Quando virou a esquina do calçadão com a Viúva Dantas, sentiu que iria fatalmente perdê-lo de vista em meio a tanta gente; mesmo que ainda não fosse o horário mais profícuo à concentração de transeuntes, as ruas estavam apinhadas de trabalhadores, estudantes, consumidores e pessoas de todo tipo. Na pequena calçada da loja de roupas, que fica ainda menor em decorrência do uso indevido do espaço público pelos desregrados lojistas do varejo, Mário sentiu que deixaria o seu alvo escapar da mira.
Munido de pressa, viu desaparecer repentinamente a sua boa educação. Esbarrou numa normalista que deu um gritinho de espanto, derrubou um dos cabides da loja que irregularmente expunha moletons em promoção e pisou no calcanhar de uma senhora muito gorda que lhe repreendeu com uma voz grossa e imperativa. Mário não lhe deu a mínima e, ao chegar à parte mais larga da calçada, derrubou os penduricalhos de uma ambulante que vendia óculos e prendedores de cabelo. O coro contra o desajeitado pedestre foi ganhando corpo, quando Mário já estava novamente no rastro do seu objetivo móvel. Se quando, momentos antes, por força do fino pavimento, onde suscitara as reações mais nervosas, o rapaz não pensou em nenhum momento em evitar o choque com as pessoas que o atrapalhavam, não seria agora, desimpedido, que iria retroceder, nem que fosse só para pedir desculpas.
Nos últimos seis meses, Mário desenvolveu um hábito estranho: seguia as pessoas. Diferente de um tarado ou de um detetive particular, não tinha um objetivo definido ao seguir os outros pelas ruas dos subúrbios da cidade. Parecia um piloto de corridas de automóvel que se recusa a ultrapassar seu oponente, deliciando-se simplesmente com a perseguição inócua. Como não queria ser pego nem pegar ninguém atado a um segredo, desenvolveu aspectos particulares para a sua voraz diligência diária.
Um detetive, por exemplo, age com a finalidade de desnudar seu alvo. Em qualquer romancezinho policial pode-se observar que o sujeito designado para a função de desmascarar alguém desenvolve um método, que pode até começar com uma despretensiosa perseguição. Contudo, o perseguido sempre some quando pega um ônibus; quando se mistura à multidão que, por vezes é uma manada intransponível; quando entra num prédio suspeito ou quando, no cantão mais improvável da cidade, saca o seu cartãozinho telefônico e faz uma ligação suspeita num orelhão. Se fosse eu o contratante desse serviço sujo, não me abalaria com provas insípidas. De pronto, cobraria do investigador uma foto, um vídeo, uma carta, uma testemunha... Jamais poria em risco um reles namorico por suspeitas irrefreavelmente levianas, muito menos um relacionamento onde estivesse impressa a minha vida toda.
Como Mário não tem que provar nada a ninguém e sai por aí depois do trabalho a seguir qualquer um que lhe traga interesse, sua técnica se baseia em alongar sua diversão até onde começa a engendrar-se o perigo de ser descoberto. Se um profissional do rastreamento vê que sua vítima se aproxima da zona onde não produziria provas contra si mesma, ele sai de cena e volta seus pensamentos para outros fronts: apura as informações que colheu, revela suas comprometedoras fotos, faz telefonemas maliciosos ou conta as boas novas ao seu patrão desconfiado.
Se Mário fosse um estuprador, por exemplo, tentaria estabelecer uma prévia relação com a vítima ou a atacaria em determinado ponto que reunisse condições de indelével privacidade, como fazem esses facínoras. Mas o trôpego e aparvalhado observador – em última análise é isso mesmo que ele se tornou nos últimos tempos – age como quem fica em cima do muro, no meio do caminho entre o estuprador e o detetive particular: o primeiro chega às vias de fato, é descoberto por vontade própria; o segundo só começa a sua diligência seguindo os passos dos outros porque não tem indícios concretos do “crime” – se assim não fosse, nem se disporia a andar feito um gato atrás de um rato.
Aquela já deveria ser a vigésima “vítima” de Mário. Nesses jogos que estabelecera, sentia o corpo mais desperto; tudo lhe aguçava os sentidos. Não era raro perceber que seu coração batia no ritmo da ferina euforia. Não queria ser pego; mas não queria, não obstante, deixar de sentir que poderia ser desmascarado. Quando sentia que a pessoa à qual seus movimentos convergiam poderia num súbito interpelá-lo, sentia uma torrente de pânico atravessar seu corpo inteiro. Não havia espelho à mão, mas sabia que, tão logo o medo lhe combalia as pernas, sua pele se manchava de escarlate, como se seu sangue invadisse as ranhuras e as pavunas de sua epiderme. Corava a ponto de sentir sua temperatura corpórea subir. Então, via todos os olhares convergirem na sua direção. Tinha medo dos velhos que passavam por ele. Achava que os velhos poderiam descobrir seu segredo. Não sabia do que tinha mais medo nessas horas, se era de ser confundido com um tratante ou de ter que contar para o mundo todo que vivia a seguir as pessoas sem ter motivo aparente. De uma hora para outra, numa fração de segundos, começava a sentir uma vergonha tão colossal, que ouvia Deus lhe dizer, com o dedo em riste e os cabelos despenteados e hirtos de ira, que o inferno lhe aguardava de braços abertos. Quando Deus apelava para a decepção que a sua mãe sentiria ao tomar conhecimento de sua estranha mania, retrocedia, fraco e vermelho de vergonha.
