um ar de paz e tranqüilidade. Contemplei aquela imagem inconscientemente, as memórias do passado foram inevitáveis.
A buzina soou novamente, daquela vez, soou por longos segundos, não tínhamos muito tempo. Ia levando a mão até o ombro de Yuri para acordá-la, mas nesse meio tempo, hesitei e a recolhi repousando-a em minha perna. Realmente não tínhamos muito tempo, mas para onde poderíamos ir? Será que realmente iríamos escapar? Será que vale a pena acordá-la para presenciar um cataclisma e uma destruição iminente?  Melhor não, melhor poupá-la de algo cruel demais para um anjo como ela. A buzina soou novamente, em breve a bola de fogo cruzaria os céus.

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