Entretanto, Mário teve poucos reveses nessa ignóbil empreitada. Na maioria das vezes, o rapaz seguia as meninas, os velhos, os estudantes; até os saltimbancos, que do calçadão rumavam para casa ao até amanhã do Sol no oeste, serviam de alvo. O que Mário sentia ao seguir as pessoas era muito difuso. Havia dias em que ele se deleitava em olhar as pernas dos sujeitos. Quando, no meio da caminhada, os alvos móveis mudavam o passo, tentava adivinhar a transmutação de um pensamento em outro; achava que a ira expressava-se nos joelhos – “quanto mais raivosa estiver uma pessoa, maior o impacto do peso do corpo nos joelhos”. Numa sexta-feira à tarde, através de uma senhora de uns cinquenta anos, que coçava insistentemente as costas e olhava para as sacadas dos prédios, descobriu que assim - como ela fazia - portavam-se os apaixonados. Era chato seguir os que andavam carregando a paixão por alguém, porque, segundo ele, era sempre igual ( passos indecisos, lentos, muitos movimentos dos braços e cabeça ). Os apaixonados, além de não lhe causar inquietude e curiosidade, também não lhe impingiam medo algum, sacando-lhe parte importante do prazer que tinha em ser a sentinela insólita dos anônimos. Ademais, os apaixonados eram tão distraídos que ele não via a menor possibilidade de ser desmascarado por algum deles.
Os que ele chamava de loucos eram os mais interessantes, sem dúvida. De certa maneira, depois de meses de prática, conseguia prever os passos de cada um de seus objetos fugazes do desejo. “Uma bolsa de grife combinada com tal calçado, e para a esquerda não haveria de ir aquela mulher; um sapato e um cabelo bem cortado... Para direita não, nem pensar; não para aquela região do bairro”. Só que, quanto mais louco fosse o sujeito, mais imprevisível ele se tornava. Como Mário se tornara ansioso com esse negócio de seguir os outros, mal ele saía do pardieiro subalugado em que trabalhava desbloqueando telefones móveis, e tratava de seguir a primeira alma que passasse por ele. Se não estivesse tão afoito, teria escolhido sempre os loucos porquanto assim se divertia feito uma criança.
Ao chegar à esquina da Viúva Dantas com a Aurélio Figueiredo, o sinal de trânsito fechou para os transeuntes. Se tivesse que disputar espaço, nesse momento, não seria com normalistas ou senhoras gordas, e sim com as vans e ônibus que chegaram a impeli-lo a dar um passo atrás: o primeiro ônibus lhe despejou uma ventania com cheiro de óleo de freio, em seguida, uma van buzinou estridente. Ao ver-se dentro da rua, viu o motorista da van lhe dar o dedo médio na ponta do seu braço esquerdo imperativamente esticado para fora da janela, enquanto o veículo se afastava rapidamente lhe dando as costas. Nesse momento descuidou-se do seu alvo e voltou para a calçada. Alguém gritou: “Cuidado aê, porra; quer morrer?”. Mario olhou, de cima do meio fio, de soslaio para trás levantando a mão direita, como quem pede desculpas e agradece ao mesmo tempo.
Recomposto, viu seu alvo no outro lado da rua dobrar a esquina para a direita. Já estava ele em frente à banca de jornal, misturando-se à multidão que saía do supermercado caçando os táxis que ali se amontoavam. Mário rezou para que o sinal fechasse logo. Nem foi preciso, pois a rua ficou vazia de automóveis por alguns segundinhos, e nesse espaço o voraz observador se embarafustou. Numa caminhada que mais se assemelhava a uma encrespada marcha atlética, chegou ao outro extremo da rua e seguiu pela calçada em direção ao seu alvo, encontrando-o alguns metros depois. O Senhor de barba cerrada, camisa branca e bermuda estampada virou para trás quando já chegara ao ponto das vans que partiam dali para várias regiões de Campo Grande.
Nesse instante, como se fosse um bandido, desviou o olhar e virou-se inteiro para a banca; pediu ao jornaleiro uns cinco pacotes de figurinhas da copa do mundo, tirando desajeitadamente as moedas que tinha no bolso. Ao olhar novamente na direção do barbudo, viu que ele não entrara nas vans e seguia em frente. Estava quase em frente à loja de bicicletas, numa parte da calçada onde sempre se ajuntavam pouquíssimas pessoas. Quando notou que sua brincadeira teria sequência, que o alvo não subira num daqueles automóveis, deu as moedas ao jornaleiro do jeito que as retirara do bolso, sem contar quanto tinha em mãos.
“Pode ficar com o troco” – disse Mário. Como sabia que as figurinhas valiam muito menos do que aquela montoeira de níquel, não se preocupou que o jornaleiro lhe pudesse cobrar o que faltava. Enfiou as figurinhas no bolso e partiu à caça do seu alvo.
O senhor barbudo dobrou a esquina e entrou na Avenida Cesário de Melo na direção da Assembleia de Deus. Como estava muito distante a essa altura, teve que apertar bastante o passo. Passou pela loja de bicicletas quase correndo. Enfim, dobrou a esquina. Lá na frente, para lá da Igreja, estava o seu entretenimento do dia. Já podia, então, libertar-se daqueles minutos anteriores de esbarrões e quase atropelamentos para decifrar o alvo da ocasião. Entretanto, Mário sabia que tinha perdido minutos importantes, que são justamente os primeiros da caçada. Quando, diariamente, se vê ainda na multidão do centro de Campo Grande, pode seguir as pessoas numa distância bem mais razoável. Seu barbudo de meia idade já despachara aquela frenética multidão; agora está bem mais tranquilo e parece mais decidido ao andar do que minutos atrás. A proximidade lhe tem revelado muitas impressões nessas últimas perseguições. A prática havia lhe dado precisão aquilina. Quando os seguidos saíam daquele perímetro irritante de lojas e passeatas multitudinárias, já estava em condições de desenhar na sua mente, num piscar de olhos, o elemento que estava sendo observado. No meio da multidão, sabia, todo o sentimento de um a pessoa fica à flor da pele, visível no trotar perturbado pela inquietação.
Mas o Senhor barbudo o despistara. No meio dos encontrões, perdeu a concentração, e a distância que já tinha se acostumado a manter das pernas em foco se alterou substancialmente. Ao passar pela calçada da Igreja, viu o Senhor se distanciar. Tinha o barbudo apertado o passo, assim como ele mesmo fizera há minutos atrás, em frente às bicicletas. O alvo então atravessou a Avenida Cesário de Melo, correndo para se desvencilhar de uma moto que passara numa velocidade de grande prêmio. Logo concluiu que o Senhor fizera isso para não ser atropelado, seguindo assim bairro adentro. O observador estava aturdido e suando em bicas, andando numa velocidade fora de cogitação quando deu início à carreira que agora lhe tirava o ar do peito. Mesmo assim continuou:
“Não consigo ver o que ele faz, que droga... É melhor eu voltar... Agora não, esse velho já me fez andar, correr, comprar figurinhas que eu nem precisava! É só apertar um pouquinho o passo... Ele nem parece aquela senhora que quase me pegou na semana passada, em frente ao hospital. Eu sentia que ela estava me olhando, eu tenho certeza! Quando ela pegou o celular, foi para contar da perseguição para o filho, ou marido...Sei lá! Só sei que ela me viu, com certeza me viu. Mas esse aí não.. ele é o quê? Será que é um ‘louco’? É isso; acho que deve ser um desses. Não consigo ver sua pernas direito...Os braços! Acabou de mexer os braços. Esta se alongando, não está nem aí para mim.”
Mas, o que eram os “loucos”? Era uma insígnia que não representava literalmente o que eram aqueles transeuntes. Mário teve a ideia de chamá-los assim pela variação que classificou de bipolar: quem normalmente anda com a cabeça baixa, o faz até chegar ao seu destino. Quem tem passos largos, segue a passos amplos até o final. Os braços sempre estão no mesmo lugar, assim como os joelhos que sempre sentem o mesmo impacto a cada pisada. Os loucos não eram assim. As variantes eram completamente desprovidas de ordem e sentido. Não é que cada pessoa fosse um robô numa linha de produção; é que cada mudança, na maioria das pessoas, respondia a uma lógica, uma espécie de roteiro. Por exemplo: há questão de três semanas, Mário seguiu um rapaz de cabelos lisos e blusa verde. Esse rapaz andava com passos muito curtos. Mesmo quando teve que correr para atravessar uma rua, que estaria em instantes abarrotada de automóveis, o garoto manteve seus passos de formiga, mesmo que mais rápidos e pesados do que os de então. Seus braços arquearam na corrida, mas logo voltaram ao normal quando o perigo passou. Esse garoto não era um louco, nem um pouco.
O Senhor seguiu na direção da estrada do Cabuçu, dobrando à direita, onde havia, no final da rua, uma gigantesca casa localizada num terreno tão gigantesco quanto. Para proteger aquele feudo, só mesmo um muro tão alto como aquele. Nesse momento, Mário pensou em desistir: não fazia muito sentido para ele seguir uma pessoa a qual o seu arsenal de teorias não se aplicava. Pensou. Repensou. Chegou a parar um pouco. Olhou para trás e viu um casal de namorados a se afastar, em sentido oposto. Nunca havia seguido um casal antes e isso poderia lhe dar muito mais subsídios que mais um reles louco – se é que ele era mesmo isso. Subitamente, elucubrou que pessoas em contato tendem a complementar o andar de um no outro, num esforço mútuo, abrindo mão de seu conforto para harmonizar a dupla. Sua mente borbulhou. Estava diante de poder medir o caráter e a relação de forças de um enlace amoroso só pelo andar duplicado dos casais apaixonados. Mas lembrou-se do senhor de bermuda estampada e voltou a sua meta primeira.
Correu. Quando chegou ao enorme muro chapiscado do casarão, notou-se naquela desconfortável posição de não se saber o que se espera do outro lado da cegueira. Estava visualmente obstruído pelo muro. Isso tudo foi suficiente para uma simples arrefecida, somente. Mario, então, cedeu ao seu desejo incontrolável e dobrou o muro.
“Por que demorou, seu merda? Por quê? Resolveu brincar logo comigo, hein?
Mário sentiu seu estômago virar do avesso. Seus lábios enrijeceram e seus punhos involuntariamente cerraram. Seu pesadelo ganhara vida do jeito mais inverossímil e escandaloso.
“Sabe o que eu não entendo? – gritou o senhor caminhando lentamente em direção a Mário, que estático ficou – Porra, você passou pelo menos um mês inteiro andando atrás dos outros feito um fodido de um tarado, e logo comigo você pensa em desistir? Parou por quê, seu verme? Imbecil!”
Não sabia o que fazer. Pensou em sair correndo, mas inferiu que aquilo era coisa da polícia ou de alguém mandado por uma de suas vítimas. Tentou falar, mas não conseguiu.
“Fala meu filho - disse o senhor, passando as duas mãos no cabelo, num tom ligeiramente menos agressivo, que se assemelhava a uma pesada bronca de um pai ao seu filho - por que o senhor veio ao meu encontro?
“Senhor, - respondeu feito uma criança quando mente descaradamente ao diretor da escola -, eu não vim ao seu encontro; nós só nos encontramos porque o senhor parou de andar. Se não fosse isso, estaria te seguindo até agora”.
Citei o exemplo do menino da escola. A inflexão usada por Mário na fala acima poderia remeter a um garoto numa sala trancada, tremendo até a última víscera para convencer o seu algoz do irrefutável; no entanto, Mário falou a mais límpida verdade.
“Bom, se é isso, melhorou – respondeu o senhor ao abotoar sua camisa. Mas, me diga uma coisa: Amanhã você vai continuar com isso? Tomara que sim, porque se o senhor resolver parar – e não esquente comigo, por favor, sou assim mesmo, desde os tempos que seguia qualquer um, como você faz muito bem – não vou ter quem seguir e a corrente vai se quebrar.
Mário estava tão confuso e gelado que demorou alguns segundos para vislumbrar o cenário de horror o qual o atingira.
“Corrente, Senhor, mas o que é isso?”
Quando fez a pergunta, o barbudo da bermuda estampada contorceu o rosto e coçou a bochecha e as têmporas. Estava irritado, xingando-o de tudo o que era possível. No meio da loucura tanto de um, que escutava os impropérios com a parcial surdez causada por um invisível fone de ouvido, quanto do outro que gritava e cuspia frases desconexas, o abalado perseguidor conseguiu distinguir alguns verbetes como rede, homens, amigos e, por final, - quando, numa luta contra sua própria privação de sentidos, retornava à lucidez – tristeza.
“Agora, ninguém vai mai me perseguir; nem o Major Quinteiros, nem meu primo bocó, nem a velhinha, coitada. Vai ficar triste”. Essa foi a última coisa dita pelo homem que já estava meio de costas para Mário, andando em direção ao mesmo Centro comercial onde tudo tivera início.
A palavra “velhinha” fez novamente com que voltasse ao soturno mundo do mais violento distúrbio mental. Lembrou da velhinha que perseguira dias antes – não era bem uma velha, mas nesse instante, tudo do que podia recapitular era uma senhora indefesa e senil. Depois, andando sem rumo, atordoado e com dores por todo o corpo, rememorou cada pessoa que fora vítima das suas desatinadas persecuções.
Não parava de se perguntar de onde aquele senhor viera e como haveria de saber de todo o seu segredo. Queria entender onde se encaixava a velhinha. Não achou resposta que não o deixasse em dúvida se estava louco ou não. Chegou a divagar sobre seu estado mental: “Isso só pode ser coisa da minha cabeça; eu nunca persegui ninguém”. Sentia-se muito distante daquele encontro de momentos antes. Parecia ter entrado num universo paralelo de dúvidas e hipóteses levianas. Quis ligar para seus pais, mas logo demoveu a si mesmo da ideia. Não tinha como somar os pontos, ligar os fatos: ou estava louco ou estava sob os olhos de alguém por algum tempo.
Errando não se sabe por onde, num estágio mental deplorável, que lhe distorcera categoricamente a noção exata do tempo, ainda nas ruas residenciais do bairro, teve o ensejo azado para refletir sobre as suas prioridades. Percebeu que perdera muito tempo em esquisitices. Chocou-se com seu próprio estado psicológico quando lembrou da resposta que dera ao barbudo. “Como pude responder aquilo? Que resposta idiota foi aquela? Mas não era isso mesmo, não foi aquilo mesmo que aconteceu? Se o barbudo me desse a chance, não estaria eu atrás dele ainda por essas ruas cheias de pessoas que um dia vou seguir também?...Como? Seguir? Porra, ainda estou pensando nessas babaquices? Nossa, mal acabaram de me desmascarar e eu estou novamente com vontade de perseguir os outros!... Que merda de rede é essa que esse barbudo maluco falou? Sic..Eu nem consigo me lembrar direito das coisas que aquele filho da puta me disse gritando; que merda! Merda!”
Foi pra casa e acordou no dia seguinte às duas da tarde. Perdera um dia quase inteiro de trabalho. Seu insalubre quarto subalugado ficou fechado, e ele então viu que sua vida mudara. Não haveria de esquecer nunca mais daquele senhor de camisa branca nem daquilo que conseguira apreender de seus gritos de enfermo mental. Não sentia mais a menor vontade de seguir as pessoas. Estava assustado.
Foi para o calçadão de Campo Grande, para o seu negócio, de sorte que parecia haver mil olhos sobre ele. Sentiu-se num reality show exibido exclusivamente para o inferno, de onde riam sem parar do seu pânico. Foi encolhendo, olhava para todos os lados. Não queria ver nunca mais aquela barba cerrada na sua frente.
Quando saiu do trabalho, justamente na sua cotidiana hora de perseguir as pessoas, lembrou da barba, dos gritos e entrou em desespero. Não sabia o que fazer; se ia para a sua casa ou se arrumava alguém para seguir. Resolveu voltar para a sua cama, mas naquela mesma calçada estreita, apertado entre as mulheres em estado de compras e os moletons, teve a certeza de ver um homem com uma bermuda estampada passar por ele. Estava de cabeça baixa, estatelado de medo. Não quis olhar para trás. Aquela palavra “rede” começou a latejar em seu cérebro.
“Meu Deus, existe um horda de loucos seguindo os outros por aí, e mais uma outra sendo seguida voluntariamente! E eu sou a ponta do iceberg: eu criei isso! Como pude... E agora...Não quero saber disso, não quero!”
Quando decidiu livrar-se dos grilhões invisíveis atados pelo senhor barbudo do dia anterior, uma multidão veio correndo em sua direção. Alguém gritou que estava ocorrendo um arrastão. Mário se sentiu dentro de um metrô lotado: não podia ir nem vir, só levantar a cabeça para respirar. Na hora, preso entre mulheres com bolsas de plástico cheias de roupas, novamente conversou com a sua consciência:
“Tá, tá legal... Tudo bem, eu vou seguir alguém”.
Para Mário, aquele tumulto foi o início do seu calvário, um aviso vindo diretamente dos confins do desconhecido, de onde alguém havia aprisionado seu destino para sempre: claro augúrio. Depois de sair do centro de Campo Grande, voltou para o mesmo lugar. Escolheu alguém para seguir: um homem de cerca de vinte e cinco anos com um sorvete nas mãos. Já não tinha mais como se perder no próprio pensamento para saber se o alvo era um louco, ou um apaixonado ou alguém de passos curtos. Seguia para ser seguido e não desatar a corrente criada por ele próprio.
Munido de pressa, viu desaparecer repentinamente a sua boa educação. Esbarrou numa normalista que deu um gritinho de espanto, derrubou um dos cabides da loja que irregularmente expunha moletons em promoção e pisou no calcanhar de uma senhora muito gorda que lhe repreendeu com uma voz grossa e imperativa. Mário não lhe deu a mínima e, ao chegar à parte mais larga da calçada, derrubou os penduricalhos de uma ambulante que vendia óculos e prendedores de cabelo. O coro contra o desajeitado pedestre foi ganhando corpo, quando Mário já estava novamente no rastro do seu objetivo móvel. Se quando, momentos antes, por força do fino pavimento, onde suscitara as reações mais nervosas, o rapaz não pensou em nenhum momento em evitar o choque com as pessoas que o atrapalhavam, não seria agora, desimpedido, que iria retroceder, nem que fosse só para pedir desculpas.
Nos últimos seis meses, Mário desenvolveu um hábito estranho: seguia as pessoas. Diferente de um tarado ou de um detetive particular, não tinha um objetivo definido ao seguir os outros pelas ruas dos subúrbios da cidade. Parecia um piloto de corridas de automóvel que se recusa a ultrapassar seu oponente, deliciando-se simplesmente com a perseguição inócua. Como não queria ser pego nem pegar ninguém atado a um segredo, desenvolveu aspectos particulares para a sua voraz diligência diária.
Um detetive, por exemplo, age com a finalidade de desnudar seu alvo. Em qualquer romancezinho policial pode-se observar que o sujeito designado para a função de desmascarar alguém desenvolve um método, que pode até começar com uma despretensiosa perseguição. Contudo, o perseguido sempre some quando pega um ônibus; quando se mistura à multidão que, por vezes é uma manada intransponível; quando entra num prédio suspeito ou quando, no cantão mais improvável da cidade, saca o seu cartãozinho telefônico e faz uma ligação suspeita num orelhão. Se fosse eu o contratante desse serviço sujo, não me abalaria com provas insípidas. De pronto, cobraria do investigador uma foto, um vídeo, uma carta, uma testemunha... Jamais poria em risco um reles namorico por suspeitas irrefreavelmente levianas, muito menos um relacionamento onde estivesse impressa a minha vida toda.
Como Mário não tem que provar nada a ninguém e sai por aí depois do trabalho a seguir qualquer um que lhe traga interesse, sua técnica se baseia em alongar sua diversão até onde começa a engendrar-se o perigo de ser descoberto. Se um profissional do rastreamento vê que sua vítima se aproxima da zona onde não produziria provas contra si mesma, ele sai de cena e volta seus pensamentos para outros fronts: apura as informações que colheu, revela suas comprometedoras fotos, faz telefonemas maliciosos ou conta as boas novas ao seu patrão desconfiado.
Se Mário fosse um estuprador, por exemplo, tentaria estabelecer uma prévia relação com a vítima ou a atacaria em determinado ponto que reunisse condições de indelével privacidade, como fazem esses facínoras. Mas o trôpego e aparvalhado observador – em última análise é isso mesmo que ele se tornou nos últimos tempos – age como quem fica em cima do muro, no meio do caminho entre o estuprador e o detetive particular: o primeiro chega às vias de fato, é descoberto por vontade própria; o segundo só começa a sua diligência seguindo os passos dos outros porque não tem indícios concretos do “crime” – se assim não fosse, nem se disporia a andar feito um gato atrás de um rato.
Aquela já deveria ser a vigésima “vítima” de Mário. Nesses jogos que estabelecera, sentia o corpo mais desperto; tudo lhe aguçava os sentidos. Não era raro perceber que seu coração batia no ritmo da ferina euforia. Não queria ser pego; mas não queria, não obstante, deixar de sentir que poderia ser desmascarado. Quando sentia que a pessoa à qual seus movimentos convergiam poderia num súbito interpelá-lo, sentia uma torrente de pânico atravessar seu corpo inteiro. Não havia espelho à mão, mas sabia que, tão logo o medo lhe combalia as pernas, sua pele se manchava de escarlate, como se seu sangue invadisse as ranhuras e as pavunas de sua epiderme. Corava a ponto de sentir sua temperatura corpórea subir. Então, via todos os olhares convergirem na sua direção. Tinha medo dos velhos que passavam por ele. Achava que os velhos poderiam descobrir seu segredo. Não sabia do que tinha mais medo nessas horas, se era de ser confundido com um tratante ou de ter que contar para o mundo todo que vivia a seguir as pessoas sem ter motivo aparente. De uma hora para outra, numa fração de segundos, começava a sentir uma vergonha tão colossal, que ouvia Deus lhe dizer, com o dedo em riste e os cabelos despenteados e hirtos de ira, que o inferno lhe aguardava de braços abertos. Quando Deus apelava para a decepção que a sua mãe sentiria ao tomar conhecimento de sua estranha mania, retrocedia, fraco e vermelho de vergonha.
Entretanto, Mário teve poucos reveses nessa ignóbil empreitada. Na maioria das vezes, o rapaz seguia as meninas, os velhos, os estudantes; até os saltimbancos, que do calçadão rumavam para casa ao até amanhã do Sol no oeste, serviam de alvo. O que Mário sentia ao seguir as pessoas era muito difuso. Havia dias em que ele se deleitava em olhar as pernas dos sujeitos. Quando, no meio da caminhada, os alvos móveis mudavam o passo, tentava adivinhar a transmutação de um pensamento em outro; achava que a ira expressava-se nos joelhos – “quanto mais raivosa estiver uma pessoa, maior o impacto do peso do corpo nos joelhos”. Numa sexta-feira à tarde, através de uma senhora de uns cinquenta anos, que coçava insistentemente as costas e olhava para as sacadas dos prédios, descobriu que assim - como ela fazia - portavam-se os apaixonados. Era chato seguir os que andavam carregando a paixão por alguém, porque, segundo ele, era sempre igual ( passos indecisos, lentos, muitos movimentos dos braços e cabeça ). Os apaixonados, além de não lhe causar inquietude e curiosidade, também não lhe impingiam medo algum, sacando-lhe parte importante do prazer que tinha em ser a sentinela insólita dos anônimos. Ademais, os apaixonados eram tão distraídos que ele não via a menor possibilidade de ser desmascarado por algum deles.
Os que ele chamava de loucos eram os mais interessantes, sem dúvida. De certa maneira, depois de meses de prática, conseguia prever os passos de cada um de seus objetos fugazes do desejo. “Uma bolsa de grife combinada com tal calçado, e para a esquerda não haveria de ir aquela mulher; um sapato e um cabelo bem cortado... Para direita não, nem pensar; não para aquela região do bairro”. Só que, quanto mais louco fosse o sujeito, mais imprevisível ele se tornava. Como Mário se tornara ansioso com esse negócio de seguir os outros, mal ele saía do pardieiro subalugado em que trabalhava desbloqueando telefones móveis, e tratava de seguir a primeira alma que passasse por ele. Se não estivesse tão afoito, teria escolhido sempre os loucos porquanto assim se divertia feito uma criança.
Ao chegar à esquina da Viúva Dantas com a Aurélio Figueiredo, o sinal de trânsito fechou para os transeuntes. Se tivesse que disputar espaço, nesse momento, não seria com normalistas ou senhoras gordas, e sim com as vans e ônibus que chegaram a impeli-lo a dar um passo atrás: o primeiro ônibus lhe despejou uma ventania com cheiro de óleo de freio, em seguida, uma van buzinou estridente. Ao ver-se dentro da rua, viu o motorista da van lhe dar o dedo médio na ponta do seu braço esquerdo imperativamente esticado para fora da janela, enquanto o veículo se afastava rapidamente lhe dando as costas. Nesse momento descuidou-se do seu alvo e voltou para a calçada. Alguém gritou: “Cuidado aê, porra; quer morrer?”. Mario olhou, de cima do meio fio, de soslaio para trás levantando a mão direita, como quem pede desculpas e agradece ao mesmo tempo.
Recomposto, viu seu alvo no outro lado da rua dobrar a esquina para a direita. Já estava ele em frente à banca de jornal, misturando-se à multidão que saía do supermercado caçando os táxis que ali se amontoavam. Mário rezou para que o sinal fechasse logo. Nem foi preciso, pois a rua ficou vazia de automóveis por alguns segundinhos, e nesse espaço o voraz observador se embarafustou. Numa caminhada que mais se assemelhava a uma encrespada marcha atlética, chegou ao outro extremo da rua e seguiu pela calçada em direção ao seu alvo, encontrando-o alguns metros depois. O Senhor de barba cerrada, camisa branca e bermuda estampada virou para trás quando já chegara ao ponto das vans que partiam dali para várias regiões de Campo Grande.
Nesse instante, como se fosse um bandido, desviou o olhar e virou-se inteiro para a banca; pediu ao jornaleiro uns cinco pacotes de figurinhas da copa do mundo, tirando desajeitadamente as moedas que tinha no bolso. Ao olhar novamente na direção do barbudo, viu que ele não entrara nas vans e seguia em frente. Estava quase em frente à loja de bicicletas, numa parte da calçada onde sempre se ajuntavam pouquíssimas pessoas. Quando notou que sua brincadeira teria sequência, que o alvo não subira num daqueles automóveis, deu as moedas ao jornaleiro do jeito que as retirara do bolso, sem contar quanto tinha em mãos.
“Pode ficar com o troco” – disse Mário. Como sabia que as figurinhas valiam muito menos do que aquela montoeira de níquel, não se preocupou que o jornaleiro lhe pudesse cobrar o que faltava. Enfiou as figurinhas no bolso e partiu à caça do seu alvo.
O senhor barbudo dobrou a esquina e entrou na Avenida Cesário de Melo na direção da Assembleia de Deus. Como estava muito distante a essa altura, teve que apertar bastante o passo. Passou pela loja de bicicletas quase correndo. Enfim, dobrou a esquina. Lá na frente, para lá da Igreja, estava o seu entretenimento do dia. Já podia, então, libertar-se daqueles minutos anteriores de esbarrões e quase atropelamentos para decifrar o alvo da ocasião. Entretanto, Mário sabia que tinha perdido minutos importantes, que são justamente os primeiros da caçada. Quando, diariamente, se vê ainda na multidão do centro de Campo Grande, pode seguir as pessoas numa distância bem mais razoável. Seu barbudo de meia idade já despachara aquela frenética multidão; agora está bem mais tranquilo e parece mais decidido ao andar do que minutos atrás. A proximidade lhe tem revelado muitas impressões nessas últimas perseguições. A prática havia lhe dado precisão aquilina. Quando os seguidos saíam daquele perímetro irritante de lojas e passeatas multitudinárias, já estava em condições de desenhar na sua mente, num piscar de olhos, o elemento que estava sendo observado. No meio da multidão, sabia, todo o sentimento de um a pessoa fica à flor da pele, visível no trotar perturbado pela inquietação.
Mas o Senhor barbudo o despistara. No meio dos encontrões, perdeu a concentração, e a distância que já tinha se acostumado a manter das pernas em foco se alterou substancialmente. Ao passar pela calçada da Igreja, viu o Senhor se distanciar. Tinha o barbudo apertado o passo, assim como ele mesmo fizera há minutos atrás, em frente às bicicletas. O alvo então atravessou a Avenida Cesário de Melo, correndo para se desvencilhar de uma moto que passara numa velocidade de grande prêmio. Logo concluiu que o Senhor fizera isso para não ser atropelado, seguindo assim bairro adentro. O observador estava aturdido e suando em bicas, andando numa velocidade fora de cogitação quando deu início à carreira que agora lhe tirava o ar do peito. Mesmo assim continuou:
“Não consigo ver o que ele faz, que droga... É melhor eu voltar... Agora não, esse velho já me fez andar, correr, comprar figurinhas que eu nem precisava! É só apertar um pouquinho o passo... Ele nem parece aquela senhora que quase me pegou na semana passada, em frente ao hospital. Eu sentia que ela estava me olhando, eu tenho certeza! Quando ela pegou o celular, foi para contar da perseguição para o filho, ou marido...Sei lá! Só sei que ela me viu, com certeza me viu. Mas esse aí não.. ele é o quê? Será que é um ‘louco’? É isso; acho que deve ser um desses. Não consigo ver sua pernas direito...Os braços! Acabou de mexer os braços. Esta se alongando, não está nem aí para mim.”
Mas, o que eram os “loucos”? Era uma insígnia que não representava literalmente o que eram aqueles transeuntes. Mário teve a ideia de chamá-los assim pela variação que classificou de bipolar: quem normalmente anda com a cabeça baixa, o faz até chegar ao seu destino. Quem tem passos largos, segue a passos amplos até o final. Os braços sempre estão no mesmo lugar, assim como os joelhos que sempre sentem o mesmo impacto a cada pisada. Os loucos não eram assim. As variantes eram completamente desprovidas de ordem e sentido. Não é que cada pessoa fosse um robô numa linha de produção; é que cada mudança, na maioria das pessoas, respondia a uma lógica, uma espécie de roteiro. Por exemplo: há questão de três semanas, Mário seguiu um rapaz de cabelos lisos e blusa verde. Esse rapaz andava com passos muito curtos. Mesmo quando teve que correr para atravessar uma rua, que estaria em instantes abarrotada de automóveis, o garoto manteve seus passos de formiga, mesmo que mais rápidos e pesados do que os de então. Seus braços arquearam na corrida, mas logo voltaram ao normal quando o perigo passou. Esse garoto não era um louco, nem um pouco.
O Senhor seguiu na direção da estrada do Cabuçu, dobrando à direita, onde havia, no final da rua, uma gigantesca casa localizada num terreno tão gigantesco quanto. Para proteger aquele feudo, só mesmo um muro tão alto como aquele. Nesse momento, Mário pensou em desistir: não fazia muito sentido para ele seguir uma pessoa a qual o seu arsenal de teorias não se aplicava. Pensou. Repensou. Chegou a parar um pouco. Olhou para trás e viu um casal de namorados a se afastar, em sentido oposto. Nunca havia seguido um casal antes e isso poderia lhe dar muito mais subsídios que mais um reles louco – se é que ele era mesmo isso. Subitamente, elucubrou que pessoas em contato tendem a complementar o andar de um no outro, num esforço mútuo, abrindo mão de seu conforto para harmonizar a dupla. Sua mente borbulhou. Estava diante de poder medir o caráter e a relação de forças de um enlace amoroso só pelo andar duplicado dos casais apaixonados. Mas lembrou-se do senhor de bermuda estampada e voltou a sua meta primeira.
Correu. Quando chegou ao enorme muro chapiscado do casarão, notou-se naquela desconfortável posição de não se saber o que se espera do outro lado da cegueira. Estava visualmente obstruído pelo muro. Isso tudo foi suficiente para uma simples arrefecida, somente. Mario, então, cedeu ao seu desejo incontrolável e dobrou o muro.
“Por que demorou, seu merda? Por quê? Resolveu brincar logo comigo, hein?
Mário sentiu seu estômago virar do avesso. Seus lábios enrijeceram e seus punhos involuntariamente cerraram. Seu pesadelo ganhara vida do jeito mais inverossímil e escandaloso.
“Sabe o que eu não entendo? – gritou o senhor caminhando lentamente em direção a Mário, que estático ficou – Porra, você passou pelo menos um mês inteiro andando atrás dos outros feito um fodido de um tarado, e logo comigo você pensa em desistir? Parou por quê, seu verme? Imbecil!”
Não sabia o que fazer. Pensou em sair correndo, mas inferiu que aquilo era coisa da polícia ou de alguém mandado por uma de suas vítimas. Tentou falar, mas não conseguiu.
“Fala meu filho - disse o senhor, passando as duas mãos no cabelo, num tom ligeiramente menos agressivo, que se assemelhava a uma pesada bronca de um pai ao seu filho - por que o senhor veio ao meu encontro?
“Senhor, - respondeu feito uma criança quando mente descaradamente ao diretor da escola -, eu não vim ao seu encontro; nós só nos encontramos porque o senhor parou de andar. Se não fosse isso, estaria te seguindo até agora”.
Citei o exemplo do menino da escola. A inflexão usada por Mário na fala acima poderia remeter a um garoto numa sala trancada, tremendo até a última víscera para convencer o seu algoz do irrefutável; no entanto, Mário falou a mais límpida verdade.
“Bom, se é isso, melhorou – respondeu o senhor ao abotoar sua camisa. Mas, me diga uma coisa: Amanhã você vai continuar com isso? Tomara que sim, porque se o senhor resolver parar – e não esquente comigo, por favor, sou assim mesmo, desde os tempos que seguia qualquer um, como você faz muito bem – não vou ter quem seguir e a corrente vai se quebrar.
Mário estava tão confuso e gelado que demorou alguns segundos para vislumbrar o cenário de horror o qual o atingira.
“Corrente, Senhor, mas o que é isso?”
Quando fez a pergunta, o barbudo da bermuda estampada contorceu o rosto e coçou a bochecha e as têmporas. Estava irritado, xingando-o de tudo o que era possível. No meio da loucura tanto de um, que escutava os impropérios com a parcial surdez causada por um invisível fone de ouvido, quanto do outro que gritava e cuspia frases desconexas, o abalado perseguidor conseguiu distinguir alguns verbetes como rede, homens, amigos e, por final, - quando, numa luta contra sua própria privação de sentidos, retornava à lucidez – tristeza.
“Agora, ninguém vai mai me perseguir; nem o Major Quinteiros, nem meu primo bocó, nem a velhinha, coitada. Vai ficar triste”. Essa foi a última coisa dita pelo homem que já estava meio de costas para Mário, andando em direção ao mesmo Centro comercial onde tudo tivera início.
A palavra “velhinha” fez novamente com que voltasse ao soturno mundo do mais violento distúrbio mental. Lembrou da velhinha que perseguira dias antes – não era bem uma velha, mas nesse instante, tudo do que podia recapitular era uma senhora indefesa e senil. Depois, andando sem rumo, atordoado e com dores por todo o corpo, rememorou cada pessoa que fora vítima das suas desatinadas persecuções.
Não parava de se perguntar de onde aquele senhor viera e como haveria de saber de todo o seu segredo. Queria entender onde se encaixava a velhinha. Não achou resposta que não o deixasse em dúvida se estava louco ou não. Chegou a divagar sobre seu estado mental: “Isso só pode ser coisa da minha cabeça; eu nunca persegui ninguém”. Sentia-se muito distante daquele encontro de momentos antes. Parecia ter entrado num universo paralelo de dúvidas e hipóteses levianas. Quis ligar para seus pais, mas logo demoveu a si mesmo da ideia. Não tinha como somar os pontos, ligar os fatos: ou estava louco ou estava sob os olhos de alguém por algum tempo.
Errando não se sabe por onde, num estágio mental deplorável, que lhe distorcera categoricamente a noção exata do tempo, ainda nas ruas residenciais do bairro, teve o ensejo azado para refletir sobre as suas prioridades. Percebeu que perdera muito tempo em esquisitices. Chocou-se com seu próprio estado psicológico quando lembrou da resposta que dera ao barbudo. “Como pude responder aquilo? Que resposta idiota foi aquela? Mas não era isso mesmo, não foi aquilo mesmo que aconteceu? Se o barbudo me desse a chance, não estaria eu atrás dele ainda por essas ruas cheias de pessoas que um dia vou seguir também?...Como? Seguir? Porra, ainda estou pensando nessas babaquices? Nossa, mal acabaram de me desmascarar e eu estou novamente com vontade de perseguir os outros!... Que merda de rede é essa que esse barbudo maluco falou? Sic..Eu nem consigo me lembrar direito das coisas que aquele filho da puta me disse gritando; que merda! Merda!”
Foi pra casa e acordou no dia seguinte às duas da tarde. Perdera um dia quase inteiro de trabalho. Seu insalubre quarto subalugado ficou fechado, e ele então viu que sua vida mudara. Não haveria de esquecer nunca mais daquele senhor de camisa branca nem daquilo que conseguira apreender de seus gritos de enfermo mental. Não sentia mais a menor vontade de seguir as pessoas. Estava assustado.
Foi para o calçadão de Campo Grande, para o seu negócio, de sorte que parecia haver mil olhos sobre ele. Sentiu-se num reality show exibido exclusivamente para o inferno, de onde riam sem parar do seu pânico. Foi encolhendo, olhava para todos os lados. Não queria ver nunca mais aquela barba cerrada na sua frente.
Quando saiu do trabalho, justamente na sua cotidiana hora de perseguir as pessoas, lembrou da barba, dos gritos e entrou em desespero. Não sabia o que fazer; se ia para a sua casa ou se arrumava alguém para seguir. Resolveu voltar para a sua cama, mas naquela mesma calçada estreita, apertado entre as mulheres em estado de compras e os moletons, teve a certeza de ver um homem com uma bermuda estampada passar por ele. Estava de cabeça baixa, estatelado de medo. Não quis olhar para trás. Aquela palavra “rede” começou a latejar em seu cérebro.
“Meu Deus, existe um horda de loucos seguindo os outros por aí, e mais uma outra sendo seguida voluntariamente! E eu sou a ponta do iceberg: eu criei isso! Como pude... E agora...Não quero saber disso, não quero!”
Quando decidiu livrar-se dos grilhões invisíveis atados pelo senhor barbudo do dia anterior, uma multidão veio correndo em sua direção. Alguém gritou que estava ocorrendo um arrastão. Mário se sentiu dentro de um metrô lotado: não podia ir nem vir, só levantar a cabeça para respirar. Na hora, preso entre mulheres com bolsas de plástico cheias de roupas, novamente conversou com a sua consciência:
“Tá, tá legal... Tudo bem, eu vou seguir alguém”.
Para Mário, aquele tumulto foi o início do seu calvário, um aviso vindo diretamente dos confins do desconhecido, de onde alguém havia aprisionado seu destino para sempre: claro augúrio. Depois de sair do centro de Campo Grande, voltou para o mesmo lugar. Escolheu alguém para seguir: um homem de cerca de vinte e cinco anos com um sorvete nas mãos. Já não tinha mais como se perder no próprio pensamento para saber se o alvo era um louco, ou um apaixonado ou alguém de passos curtos. Seguia para ser seguido e não desatar a corrente criada por ele próprio.
Genial, Vitinho, Genial!
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